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Nisbet palestrando a convite de Reagan.
Nisbet palestrando a convite de Reagan.| Foto: The Rugged Communitarian/Reprodução do Youtube

Em sua terra natal, os Estados Unidos, o sociólogo Robert Nisbet (1913 – 1996) tem um livro considerado seminal: The Quest for Community (1953), ou “A Busca por Comunidade”. Fora escrito no calor do pós-guerra com o fito de explicar a ascensão dos totalitarismos na Europa por meio da destruição de laços comunitários tradicionais. Após a desagregação promovida pela modernização, o homem encontrara no Estado a união que tanto lhe fazia falta. Ao menos essa é a explicação de segunda mão que li, pois o livro não se encontra com facilidade no Brasil por não ter sido traduzido. Procurando-se livros do autor, porém, descobre-se que em 1985 a editora da UnB publicou uma tradução da sua História da ideia de progresso (1980). Por alguma razão, um livro tido como secundário nos EUA ganhou atenção no Brasil, ao passo que o livro tido como seminal nos EUA passou batido por aqui.

Numa passada de olhos em verbetes da Wikipédia, aprende-se que Richard Nisbet é consensualmente tido, nos EUA, como conservador; que ele lutou na II Guerra Mundial servindo ao exército do seu país; que ele é responsável por difundir o estudo de Tocqueville e Burke, antes desconhecidos pelos acadêmicos estadunidenses (o que é chocante); que, já como sociólogo velho, ele foi pessoalmente convidado por Reagan para dar uma aula numa agência do governo federal (o que é, na prática, uma honraria); e que, enquanto intelectual público, era um notório crítico da política externa de Reagan e um defensor do aborto. Pois é, os EUA são um país confuso ideologicamente. Assim como a esquerda deles tem uma história bem diferente da nossa e há décadas é capitalista, o conservadorismo deles é esquisito porque, num país protestante que nasceu de uma revolução iluminista, não é muito o claro o que se deve conservar. Além disso, no mundo anglófono em geral, o conservadorismo é associado ao laissez faire liberal; ou seja, mais com a negação do comunismo do que com a afirmação de um lema próprio. Onde o conservador brasileiro tem “Deus, Pátria e Família”, o estadunidense tem um anticomunismo difuso, que pode assumir tanto feições econômicas quanto religiosas. Como os protestantes não são historicamente contra o aborto, a cultura dos EUA possibilitou que um grande sociólogo conservador fosse um notório defensor do aborto, e que uma empresa paraestatal como a Planned Parenthood fosse criada. Só quando seus tentáculos cresceram demais e espalharam uma carnificina socialmente aceita para todo lado é que ser conservador passou a implicar a oposição ao aborto.

Talvez se possa entender o conservadorismo dos EUA como uma oposição à engenharia social. Nesse sentido, o laissez faire seria uma resposta conservadora a um governo de economia planificada, ao gosto dos socialistas fabianos. Do mesmo modo, a oposição ao aborto é uma resposta à planificação da natalidade empreendida pela burocracia dos EUA e exportada para o mundo.

Num país protestante que nasceu de uma revolução iluminista, não é muito o claro o que se deve conservar

Ler a História da Ideia de Progresso ajuda a confirmar essa impressão. Nisbet explica a origem da ideia de progresso e faz depois uma divisão entre vilões e mocinhos do século XVII ao XIX: uns, como Condorcet, Mill e Spencer, eram os mocinhos que viam o progresso como expansão da liberdade, ao passo que outros, os vilões, viam o progresso como a expansão do poder sobre o homem, tais como Rousseau, Comte e Marx. Os mocinhos eram os primeiros; os vilões, os segundos. A linha de corte é a defesa da liberdade individual, mesmo que a filosofia adotada por esses autores precisasse quadrar o círculo para defendê-la. Eis um exemplo da sua defesa de Condorcet: “É verdade que Condorcet é muito enfático quanto à venerável função a ser exercida pela ciência e pelos cientistas, e podemos adivinhar que apesar de Condorcet crer que liberdade e governo dos cientistas sejam compatíveis, os resultados podem se assemelhar mais a uma burocracia científica do que a uma sociedade dos homens genuinamente livres: é entretanto necessário que acreditemos nas palavras de Condorcet. Em sua longa e apaixonada apreciação sobre a educação, Condorcet sublinha a importância de educar o maior número possível de indivíduos nas leis e técnicas da ciência para disseminar o conhecimento científico e as invenções tão amplamente quanto o permitir a população mundial; propõe o mesmo para as artes. Cada homem na condição de cientista ou artista – esta seria a reconstituição correta do sonho de Condorcet em relação à melhoria futura. Acredito que esse futuro que Condorcet fundamenta em pilares científicos é diferente do preconizado por Bacon na Nova Atlântida, e a sociedade que imagina tem um caráter mais liberal.” Muitos dos mocinhos arrolados como liberais estão nessa situação de quadratura do círculo. No entanto, Nisbet é razoável ao diferenciá-los daqueles que nem tentam valorizar a liberdade individual: “Para Turgot e para Spencer, a liberdade sempre significou liberdade contra qualquer tipo de opressão – política, religiosa e assim por diante, e liberdade para desenvolver faculdades individuais, as potencialidades e os talentos com a menor coerção ou liderança possíveis. A [outra] ideia de liberdade […] difere muito da anterior. Agora a liberdade é inseparável da comunidade proposta – política, social, racial ou qualquer outra – e do emprego da coerção e de uma rigorosa disciplina, quando necessária. Só através da consciência de si próprio […] que se considerasse parte orgânica de um estado absoluto é que o indivíduo iria alcançar, na perspectiva de Hegel, a verdadeira liberdade – uma ‘liberdade mais elevada’ do que a estabelecida por alguém como Adam Smith.” Para mim, o autor mais notório na tentativa de quadrar o círculo é Rousseau, que pretende “obrigar a ser livre” após alterar a natureza humana de modo que um indivíduo se tornasse parte indissociável de um novo organismo regido pela Vontade Geral. O xis da questão é que Rousseau pressupõe a coerção; os autores arrolados entre os mocinhos, não.

Se ser liberal implica uma fé na sabedoria estritamente individual para tocar uma sociedade em conjunto, essa fé pode ser traduzida numa aposta feita durante um experimento social

Pois bem: o crivo de Nisbet é preciso, mas continuamos às voltas com o fato de que se trata da quadratura do círculo. Enquanto os mocinhos pretendem que o indivíduo, após aprimorar o seu cérebro por meio do aprendizado da ciência moderna e das artes, ficará bom, os vilões creem que o indivíduo precisará de umas boas pauladas para ficar bom. Deixemos de lado a ideia de “bom” que se possa ter: há uma controvérsia relativa a fatos aqui. “Dê liberdade a todos e tudo dará certo”, dizem os pensadores caros ao liberalismo. Já os iliberais dizem o contrário: é preciso coerção e direção.

Se ser liberal implica uma fé na sabedoria estritamente individual para tocar uma sociedade em conjunto, essa fé pode ser traduzida numa aposta feita durante um experimento social. Ao que parece, esse é, no plano individual, o mesmo problema que a democracia liberal vem enfrentando no plano coletivo. “Dê a democracia a um povo”, diziam os liberais e a burocracia dos EUA, “e nenhum jamais quererá trocá-lo por regime político algum!” No entanto, agora os liberais e a burocracia dos EUA dizem que o povo é fascista e precisa de umas pauladas para aprender a ser democrático. No fundo, o problema da atual ordem social é uma profunda incompreensão da natureza humana, ainda no plano individual. Os pós-liberais, que leram Nisbet, afirmam isto do liberalismo e estão certos.

A leitura de Nisbet serve também para colocar em xeque as nossas ideias do que seja o liberalismo histórico. Por exemplo: Condorcet era um nobre francês que morreu apoiando a Revolução Francesa, mesmo que tenha se suicidado para evitar a execução pelos jacobinos. E, ao mesmo tempo, era uma inegável influência sobre o liberalismo e o surgimento das ciência sociais. Nisbet mostra como Turgot (do Ancien Régime), Adam Smith, Condorcet e os Patriarcas da Independência dos EUA se liam e se influenciavam, e tinham em comum essa e essa aposta no indivíduo. Parece que em algum momento um nacionalismo inglês resolveu revisar a história para forjar uma oposição entre a franceses estatistas e ingleses individualistas, quando na verdade até a expressão laissez faire trai a origem francesa do liberalismo econômico.

Algo que vale ser mencionado, e que deve ter sido seminal para a crítica de Deneen aos patriarcas dos EUA, é a erudição de Nisbet permitiu-lhe notar que os Patriarcas não ligavam tanto assim para a liberdade individual como fim em si mesma, pois viam-na antes como mola do progresso. Cito-o: “A melhor maneira de exemplificar o respeito pelas artes e ciências na época dos patriarcas e a íntima relação entre conhecimento e progresso é chamando a atenção do leitor para o artigo 1, seção 8 da Constituição, que diz: ‘O Congresso terá o poder […] de promover o Progresso da Ciência e das Artes práticas, assegurando, por tempo limitado, aos Autores e Inventores o Direito exclusivo sobre seus respectivos Escritos e Descobertas.’ O Dr. Robert Godwin, o eminente constitucionalista – a quem fico grato pela indicação – acrescenta que este é o único momento em toda a Constituição (evidentemente sem contar as emendas) na qual aparece uma referência explícita a ‘direito’ ou ‘direitos’ individuais. No juízo dos elaboradores da Constituição, no sentido de gerar ou promover a prosperidade e o bem-estar dos norte-americanos, não havia nada mais importante do que assegurar a criatividade da mente humana.”

Fica a recomendação, portanto, de ler a História da ideia de progresso para encontrar um fio condutor que ata liberalismo e tecnocracia. Mas há ainda algumas aporias que ficam para a próxima.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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