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Bruna Frascolla

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Cultura

“Cabeça Branca” e a vitória do discurso do empoderamento feminino

empoderamento feminino
O cantor Tierry, autor de "Cabeça Branca". (Foto: Reprodução/ Facebook)

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Muito se fala na decadência da música brasileira. Ora se reclama da vulgaridade das letras, ora do ativismo político rasteiro que faz apodrecer qualquer talento. Em resumo, a elite artística, que antes compunha canções com letras ricas, não teve herdeiros à altura, e hoje a pretensão à profundidade é confundida com a adesão ao slogan político da vez. Não temos nenhum Vinícius de Moraes (um ex-integralista de qualidade literária), nem um Chico Buarque (um esquerdista de qualidade literária). Em vez disso, temos Mano Brown na condição de poeta-intelectual.

Proponho que baixemos as expectativas. Não precisamos procurar Chico nem Vinícius; fiquemos com Noel Rosa. Suas letras não têm aspiração à genialidade, à glória imortal. Ainda assim, continuamos ouvindo-o até hoje, e até hoje ele nos arranca umas risadas, tratando do quotidiano carioca. O samba tem uma tradição longa e bem espalhada pelo país de fazer letras que são como crônicas. Adoniran Barbosa em São Paulo, Riachão na Bahia e o próprio Noel Rosa no Rio são mostras disso. Um canta sobre as pizzas que avoavam na casa do Nicola; outro, sobre a baleia que encalhou e foi exposta ao público; outro se mete numa polêmica de costumes com Wilson Batista, tratando dos malandros e sambistas. Creio que a figura do poeta-intelectual entrou no campo do samba com Vinícius de Moraes, desde então ganhou os holofotes e elevou demais as nossas expectativas com as letras de música. Isso é um problema não só para o artista, que acha que tem que ser pretensioso, como para o público, que deixa de apreciar letras bem-humoradas que tocam por aí.

Gêneros e temas

Até onde eu possa perceber, tirando pela Bahia e pelo Rio, os gêneros musicais que transitam pelas regiões são sertanejo (produzido na zona de influência cultural bandeirante), arrocha (da Bahia), piseiro (do Semiárido nordestino), bregas paraenses e funk (das metrópoles do Sudeste). Os quatro primeiros são românticos, o último costuma estar associado à subcultura do tráfico. Nesta, não há uma nesga de romantismo: as mulheres das letras são piranhas rotativas dos traficantes, que podem ter todas as mulheres e artigos de grife do mundo porque tudo isso (mulheres inclusas) se compra com a montanha de dinheiro que eles supostamente ganham com o tráfico.

As canções românticas são antiquíssimas; deitam raízes na Idade Média. Entre nós, brasileiros, o sertanejo é notoriamente propenso a cantar dores de cotovelo. Marília Mendonça era rainha das músicas de fossa e tornou-se uma grande estrela com esse tema. O arrocha segue a mesma linha. É um gênero bem mais novo, surgido na Bahia. Eu era criança quando começaram a se tornar onipresentes, pelas ruas, o tecladinho monótono e a voz esganiçando dores de cotovelo. Ao que parece, a história não é muito pesquisada, e o município de Candeias reivindica a condição de berço do arrocha, colocando o seu surgimento no final dos anos 90.

De lá para cá, o arrocha foi crescendo, crescendo, e colocando o pagodão numa posição de meio de caminho entre o axé e o funk: o primeiro é o gênero que se escuta na Bahia quase exclusivamente em carnaval; o segundo, um veículo de propaganda do tráfico. Se eu estiver na rua e houver um gênero musical baiano tocando, as chances estão todas do lado do arrocha.

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Um cronista

Vocês hão de ter percebido meu exíguo entusiasmo com esse gênero musical pela descrição que dei. No entanto, existe algo nele que dá um motivo para sorrir: a letra. Um compositor em particular, Tierry, mistura as músicas de dor de cotovelo com crônicas do quotidiano. A Covid pode não aparecer em nenhum poema de gênio, mas volta e meia ainda ouço os versinhos na rua: “Coronavírus nunca me assustou / Eu já peguei coisa pior e ainda chamei de amor”. O crack é um problema social grave presente em cada confim do país. Poderia ser tema de filmes e peças, ou então de uma poesia genial musicada. Só não digo que passou em brancas nuvens pelas artes porque ouvi os versinhos de dor de cotovelo: “Se eu virar cracudo / Eu vou fumar esse seu coração de pedra / Nem que eu venda tudo”.

Transformar qualquer tema do quotidiano em música de dor de cotovelo requer criatividade. Mas no último hit, Tierry deu um passo a mais e passou à crítica de costumes. Refiro-me a “Cabeça Branca”, cujos versos dizem: “Cabeça branca é um cidadão de bem / Um empresário que precisa relaxar / Fim de semana ele pega as novinhas / E patrocina um churrascão em alto-mar // A mulherada de copo na mão, biquíni fio dental / Postando foto na sua rede social / Cheia de pose de patroa, ela é da zona / Quem vê de longe pensa que ela é a dona // Mas o dono da lancha é o cabeça branca / A champanhe quem banca é o cabeça branca / Por que novinha, na hora da selfie / Junta com as amigas, o coroa nunca aparece”.

As classes baixas já usam rede social para ficar mostrando vida boa, do mesmo jeito que playboys endinheirados. Na verdade, é fato inconteste que o abuso de cocaína surgiu entre playboys antes de ser imitado pelos pobres dentro de suas capacidades orçamentárias. A juventude não saía se drogando antes de o movimento new age resolver que drogas abrem portas do autoconhecimento etc.

É humano querer mostrar ao seu círculo social que a sua vida é boa, ou que você é bem sucedido. A novidade aí, capturada pelo cronista, é as mulheres enxergarem o mero acesso a bens de luxo – champanhe, lancha, churrasco – como signo de sucesso.

Sucesso ontem e hoje

O acesso a bens de luxo está, obviamente, associado à riqueza. Entre nobres, não é considerado um signo de sucesso, senão como resultado de nascimento. Assim, resta seguir adiante no tempo para encontrar a explicação para alguém o considerar signo de sucesso: a ascensão da burguesia, que, pelo suor do trabalho, conquista tudo o que tem. Para um burguês, mostrar os objetos de luxo como signo de sucesso é perfeitamente razoável. Mas isso implica que os bens de luxo não são tais coisas moralmente boas em si mesmas, senão recompensa de uma conduta virtuosa. Digo que Fulano é bom porque trabalha; e, porque trabalha, desfruta de luxo.

Não à toa, essa forma de se orgulhar é diferente entre homens e mulheres. Nessa moral burguesa (isto é, urbana e moderna, em vez de rural e medieval), o homem posa de dono das coisas que ele conquistou. A mulher, cujo trabalho nunca costumou ser muito bem remunerado antes da metade do século 20, só poderia ostentar luxo como signo de sucesso tendo em vista o marido. Ostentaria para dizer às amigas: “O meu marido é melhor do que o seu! Olha as coisas que ele me dá!”. Enquanto isso, os homens ostentariam para dizer aos colegas: “Sou muito melhor do que vocês! Olhem as coisas que conquistei!”.

As mulheres da música de Tierry não são como as burguesas, já que “o coroa não aparece” e elas querem passar por donas. Elas tampouco se tornaram iguais a homens, pois a vida de curtição é apresentada como boa em si mesma, sem nenhuma preocupação com um trabalho aparente. O bardo olha os stories e tira a conclusão óbvia ululante: é da zona.

Empoderamento feminino

Tal como nas drogas, penso que essa moral pós-burguesa seja fruto de propaganda e tenha raízes nas classes altas. Pois vejam bem toda a retórica do empoderamento feminino: que fazem essas mulheres que são vendidas como empoderadas? Elas não são grandes trabalhadoras; afinal, no âmbito profissional, seu empoderamento parece consistir em chorar muito para entrar por cota, com um profundo senso de merecimento. Não há nada como amar uma profissão e se empenhar pela excelência.

O cenário mais fácil para encontrar a apologia do empoderamento é a moda feminina voltada para o público negro. A julgar pelas imagens, empoderamento feminino nada mais é que posar fazendo cara de vilã de quadrinhos enquanto ostenta grifes e usa maquiagem pesada. Para ser ideal de sucesso igual ao cantado em músicas dos traficantes, só faltam pencas de concubinos rotativos. E só devem faltar por mero pudor pessoal das empoderadas que aparecem em jornal, porque o ideal de liberação feminina vendido é esse mesmo.

Vejam o ícone máximo de empoderamento feminino que é propagandeado pela beautiful people nacional: Djamila Ribeiro usando uma bolsa de quase R$ 20 mil e aparecendo em capa de revista chique. Não há nenhuma contradição entre a retórica contra a desigualdade e o uso de artigos de luxo. Djamila mandou muito bem porque usou uma Prada difícil de comprar com um salário de mulher de letras; logo, ela mandou muito bem porque usou algo que foi dado a ela, em vez de obtido com esforço do trabalho.

Que algumas mulheres famosas se sintam realizadas ganhando objetos de luxo, é possível. Mas universalizar essa moral só pode ter uma consequência: mandar pra zona quem quiser posar de dona.

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