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O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro
O ditador da Venezuela, Nicolás Maduro| Foto: EFE/Miguel Gutiérrez

Não há oposição fundamental entre ser evangélico e aderir ao petismo. O próprio Malafaia, que hoje deve ser o maior expoente do antipetismo evangélico, defendeu Lula em 2002 contra a "campanha do medo" do seu adversário. É claro que muita água correu de lá para cá, e espero ter dado um bom rascunho dessas mudanças culturais nas relações entre o petismo e grupos religiosos em meu artigo "Pró-vida versus pró-escolha: o que mudou no debate sobre aborto no Brasil em duas décadas".

Mas este mês tanto o veículo de esquerda Intercept Brasil quanto esta Gazeta mostraram um contraexemplo tão fresco quanto premente: a aproximação entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e Nicolás Maduro.

As razões não são nem um pouco misteriosas: dinheiro e poder. Maduro ano passado criou um programa chamado “Minha Igreja Bem Equipada” que paga 10 dólares para pastores e subsidia a compra de móveis para igrejas. Mas a crermos no Intercept, que ouviu ex-pastores da Universal, a menina dos olhos de Edir Macedo seria a concessão de TVs na Venezuela. Maduro ganharia com o crescimento da Universal porque a Conferência Episcopal da Igreja Católica e as igrejas Batistas são contra o regime; assim, sendo a Venezuela um país de maioria cristã, viria bem a calhar uma igreja cristã favorável ao regime. Ronaldo Didini, ex-pastor da Universal ouvido pelo Intercept, ajudou Edir Macedo a transmitir seus programas da Record em Angola e Moçambique, e crê que ele continue com a mesma estratégia de expandir-se por meio de concessões de TV.

Pois bem: dia desses eu lia A persistência da raça (Civilização Brasileira, 2005), do antropólogo Peter Fry, nascido no Império Britânico, que fez trabalho etnográfico na antiga Rodésia (atual Zimbábue) antes de se estabelecer no Brasil e naturalizar-se brasileiro. Sua vida inclui também um conhecimento de Moçambique, sobretudo do período da abertura democrática, quando Peter foi para lá a serviço da Fundação Ford. E testemunhou, nesse processo, a expansão das igrejas evangélicas no país.

Moçambique, um projeto português

Serei o mais sumária possível na história de Moçambique. Na África Austral, o Império Português e o Império Britânico eram vizinhos. Portugal sonhava unir Angola a Moçambique; Cecil Rhodes (uma espécie de Elon Musk da época) conseguiu botar uma Rodésia no meio do caminho. Portugal e Inglaterra tinham, também, concepções muito diferentes de como lidar com os negros: a nação católica sempre projetou a assimilação e a integração; a protestante sempre projetou o apartheid. Quanto à assimilação, a Inglaterra já teve uma fase de plantar na África, em Serra Leoa, uma comunidade de negros libertos que imitava os ingleses em tudo, mas sem miscigenar. Depois, porém, passou a defender, igual aos bôeres, que civilizações ou raças diferentes têm desenvolvimentos diferentes, que devem acontecer de maneira separada, sem bagunçar com misturas. Algo que lembra o “separados, mas iguais”, da Era Jim Crow dos EUA.

Notem que nem o Brasil, nem Portugal, criaram países para mandar os negros “de volta” para a África em meio às campanhas abolicionistas. Já a Inglaterra e os Estados Unidos criaram Serra Leoa e a Libéria, respectivamente. Mais tarde, os sionistas (que eram judeus ateus) conseguiriam patrocínio inglês para mandar os judeus “de volta” para o Oriente Médio.

O jovem Peter, quando transitava entre a Rodésia inglesa e o Moçambique português, teve oportunidade de observar a maior discrepância entre os dois projetos coloniais: na Rodésia, brancos e negros não dividiam os mesmos espaços e não trocavam palavra entre si; em Moçambique, os brancos, negros e mulatos não só frequentavam os mesmos espaços, como ainda conversavam na mesma língua! A partir desse choque, o jovem antropólogo começa a se interessar pelas diferenças entre o projeto inglês e o português, e por isso acaba vindo parar no Brasil. Começou refratário. Chegou a fazer, de improviso, um artigo errôneo, segundo o qual a feijoada é um símbolo negro do qual as elites brasileiras se apropriaram: o movimento negro adorou, Peter se corrigiu (o mea culpa está nesse mesmo livro que citei), mas os militantes não deram bola. Com o tempo, porém, Peter mudou de ideia: acabou concluindo que a sanha anti-Freyre nada mais era que o repeteco dos argumentos chauvinistas de Perry Anderson contra o modelo português (em Portugal e o fim do ultracolonialismo), considerado inferior ao colonialismo inglês. A contragosto, Peter foi acusado de ser um nacionalista brasileiro e aceitou a sina de defender a democracia racial de Gilberto Freyre.

Moçambique, um projeto britânico

Moçambique ficou independente de Portugal e tornou-se, primeiro, socialista, sob o governo de Samora Machel. Não obstante, o fim do domínio de Salazar abriu os caminhos para que a Inglaterra crescesse os olhos para o seu vizinho africano rico em minérios. Cito Peter: “Depois da independência de Moçambique (1975) e de Zimbábue (1980), foi formada uma estreita aliança entre os governos de Margaret Thatcher e Samora Machel, ícones da economia de mercado e do socialismo, respectivamente. Aparentemente, os dois líderes admiravam-se mutuamente. O governo britânico foi responsável pelo treinamento da Frente de Libertação Nacional (Frelimo) no combate contra a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), lutando, em teoria, a favor da democracia e do livre mercado” (p. 46). A Renamo, a seu turno, recebia financiamento dos brancos da Rodésia e da África do Sul, bem como de “algumas igrejas fundamentalistas norte-americanas interessadas em apoiar a ‘democracia’ contra o ‘comunismo’ ” (p. 71).

A guerra civil entre Frelimo (o grupo guerrilheiro comunista que decretou a independência) e Renamo durou desde 1977 até 1992. Em 1990, após a queda do Muro de Berlim, Moçambique adota uma nova Constituição liberal; no final de 1995, Moçambique passa a integrar oficialmente a Commonwealth, até então o único país que nunca havia sido colônia britânica a ingressar.

Em meio a essas mudanças, lá vai Peter Fry a serviço da Fundação Ford acompanhar os inúmeros “projetos” para o país, tocados pela USAID, ONGs etc.

O fim do universalismo

O Frelimo contrariou expectativas e conseguiu se firmar no poder. No entanto, o partido mudou completamente. Cito Peter: “a guerra civil em Moçambique, como um acontecimento crítico, anunciou não apenas o fim do socialismo e sua substituição pela ‘democracia’ e a ‘economia de mercado’; ela resultou também no surgimento de sérias dúvidas sobre o valor dos velhos universalismos da ‘assimilação’ e do ‘marxismo-leninismo’ e na introdução dos imperativos discursivos da ‘diversidade’ e do ‘multiculturalismo’.

“Não é uma coincidência que esta mudança de direção tenha ocorrido ao mesmo tempo em que a dependência de Moçambique se transferiu do bloco soviético para a Europa Ocidental e os Estados Unidos. A ‘comunidade’ de desenvolvimento internacional, desiludida com as antigas estratégias de modernização universalistas, orienta-se para o ‘desenvolvimento comunitário’, o ‘desenvolvimento sustentável’, a ‘participação’, o ‘empoderamento’, o ‘multiculturalismo’, a ‘diversidade’ e o ‘respeito à tradição local’, valores que têm emergido a partir dos conflitos raciais e étnicos em seus países de origem” (p. 78).

Expliquemo-nos: no período português, Moçambique era guiado pelo universalismo da Igreja Católica; mas, não conseguindo aculturar os africanos de uma vez, mantinha um indigenato no qual os usos e costumes eram respeitados provisoriamente. Depois, os comunistas, que eram cientificistas e ateus, tacharam de “obscurantistas” todo o mundo que não era ateu (ou seja, todo o mundo que não eles mesmos), perseguindo inclusive as tribos que viviam segundo usos e costumes tradicionais. Fazer do africano um católico ou transformá-lo no Novo Homem Socialista eram dois projetos que não conheciam barreira de raça; eram, portanto, projetos universalistas. Os comunistas, então, perseguiram ferrenhamente aqueles que os brasileiros chamariam de macumbeiros – coisa que a Igreja Católica não havia feito.

Mas aí entrou em cena o multiculturalismo plantado pelo establishment do Atlântico Norte. Com a "diversidade" de "saberes e conheceres", os comunistas moçambicanos de Thatcher se viram obrigados a mudar completamente o seu discurso para manter o poder.

Voltemos a Peter: “Estas ideias, evidentemente, concordam com a crença, cada vez mais difundida pelo neoliberalismo, de que as estruturas do Estado devem ser reduzidas para permitir a descentralização e o aumento da autonomia das ‘comunidades locais’. O novo foco na descentralização e na ‘tradição’, portanto, não é difícil de ser financiado” (p. 78). E aí Moçambique se encheu de antropólogos ongueiros que codificavam (nem sempre de maneira correta) as “tradições” e transformavam-na em normas. As lideranças tradicionais (chefes de tribos, curandeiros etc.) eram cooptadas com rios de dinheiro vindo de fora; e, em vez de dar medicina ocidental aos moçambicanos, os curandeiros é quem ganhavam o dinheiro – ainda que o curandeirismo tenha existido desde sempre, sem precisar de grandes somas.

Resultado de décadas de “desenvolvimento sustentável”

Depois de anos sendo tocado por essa moderníssima agenda, Moçambique não se tornou exatamente um lugar próspero e desenvolvido.

A trajetória de Peter Fry, que se tornou um dissidente dentro da Fundação Ford, sem nunca manifestar a crença em suas más intenções ou nas más intenções das potências ocidentais, torna ainda mais interessante o fato de que as coisas descritas por ele se encaixam na tese de Lorenzo Carrasco segundo a qual as oligarquias do primeiro mundo querem estabelecer um apartheid tecnológico, replicando mundo afora o colonialismo praticado na África. Além do livro Máfia Verde (ed. Capax Dei), recomendo os seus textos publicados nesta Gazeta, em especial este.

Mas voltemos à vaca fria, que são as igrejas caça-níquel. Tal como no Brasil, tais igrejas dispararam em Moçambique sob os auspícios do neoliberalismo; e, tal como no Brasil, elas o fizeram opondo-se à “macumba”, o que as colocou em choque com o neoesquerdismo multiculturalista patrocinado pelas elites.

O catolicismo é cético quanto à feitiçaria; por isso, ao contrário dos protestantes, não se deu ao trabalho de persegui-lo nos países que formou. As mandingas pagãs são vistas como coisa do populacho, não como coisa do demônio. Na Europa, o paganismo já havia perdido muita força quando apareceu o protestantismo. No Brasil e em Moçambique, porém, as novas denominações protestantes assumiram a forma da macumba, de modo que surgiu uma verdadeira “magia branca” cristã, que fica combatendo as mandingas tradicionais como "magia negra".

Para que um católico e um protestante histórico vão à igreja? Certamente não para pedir ao padre ou ao pastor que tragam de volta a pessoa amada, nem que curem doenças, nem que tragam dinheiro (mesmo que os puritanos apreciassem o dinheiro, eles não esperavam obtê-lo por milagres). Essas são as razões que sempre levaram os supersticiosos às cartomantes, feiticeiras e pais-de-santo; no entanto, são as razões que levam muitos brasileiros e moçambicanos ao pastor.

Em Moçambique, Peter Fry assistiu a uma cerimônia da Igreja Cristã Apostólica de Zion em que um pastor lia o Velho Testamento para sacrificar um bode a fim de que o fiel, um motorista de van, conseguisse engravidar a esposa. Para esses moçambicanos tratava-se, obviamente, de cristianismo e de coisa muito oposta à feitiçaria. Em sua investigação do porquê de trocar os cultos tradicionais por essa mandinga gospel, Peter apontou, em meio a uma série de explicações, o fato de o “cristianismo” demandar menos tempo e dinheiro do que o culto tradicional. Mas é bom frisarmos que demanda dinheiro mesmo assim, e que não é impossível descrever a atividade de pastor de igreja caça-níquel como um esquema de pirâmide.

Penso, portanto, que a expansão de um certo tipo de protestantismo – o das igrejas caça-níquel que prometem milagres – não tem nada a ver com a pauta de costumes, nem com a oposição ao “comunismo”. Em vez disso, é uma atividade econômica que viceja em sociedades sem perspectiva de crescimento. Nelas, há muita gente disposta a pagar por milagres financeiros e a entrar em esquemas de pirâmide, já que as chances de enriquecer pelo trabalho são exíguas. Assim entendemos também por que (no Brasil e em Moçambique) essas igrejas costumam ter mais apelo para os mais pobres.

A Venezuela de Maduro, bem como o Brasil e Moçambique “democráticos” têm, em comum, a desesperança econômica e o crescimento dessas igrejas predatórias.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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