Ouça este conteúdo
Volta e meia aparece o assunto da queda da literatura. Eu tendo a crer que o problema não seja a queda da literatura em si, mas sim a queda do interesse pela literatura. Se Camões ressuscitasse entre nós e estivesse inspirado, não adiantaria nada, porque não haveria ninguém para prestar atenção. A desatenção é tamanha que a turma encarregada das letras olharia primeiro para o sexo do escritor, depois para a cor, depois para a orientação sexual. “Do you burn the donut?” seria a pergunta ao autor de “Ao desconcerto do mundo” – mostrando que o mundo anda mesmo num grande desconcerto. Havendo resposta negativa, a cor e o sexo falam por si, de modo que Camões seria mero homem branco cis hetero. Assim como Cervantes, Shakespeare, Dante… Na arte é como na ciência e na educação: se você decidiu que a prioridade da escola é formar “cidadãos críticos” (isto é, com a ideologia do professor), você decidiu que a prioridade da escola não é transmitir conhecimento; se você decidiu que a prioridade da universidade é dar diplomas a negros, você decidiu que a finalidade da universidade não é produzir conhecimento. E se você decidiu que “representatividade” (isto é, características individuais do artista) deve ser a finalidade no mundo das artes, você decidiu que a obra não é a finalidade. Bota uma lésbica gorda aí escrevendo qualquer coisa, que está bom. Então nem olharíamos o que Camões ressuscitado escreveu.
Aos bons escritores que há por aí – e há, com certeza –, fica o poema sobre o desconcerto do mundo: “Fui mau, mas fui castigado. / Assim que, só pera mim, / Anda o Mundo concertado.”
Nos anos 70
Nos anos 70, o romance da moda no Brasil era o Romance d’A Pedra do Reino e o Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna. Passa-se no sertão da Paraíba durante o Estado Novo e foi publicado em 71, isto é, no governo Médici. Prefacia a obra Rachel de Queiroz, a cuja casa ia de avião o ex-presidente Castello Branco durante seu acidente fatal.
Faço essas anotações que misturam cronologia e política porque o romance é marcado pela experiência de atribulações políticas que infligiram o seu autor. A capital da Paraíba não se chama João Pessoa? Ora, a cidade existe desde o século 16, ao passo que o homem chamado João Pessoa nasceu em 1878. Morrera em 1930 em meio ao tumulto da Revolução capitaneada por Vargas. Com a figura de João Pessoa, a Paraíba tornara-se aliada do Rio Grande do Sul na implosão da República Velha. A frase “Nego”, de João Pessoa, foi posta na bandeira do estado da Paraíba. Assassinado, o homem tornou-se mártir dos revolucionários vitoriosos. Quem o matara? Segundo se acreditava – e isso bastava –, João Suassuna, o pai de Ariano. O homem terminou, também ele, assassinado. João Suassuna deixou viúva e uma montanha de filhos, todos crianças.
As atribulações no estado da Paraíba incluíram uma verdadeira guerra civil, a chamada Guerra de Princesa, quando opositores de João Pessoa se revoltaram contra a República sediada no Rio de Janeiro e criaram o Território Livre de Princesa, uma área do Semiárido na divisa da Paraíba com Pernambuco. O território não limitava o ar monarquista ao nome, e, como o leitor pode ver pela ilustração deste texto, os revoltosos paraibanos tinham uma bandeira cheia de heráldica, coisa com jeito bem medieval.
Pois bem: Ariano Suassuna é um grande apologista da faceta medieval do Nordeste (creio que na arte do século 20 haja dois; ele e o músico Elomar). O livro traz uma porção de xilogravuras do próprio Ariano, que criou diversos brasões para atestar a nobreza dos personagens – mas brasões que não deixam de botar uma onça aqui ou ali, porque os medievalismos europeus estão imbricados com a brasilidade.
Lado político?
A personagem principal é o narrador, Quaderna. Tal como o Quixote, ele tem duas realidades. Pela realidade nua e crua, Quaderna nada mais é que um solteirão remediado do sertão da Paraíba que tem uma pequena herança da qual ele não extrai renda (a saber: duas casas em que ele deixa morar de graça os seus dois mestres – um filósofo e um artista) e um emprego na biblioteca municipal. Quaderna é levado à polícia por subversão. Na outra realidade, Quaderna é o legítimo Rei do Brasil: um homem castanho do sertão, descendente de grandes cangaceiros e de homens que estiveram ao lado de Dom Sebastião na batalha de Alcácer Quibir antes de virem ao Brasil. A casa de Bragança seria um reino estrangeirado e impostor. Além disso, como signo de sua nobreza, Quaderna pretendia sagrar-se Gênio da Raça brasileira com um romance que seria a maior obra da Literatura Universal, superando Homero e todos os outros gênios da raça humana, misturando todos os gêneros literários. Mas Quaderna, graças à sua herança judaica, tinha um cotoco (aprendemos no romance que a Paraíba era acusada por Pernambuco de ter judeus demais, e os judeus teriam um rabinho do diabo sobre o cóccix – o cotoco). O irrequieto cotoco não deixava Quaderna se sentar para escrever, de modo que seu depoimento à polícia seria sua grande oportunidade de ditá-lo à escrivã (uma jovem loura e bonita), de modo que o romance poderia ser escrito enquanto ele andasse para um lado e para o outro. Por isso, Quaderna conta tudo, tintim por tintim, sem se preocupar com as acusações de subversão.
Estas apareceram por causa dos seus dois mestres. Clemente era um orgulhoso “negro-tapuia” bacharel em Direito. Desafiado por Quaderna, tinha certeza de que ele próprio iria escrever a grande obra de gênio da raça humana: a filosofia do penetral. A obra seria em prosa, porque poesia é coisa de efeminados; coisa de gênio é prosa, é filosofia. Clemente desprezava o elemento europeu na formação brasileira e era um comunista – eis por que era um subversivo. No Estado Novo, o outro grupo perseguido era o dos integralistas – e esse era o do poeta Samuel Wandernes. Este era um católico integralista que desprezava os “cafres” e os sertanejos, orgulhava-se do seu sangue flamengo-ibérico e enxergava no Brasil uma Nova Lusitânia. Negava qualquer aspecto positivo das contribuições negras e indígenas para a formação do Brasil. Também desafiado por Quaderna, tinha certeza de que iria compor a obra do gênio da raça humana, que seria um poema.
Quaderna estava sempre acompanhado pelos seus dois mestres. O trio vivia se esgrimindo em questões literárias, sem qualquer pretensão de ação concreta. Quaderna pretendia sintetizar e absorver as influências de ambos para superá-los. Considerava-se um monarquista de esquerda e pretendia que sua obra de gênio da raça misturasse verso e prosa, além de ter um mistério mais insolúvel do que qualquer outro: como é que seu tio, D. Pedro Sebastião, fora assassinado na torre de uma fortaleza sertaneja hermeticamente fechada, com a porta trancada do lado de dentro?
Mistério
Diferentemente do Quixote, Quaderna socializa o seu desvario. Se Vögelin pôde colocar o Quixote como uma espécie de totalitário avant la lettre, porque vive conforme uma segunda realidade que nega a primeira (você pode achar muito bonita a bravura do Quixote quando não é dono de moinhos de vento), Quaderna projeta para o futuro o seu desvario e convida o resto do mundo – os mestres, as pessoas da vila, os parentes, o delegado, a escrivã – a participar dele.
Quaderna tem um rival na aspiração ao trono: o filho de D. Pedro Sebastião, que é Sinésio, o Alumioso. Entende-se, na realidade nua e crua, que se tratava de um rapaz bom, filho de um usineiro, que fora assassinado por briga de herança, mas o seu corpo não aparecera e seu pai deserdara o irmão mais velho. Assim, a propriedade fica à espera do rapaz amado por todos, que ainda deixara uma noiva.
O rapaz, claro está, não é ninguém senão Dom Sebastião. Que, segundo o romance, vive desde sempre, e tanto faz que seja São Sebastião ou Dom Sebastião, Dom Sebastião ou Sinésio, o Alumioso. Um dia ele há de chegar e renovar este sertão, ou este mundo – tanto faz.
No fim (que eu não vou contar), o livro é sobre a importância do mistério. Tem valor o fato de não enxergarmos as coisas todas e projetarmos coisas que sabemos impossíveis de serem apreendidas desde já.
Impossível hoje
Para registrar a mudança do clima intelectual, vejamos: 1) Era possível viver os ditos anos de chumbo sem fazer um livro partidário; 2) Era possível fazer um livro muito marcado pela política sem ser um livro partidário; 3) Era possível escrever um livro com personagens integralistas e comunistas ao mesmo tempo sem demonizar nenhum dos dois; 4) Era possível amar o misterioso.
Fala-se mal hoje do sebastianismo. Eu não falo. Hoje eu leio textos idolatrando Zelensky e penso na falta que faz o mistério. Zelensky se apresenta transparente nas redes sociais, e ali está o herói. Não podemos esperar nada melhor do que aquilo; o bom é um dado.
Já o D. Sebastião sempre estará, conscientemente, além da imaginação de meros mortais. É um mistério. Se o bom é um mistério e não um dado, estamos sempre convidados a imaginar o melhor.
Esse mundo fixo de gente unidimensional, de bandidos e mocinhos, de heróis e vilões, é um mundo de gente sem imaginação. Não é de admirar que falte público qualificado para a literatura.