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Fariseus representados em pintura medieval.
Fariseus representados em pintura medieval.| Foto: Duccio di Buoninsegna/Domínio público

Em editorial desta semana, a Gazeta do Povo anunciou já no título o elefante que está na sala: “Monark e o fim da democracia”. O caso Monark mostrou, para além de qualquer dúvida, que não há democracia neste país. Não que seja uma novidade. Faz algum tempo que já é rotina o STF ou o TSE fazerem alguma coisa doida só porque podem, e em seguida choverem opiniões de juristas apontando que a coisa doida é doida. Mas apontam em vão, pois, se os ministros do STF não podem de direito, podem de fato. Em maior ou menor grau, o Ocidente todo é assim, mas o direitista médio do Brasil, exposto a muito olavismo de segunda mão, acha que tudo é culpa do Foro de São Paulo.

Em réplica a mim, Polzonoff disse que “ainda não estamos numa ditadura. Pelo menos não numa ditadura declarada.” Francamente, não sei que tipo de ditadura ele espera para estimular as pessoas a tomarem juízo – o que foi o propósito do meu texto "A Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias". Nem a Coreia do Norte é uma ditadura declarada. Em tese, a “República Popular Democrática da Coreia” é uma democracia que, ano após ano, elege o mesmo mandatário com a quase totalidade dos votos.

Diante do fato consumado de que estamos numa ditadura, que fazer? Vou dizer o que eu não faria: uma lista de pessoas dispostas a apoiar Bolsonaro financeiramente. As mesmas pessoas que juram que os bolsonaristas estão para Xandão como os judeus estão para Hitler, e que garantem que Bolsonaro nada poderia fazer porque o Estado está tomado, deram, com a campanha do pix, uma espécie de Lista de Schindler ao contrário. Vejam bem: a menos que haja um pendor suicida na equação, só posso concluir que os devotos bolsonaristas não levam a sério o que eles próprios dizem, ou têm sérias deficiências de raciocínio. E é possível que se trate das três coisas ao mesmo tempo, já que um histriônico pode não dar valor à própria vida enquanto faz as suas performances afetadas.

Estamos, pois, numa ditadura não declarada, como soem ser as ditaduras modernas

Dificilmente uma seita vai ser grande o bastante para ter um milhão de membros (que parece ter sido a quantidade de doadores da vaquinha). Nos comentários do meu texto, houve leitores que diziam ter doado como uma expressão de gratidão pelo trato na pandemia. É provável que esses leitores não digam, nem da boca pra fora, que são como judeus na Alemanha nazista. Mas provavelmente creem na teoria da “cereja do bolo”, segundo a qual Bolsonaro é um pobre coitado que não poderia ter feito muito mais na presidência.

Entre os comentários, porém, houve também quem expressasse um sentimento idêntico ao meu: o fato de ter votado em Bolsonaro me autoriza mais ainda a criticar o exercício do mandato. Não fazia o menor sentido a mídia woke criticar Bolsonaro pelo decreto de armas, que foi uma promessa de campanha. Mas faz todo o sentido do mundo quem votou nele criticá-lo por ter se revelado um bravateiro incompatível com as promessas eleitorais. Ele dizia que ia fazer e acontecer; agora posa de pobre coitado. O povo lhe deu a faca e o queijo. Bolsonaro não os usou, e agora quer que o povo resolva até os seus problemas financeiros.

Mas vamos à gestão da pandemia. Embora Bolsonaro fosse sem dúvida melhor que o STF, como a tirania sanitária poderia ser exercida sem o Conecte SUS? A ampla digitalização dos documentos dos cidadãos ocorreu no governo Bolsonaro. A cantilena liberal vai atrelar a digitalização à desburocratização, mas definitivamente não é uma boa ideia deixar dados de saúde sensíveis nas mãos de um sistema nacional suscetível a vazamentos e hackers. Não podemos deixar a Petrobrás na mão do Estado porque o PT pode se eleger, mas é uma boa ideia deixar os dados de saúde nas mãos do PT? De nada adianta bradar contra o globalismo do Foro de São Paulo quando se fecham os olhos para as ações do governo Bolsonaro – e digo “governo Bolsonaro” em vez de “Bolsonaro” levando em conta que ele nunca se responsabiliza por nada, nem sequer pela própria vaquinha.

Estamos, pois, numa ditadura não declarada, como soem ser as ditaduras modernas. Qual foi o passo decisivo para o estabelecimento desse estado de coisas, em que o poder se centra num ministro do Supremo? Isso está aberto à discussão; e, se houver historiadores no futuro, certamente o Inquérito das Fake News, iniciado em 14 de março de 2019, será um marco importante. Mas o fato é que a imprensa inflou muito a crença num outro tipo de ditadura: a ditadura populista, na qual um líder de massas carismático comanda um Executivo irrestrito. O único precedente disso no Brasil foi o Estado Novo. Sim, Getúlio Vargas era um anti-liberal, e Bolsonaro, desde 2018, era liberal. Goste-se ou não, ambos foram (e excluo Lula) os maiores líderes de manifestações de massas no Brasil. Bolsonaro certamente foi o maior em números absolutos; levando-se de conta a proporcionalidade, não sei quem foi o maior. Já lancei uma hipótese para explicar por que as massas amaram dois líderes tão diferentes.

Até 7 de setembro de 2021, pois, o Brasil vivia entre dois espectros de ditadura: uma populista, muito falada por apoiadores e detratores, e uma judiciária, chamada por seus apoiadores de “instituições democráticas” e de “globalismo” por seus detratores. O dia 7 de setembro foi a apoteose dessa primeira ameaça. Por meio de demonstrações de forças de ambos os lados, talvez o Brasil pudesse se equilibrar numa democracia precária e estrambólica. Mas não: no dia 9, Bolsonaro anunciou quem manda, e quem manda é o Supremo Xandão. Entre o 7 de setembro de 21 e o 8 de janeiro de 22, o único grupo com poder que ousou contrariar o STF foram as Forças Armadas, cujos comandantes emitiram uma nota afirmando a legalidade das manifestações. Depois da estranhíssima invasão às sedes dos Três Poderes, as Forças Armadas entregaram o abacaxi (isto é, os manifestantes) para o STF, reconhecendo-lhes a autoridade suprema. Mas tiveram mais coragem que Bolsonaro. E as manifestações das frentes dos quartéis poderiam ter minguado se Bolsonaro lhes garantisse que não haveria nenhuma reviravolta. As manifestações evoluíram para uma psicose coletiva da qual jamais participei, e que denunciei em janeiro deste ano.

É cretina toda comparação entre “judeus” e bolsonaristas pelo simples fato de que ser bolsonarista é uma questão de escolha; ser “judeu” na Alemanha nazista, não. Para os nazistas, era judeu quem tinha ancestrais judeus. Ninguém escolhe ancestralidade. Edith Stein virou freira; os nazistas buscaram no convento e levaram pra câmara de gás. Karl Popper foi criado como luterano, mas se não conseguisse fugir, seu destino seria o mesmo. A família Wittgenstein, mestiça e protestante, também teve que ir embora por ser considerada judaica. O grupo de vítimas da Alemanha nazista que pode ser considerado similar aos bolsonaristas é o dos comunistas, pois comunista escolhe ser comunista, e essa escolha punha-os direto na mira do Reich.

Mas um comunista alemão sabia quais riscos corria quando escolhia ser comunista e cerrar fileiras contra o nazismo na Alemanha (a despeito do pacto Molotov-Ribbentrop). Não à toa, eram precavidos e cheios de segredos. Já os devotos do bolsonarismo parecem se ver predestinados ao martírio. É como se não enxergassem a própria liberdade. Creio que isso se deva a influência neopentecostal, já que crentes romantizam o povo judeu e, ao mesmo tempo, creem na predestinação. Nesse cenário, faz sentido você querer ser o judeu da Alemanha nazista (sem entender o que era isso) e torcer para aparecer um campo de extermínio logo na sua frente. Certeza garantida de salvação. Salvação individual. O Brasil que se dane.

O autoexame só é uma virtude se não se reduzir a um ensimesmamento

Se fosse apenas a própria pele, a martirizada, menos mal. O pior de tudo é a turma que arrisca o pescoço alheio para faturar views e pedir pix. Vide o caso de Guilherme Fiuza, que teve o infortúnio de cair no gosto das seitas bolsonaristas. Suas falas veementes e corajosas – mais veementes e corajosas do que as do próprio Bolsonaro quando presidente – puderam ser cortadas, editadas e postadas fora de contexto um milhão de vezes por perfis e canais de “apoio” ao jornalista. Depois, quem sofre assédio judicial não é nenhum desses bonitos donos de página, é o próprio Fiuza, que deu a cara a tapa. Do mesmo jeito, os sectários exigem o tempo inteiro que a imprensa "diga verdades" sem se preocupar nem um pouco com a segurança dos jornalistas e colunistas. Agora é tempo de driblar censura com inteligência, e não de dar shows de histeria que levam direto para a cadeia.

Polzonoff não quis entender nada ao olhar para o sensacionalismo dos bolsonaristas. O autoexame só é uma virtude se não se reduzir a um ensimesmamento. Escrevo sobre os outros, em vez de escrever sobre mim mesma, porque julgo que os outros estão interessados na sociedade, e não na minha pessoa. Ensimesmamento é só uma forma de narcisismo às avessas.

Acho que a caixa de comentários de Polzonoff mostra o quão errado ele entendeu as coisas. Tal como na minha, há um monte de gente me chamando de Reinaldo Azevedo. Então faço aqui um “exame de consciência” público para dizer que me orgulho das minhas posições sobre os temas mais sensíveis que ainda podem ser discutidos publicamente sem risco de prisão. Em agosto de 2020, quando ainda nem tinha “vacina” para nos empurrarem, eu já apontava para as especulações pouco condizentes com os conhecimentos científicos básicos alardeadas pelos famigerados divulgadores; em julho de 2021, eu alertava para a propaganda bancada pela grande mídia e pelas Big Techs, que mandava as mulheres tomarem “vacina” mesmo grávidas, a despeito da exígua pesquisa sobre a segurança. Apoiei a presidência de Bolsonaro enquanto era preciso escolher entre Bolsonaro e os bonitinhos ungidos pela Faria Lima (Lula e “terceira via” inclusos). Desde o começo do governo, detestei a arrogância sectária dos que atribuíam a Olavo a vitória de Bolsonaro e pareciam achar que cada voto contra o PT era um voto que endossava o “Mestre” – quando a realidade é que muito eleitor de Bolsonaro tomou ciência da existência de Olavo na live de Bolsonaro após o resultado eleitoral.

Desde a “vacinação” compulsória e da publicidade da Agenda ESG, mudei a minha visão do mundo e dos fatos. Antes eu achava que o identitarismo era um problema de intelectual. (O racismo negro me preocupa desde antes de eu entrar na faculdade.) Depois de ver que é tudo vendido junto – vacina e “politicamente correto” --, concluí que o mal do nosso tempo é a usurpação dos Estados nacionais por forças econômicas transnacionais muito mais ricas que ele. Trocando em miúdos, a Pfizer pode comprar quantas agências reguladoras quiser, sem que possamos remediar o problema no voto. As agências reguladoras foram privatizadas à revelia da lei. O Estado não é a origem do problema; é uma ferramenta indispensável para a solução, e que portanto precisa ser recuperada. Outra mudança de pensamento minha é que certos direitos devem deixar de ser prioridade, pois são instrumentalizados contra a integridade física de crianças.

Pronto: aqui está, de modo resumido, a minha trajetória, da qual me orgulho. Não que eu tenha essa importância toda para ficar detalhando os meus pensamentos, mas também não vou ficar sentada sendo acusada de farisaísmo.

Por outro lado, eu não reivindico nenhuma identidade coletiva que venha acompanhada de um pensamento específico. Agora, se eu reivindicasse a identidade católica, eu me sentiria obrigada a estudar a Doutrina Social da Igreja antes de repetir as lamúrias tão piegas da ideologia libertária ou anarcocapitalista. Catolicismo não é desculpa para ensimesmamento. Ao contrário, é remédio.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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