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Audiência no Senado americano sobre regulação de criptomoedas após o colapso da FTX, de Sam Bankman-Fried.
Audiência no Senado americano sobre regulação de criptomoedas após o colapso da FTX, de Sam Bankman-Fried.| Foto: EFE/Lenin Nolly

No Brasil, é possível descontar uma bagatela do imposto anual (6%) doando para alguma instituição de caridade. Nos EUA, como descobri traduzindo este texto, não parece haver percentual fixo, ao menos nos impostos federais. O autor acha que as doações devem ser de 10% para pessoas da condição dele. Longe de mim querer saber dos detalhes tributários daquele país com federalismo forte, onde as leis variam muito de estado para estado. Fato é que existem instituições chamadas de "501(c)(3)" que podem receber o dinheiro que o contribuinte preferir dar a elas em vez de dar aos cofres públicos federais.

Outra diferença relevante é que no Brasil temos uma limitação temática das instituições que podem captar dinheiro de imposto: cultura, esportes, assistência social (voltadas para menores ou idosos) e saúde. Ou seja, instituições que fazem um trabalho que está dentro do escopo do Estado, de modo que faz sentido tirar do imposto para dar a elas. Nos EUA, não salta à vista nenhum índice público de causas liberadas pelo governo para captar, mas antes o caráter filantrópico ou não-lucrativo da instituição. Nos EUA, pode ser voltada à religião e à defesa dos animais.

No Brasil, consideraríamos um atentado à laicidade do Estado trocar a Igreja pela União como recebedora de impostos. Para piorar, a histórica neutralidade dos EUA perante as religiões acaba prevendo um tratamento isonômico para instituições bem esquisitas. Exemplos são a Church of Satan, surgida na Califórnia em 66 e da qual já se originaram novas denominações satanistas, e a própria Igreja do Monstro de Espaguete Voador, criada por ateus na Pensilvânia em 2005.

A ideia deles era ser uma reductio ad absurdum da prática de dar privilégios a qualquer grupo de malucos que se institucionalize em forma de igreja. O que a desencadeou foi a exigência de protestantes criacionistas que queriam ter a sua verdade respeitada na aula de ciências. Daí os ateus fizeram uma religião-paródia que reivindicaria sempre os mesmos diretos em situações como essa, exigindo, por exemplo, que a escola respeitasse a sua crença de que o mundo foi criado por um monstro de espaguete que fez um anão, em vez de Adão e Eva, segundo consta no Evangelho do Monstro do Espaguete Voador.

A neutralidade moral do Estado é uma coisa boa? No caso em tela, creio que a lembrança da existência de uma igreja satanista sirva para mostrar que não é boa coisa. Mas o próprio texto já mostra isso, e de uma maneira bem mais drástica: aprendemos que Peter Singer, além de filósofo defensor da vida animal em detrimento da humana, acumula ainda a função de ongueiro. Singer, que já resenhei aqui, defende que é correto matar bebês após o nascimento porque eles ainda não são pessoas, ao contrário de um chimpanzé em idade adulta. Em vez de ser visto como um monstro, Singer é visto como muito bonzinho por defender os animais e dá aula de ética em Princeton. Se alguém apontar que esse amor à vida animal, capaz de colocá-la acima da humana, aproxima Singer de nazistas como Göring e o próprio Hitler, ele poderá se esconder atrás do fato de ser judeu e, quem sabe, tascar uma acusação de antissemitismo.

Charge com Göring saudado por animaizinhos após proibir a vivissecção. Fonte: <a href="https://upload.wikimedia.org/wikipedia/en/f/f8/AnimalRightsNaziGermany.jpg">Wikimídia</a>.
Charge com Göring saudado por animaizinhos após proibir a vivissecção. Fonte: Wikimídia.

O tamanho do vespeiro

No Brasil, a atualização do complexo de vira-latas inclui acharmos que nós somos horríveis por sermos estatistas, ao passo que nos EUA vigora a liberdade. Assim, para situar o brasileiro nessa querela, é bom trazermos a isenção fiscal mais famosa do país: a Lei Rouanet. Com ela, o fisco deixa de arrecadar todos os impostos do empresário, que destina uma parcela ao fomento da arte e da cultura. Os defensores dessa lei costumam apontar que ela transfere do burocrata para o empresário a destinação do dinheiro gasto em cultura, descentralizando a escolha. Já os detratores dessa lei costumam reclamar com muita estridência que os artistas embolsam dinheiro público, como se não houvesse um empresário no meio do caminho.

Não tenho uma opinião formada sobre a Lei Rouanet. O que devo apontar, porém, é que os artistas mais sem noção são os de edital. Por exemplo: tinha um sujeito em Salvador que na época do “golpe” fazia performances equilibrando uma Constituição na cabeça e declamando coisas que ele julgava ser poesia. Era constrangedor de assistir. O autodeclarado artista vivia de sua arte graças aos editais de cultura. Com uma banca politicamente correta, aprova-se qualquer artista politicamente correto.

O diabo é que os empresários também escolhem botar dinheiro nessas coisas de qualidade duvidosa. Um amigo meu, que organizava eventos culturais, conta que ficou impossível captar Rouanet desde o Queermuseu. Você pode relembrar o caso aqui. Em resumo, no ano de 2017 houve o maior barraco em Porto Alegre porque o Santander patrocinou, via Rouanet, uma exposição com pornografia e zoofilia aberta para crianças, além de blasfêmias. O resultado, segundo esse amigo meu, foi que os empresários acharam que era mais fácil pagar imposto do que dar dinheiro à cultura, já que a arte (ou “arte”) pode dar muita dor de cabeça.

O assunto surgiu porque eu achei muito decadente um evento cultural local. Hoje o evento depende do estado e parece feito para atender ao gosto (ou falta de gosto) da turma lacradora que toma conta dos editais. Agora, vale lembrar que isso é minha perspectiva num estado petista, que pode ser bem parecida com a de um estado tucano nesse quesito. Resta saber como é em estados onde os governadores se elegeram disputando a tapa o título de mais bolsonarista.

Muito bem: o Queermuseu causou animosidade especial porque o banco deixou de dar dinheiro aos cofres públicos para direcioná-los à propaganda da ideologia de gênero por meio da arte. Isso quer dizer que para muita gente as isenções fiscais do Estado não deve ser moralmente neutras sequer no âmbito da arte.

Agora imaginem um Estado no qual as isenções fiscais são moralmente neutras no âmbito das causas (tipo apoiar Singer) e no qual se pode desviar dos cofres públicos uma soma muito maior.

"Altruísmo eficaz" lá na Conchinchina

Mas calma que o vespeiro é ainda pior. No Brasil, sejam os 6% do imposto de renda ou o dinheiro da Rouanet, o fato é que as isenções se voltam para o âmbito nacional. Já nos EUA, a turma de Singer, que inclui o golpista vegano e ex-rei das criptomoedas Sam Bankman-Fried, tem uma ideia de “altruísmo eficaz” que, no frigir dos ovos, redunda em só fazer caridade em país pobre. Em salvar as crianças da África, por assim dizer, em vez de olhar para o filho da viciada em metanfetamina (que é a droga de pobre nos EUA). O argumento é simples: um dólar vale mais onde Judas perdeu as botas do que nos EUA; logo, se você direcionar seus dólares para a caridade no estrangeiro, seu dólar será realmente eficaz, porque valerá mais e salvará mais vidas.

Agora uma recapitulada no noticiário. Sam Bankman-Fried, um magnata precoce adepto do “altruísmo eficaz”, dono da casa de câmbio FTX, foi o segundo maior doador individual do Partido Democrata. O primeiro foi Soros. Por meio de Biden, o Partido Democrata botava (e bota) um monte de dinheiro público na Ucrânia. A FTX criou um meio de arrecadar doações em criptomoedas para o governo ucraniano. Uma empresa ucraniana de criptomoedas e o Ministério de Transformação Digital da Ucrânia se aliaram nessa campanha por doações. Depois de a FTX quebrar, as “agências de checagem de fatos” correram para negar a “teoria conspiratória” de que os democratas lavam dinheiro na Ucrânia.

Houve quem lembrasse, à época, que um eventual esquema de lavagem de dinheiro não seria tão diferente do que já acontece com a Planned Parenthood, porque ela receberia dinheiro do governo graças ao Partido Democrata, e depois doaria ao próprio Partido Democrata.

Acontece que as agências de checagem de fatos já desmentiram essa fake news. A Planned Parenthood não doa. Ela própria é uma organização 501(c)(3), para a qual o contribuinte dos EUA pode doar e abater do imposto. Por isso, a lei a impede de doar para partidos. Em vez disso, quem doa para “uma campanha de mobilização para o voto” é a “Planned Parent Votes”, uma instituição diferente da Planned Parenthood. Então, tudo certo! A gente viu bem, no TSE, como são imparciais as campanhas de mobilização para o voto, botando Anitta pra mandar o jovem ir votar.

(A Planned Parenthood tem uma porção de subsidiárias, e o fact checking não explica se esse é o caso. A instituição não parece ter um site oficial; a resposta que encontrei foi que a Planned Parenthood Votes seria um “Super-PAC” da Planned Parenthood. Por isso não poderia doar para partidos e, em vez disso, doa para campanhas de conscientização.)

Manda quem tem dinheiro — e compra o Estado

O que essa lei tributária dos EUA desenha é um Onguistão imperialista. Se você é um multibilionário extravagante com ideias ofensivas à maioria da população do seu pais, é seu direito desviar dos cofres públicos uma imensa soma que seria imposto e colocar numa ONG de sua preferência. É claro que você pode fundar uma ONG e botar um laranja à frente. E você pode, também, transformar essa ONG numa grande prestadora de serviços para o governo, como a Planned Parenthood, cujos doadores neomalthusianos deixam de direcionar seu dinheiro para o governo eleito.

Com um operador financeiro, você pode ainda levar dinheiro de “caridade” para lavar no estrangeiro. A África está longe demais para averiguarem o seu trabalho — e o contribuinte às vezes acha que a África é um país. Como o filósofo oficial da Planned Parenthood já ensinou, o altruísmo só é eficaz em lugares distantes onde dá para lavar dinheiro.

Ao cabo, a neutralidade do Estado nos EUA implicou isso: manda quem tem dinheiro, e quem tem dinheiro compra o Estado. Modestamente aplicada no Brasil com a Lei Rouanet, já vimos aonde isso leva: a banqueiros promovendo ideologia de gênero.

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