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TRE-RJ transporta as urnas eletrônicas para os locais de votação do Rio de Janeiro
TRE-RJ transporta as urnas eletrônicas para os locais de votação do Rio de Janeiro| Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Enquanto a direita puxava os cabelos com o voto impresso, a esquerda puxava os cabelos com o distritão.  O voto impresso até obteve a maioria simples (mais da metade dos votos), mas, sabe Deus por que, esta é uma questão constitucional, de modo que é necessária a maioria composta, de dois terços. O distritão foi aprovado numa etapa bastante inicial, que é a comissão relatora.

Creio que a proposta do distritão tenha se tornado nacionalmente conhecida ali às vésperas do processo de impeachment, quando Eduardo Cunha a propagandeava. O que vem a ser o distritão? Simples: os candidatos ao legislativo que ganharam mais votos são eleitos. Hoje o partido conta, e quem votou (digamos) num dos candidatos do Novo terá a certeza de que o seu voto contribuiu para eleger algum candidato do partido, não necessariamente aquele em quem ele votou.

O distritão foi derrotado em 2015, voltou à baila agora, em 2021, e foi rechaçado subitamente agora, depois de o senado dizer que nele não passa.

Gleisi Hoffmann e Marcel van Hattem juntos

Como a proposta do distritão é importante e é capaz de voltar de novo alguma hora, detenhamo-nos um pouco sobre essa comissão abafada.

O distritão uniu Gleisi Hoffmann a Marcel van Hattem (votaram contra). Bia Kicis, o Príncipe Orleans e Bragança, uma parlamentar do PCdoB e dois do partido da Universal votaram a favor. Assim, não dá para dizer que o projeto é obviamente de direita ou de esquerda.

Contra o distritão, costuma-se dizer que é errado os votos do eleitor num candidato derrotado serem simplesmente perdidos. A objeção faz perfeito sentido – se acreditarmos que o eleitor pensa em partidos na hora de votar. Por isso peguei o Novo como exemplo: era um partido com identidade muito definida; divulgava que fazia provas para garantir que só admitiria filiados de fato compromissados com o ideal liberal de direita do partido.

Mas aí Amoedo, o cacique do partido, deu uma guinada tucana, antibolsonarista incondicional, à qual nem todos os parlamentares aderiram. Marcel van Hattem é um que não aderiu. Assim, olhando em retrospecto, estaria coberto de razão aquele eleitor gaúcho que, em 2018, dissesse: “Marcel, não me interessa o partido. Quero votar em você, que eu confio!”

Ao meu ver, o maior problema da representatividade no congresso hoje é expresso por uma figura como Joice Hasselmann. A mulher levou um milhão de votos dos paulistas dizendo-se “Bolsonaro de saias” para depois virar antibolsonarista incondicional. (Aliás, em que deu aquela história do ninja bolsonarista e do olho roxo?) Faz falta um sistema de recall.

Mas o Brasil já foi pior. Da época de Cunha para cá, corrigiu-se um problema mais grave, que eram as coligações. Se um partido brasileiro já é um saco de gatos, as coligações se davam entre partidos, e o sujeito que votou numa lebre branca do Partido das Lebres termina elegendo um gato preto do Partido dos Gatos, que estava na coligação Unidos Venceremos, que reúne em Piraporinha do Oeste o Partido das Lebres, o Partido dos Gatos, o Partido dos Ratos, o Partido dos Papagaios e o Partido das Joaninhas. O cidadão comum nem imaginava que votando no amigo corria o risco de eleger qualquer espécime dessa fauna diversificada.

E são justamente as coligações que voltaram à discussão na Câmara agora, concomitantes com a rejeição ao distritão.

Os costumes e crenças dos eleitores e dos pequenos políticos

Como o assunto ficou às moscas desde 2015 – quando veio o processo de impeachment, depois das reformas de Temer, depois Bolsonaro –, não vou bater o meu martelo em favor do distritão. Digo apenas que vejo com bons olhos, dados os costumes do eleitorado brasileiro.

É verdade que os partidos não são totalmente destituídos de coesão; afinal, bão é só a ideologia que serve para dar a coesão interna a um partido. Grupos de interesse costumam se agregar em torno de partidos em democracias.

Assim, creio que a questão do distritão seria antes uma questão da compatibilização das práticas partidárias aos costumes do eleitor. Porque o que temos hoje são grupos de interesse usando as siglas para alocar puxadores de votos e destinar seus votos ao autêntico parlamentar que os representa.

Aconteceu-me aqui no interior da Bahia de conhecer um ex-prefeito que, segundo me explicaram, toda vez que bebe, diz que vai se candidatar à prefeitura outra vez. Perguntei-lhe por qual partido ele iria se candidatar e ele respondeu: “Ninguém vota no partido, vota na pessoa!” Seja como for, ele sabia informar a mim – e aos guardadores de carro que o abraçavam – qual seria o seu novo número eleitoral. Falei a sigla que correspondia ao número e ele concluiu que eu era uma grande entendida de política por isso.

Também me aconteceu de ser abordada por um vereador no bar, que queria conversar sobre a cidade. (Ele achava que todos os jornalistas tiram fotos. A cidade é turística.) Por coincidência, aconteceu pela primeira e única vez de um traficante sair da boca para vir me oferecer uma coisa que eu não fazia ideia do que era. O vereador olhou bem feio para o traficante. Tendo este ido embora, manifestei minha curiosidade de saber o que era aquilo. O vereador ficou desconfiado da minha curiosidade e quis saber se eu usava aquelas coisas. Falei que não e ele ficou tranquilo. Concordou que o traficante apareceu porque eu tinha cara de universitária.

Depois tive a curiosidade de verificar o partido desse vereador antidrogas e vi que era o PSB: justo o partido que acionou o STF para proibir a ação da polícia em área de tráfico no Rio de Janeiro. Minha conclusão: ele só usa partidos para se candidatar, e o PSB no Rio de Janeiro lhe parece tão remoto quanto as areias de Marte. “Ninguém vota no partido, vota na pessoa”.

E nisso os partidos acabam inflacionando a legitimidade que têm. Porque o pequeno político brasileiro enxerga o partido como um ônibus no qual é preciso ingressar para chegar à urna. Tanto faz a marca ou a companhia do ônibus.

Estratégias eleitorais

Nas cidades pequenas, o sistema atual funciona para o pequeno político. Já nas grandes, para ter penetração numa favela, é possível os partidos arranjarem um morador da área, um conhecido da vizinhança, para amealhar uns votos. Na última eleição eu justifiquei meu voto na Escola Municipal Bussunda, no Rio das Pedras, aquela favela de milícia no Rio de Janeiro. Ora, como o cenário era interessante demais resolvi ficar atenta ao material de campanha por lá. Dei a sorte de ouvir o comício de um candidato do PCdoB. (Só dava para saber o partido por causa do 65.) Qual a promessa de campanha dele? A volta de uma linha de ônibus chamada Rio das Pedras que ligava a favela a Madureira. (Já escrevi a respeito)

O candidato não foi eleito, mas seus votos – votos dos interessados em uma linha de ônibus! –, serviram para eleger ou tentar eleger a turma de Manuela d’Avila, que não sabe chegar nem ao Rio das Pedras, nem a Madureira, e está mais interessada em proteger os interesses do funcionalismo, ou de cartéis empresariais, ou de cartel de drogas. Ao meu ver, o candidato e seus eleitores caíram num golpe eleitoral. Golpe este combatido pelo distritão.

Outro golpe parecido é o de usar uma celebridade como Tiririca para puxar votos para o partido. Registro apenas que não é o Centrão que faz isso; partidos de esquerda também fazem. Aqui na minha cidade, um cantor de reggae famoso nos anos 90 ficou muito feliz ao ser convidado a se filiar ao PSOL com promessa de candidatura legislativa. Seu séquito de fãs fiéis diz que vota nele. Ele foi às redes sociais agradecer a Jesus pelo convite e esclarecer aos amigos que o PSOL não é o partido do diabo.

Registro ainda que tive a curiosidade de ver a quantas anda Vital Farias, um cantor e compositor paraibano do qual gosto bastante. Hoje ele usa as redes sociais para postar coisas contra a esquerda e a favor de Bolsonaro. Ele nunca fez parte da turma da MPB e, que eu saiba, nunca foi politizado. Pois bem: segundo noticiam sites de esquerda, ele já foi candidato pelo  pelo recém nascido PSOL em 2006 e pelo PCB em 2010. Tudo isso antes da Lava-Jato. Ao meu ver, é provável que ele tenha se sentido honrado com um convite de gente importante com a qual ele tinha relações cordiais e aceitado concorrer. Mais uma vítima de golpe.

De resto, há a estratégia do Novo em 2018 e 2020, honesta porém contraproducente. Primeiro, o partido proíbe qualquer um de se filiar e restringe com mão de ferro as candidaturas. (Os comunistas d’antanho chamariam isto de “centralismo democrático”.) Enquanto os outros partidos estão doidos por puxador de voto, o Novo os rejeita. É de admirar que tenha conseguido botar deputados no Congresso e ainda eleger um governador num grande colégio eleitoral.

Aqui na Bahia, um estado grande, eu sei que eles tinham uma candidata de Salvador que seria o principal nome, e punham puxadores de voto em outras regiões do estado. Mas esses puxadores também tinham feito a provinha e estavam alinhados com o liberalismo de direita. Nesse caso, os eleitores tinham bons motivos para crer que, ao votar numa pessoa, não corriam o risco de eleger outra muito diferente. Mas aí está Amoedo para provar que o senso comum do brasileiro vale mais que muita teoria política.

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