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A dor e o ópio
| Foto: Arek Socha/Pixabay

“O que é a dor para você?”, perguntou-me o fisioterapeuta.

Da cama do hospital, tentei responder: “Uma amiga não posso dizer que seja. Mas, quem sabe?, uma irmã? Uma irmã está do nosso lado, mas nós não a escolhemos. Ela está ali, quer a gente queira, quer não queira, e temos de lidar com ela.”

Ele fez que sim com a cabeça, e continuou a me torturar. Para meu próprio bem, claro, como são as piores torturas.

Lido com a dor constante há alguns anos, desde que basicamente moí a parte de baixo do corpo, pegando ainda fogo graças a um banho de gasolina incandescente, para tornar a situação mais luminosa, em 21 de julho de 2014. Seria aniversário da minha mãe se ela ainda vivesse então. Curiosamente, pouco antes do acidente eu havia lido um livro do Dalrymple em que – do alto de sua experiência de médico nas cadeias inglesas – ele defende a “heresia” de que opioides não viciam. Na terra dele a heroína é vendida nas esquinas, como aqui o crack. Mal sabia eu que em breve poderia ter uma opinião de primeira mão sobre o assunto.

No hospital, a morfina vinha diretamente na veia. Era maravilhoso

Quando os bombeiros chegaram para me resgatar e conduzir a uma vasta experiência hospitalar (224 dias logo de enfiada, com mais outras longas hospitalizações depois; passei cerca de três anos e meio de cama, ao todo, dos quais grande parte em hospitais, com sua péssima comida), lembro-me claramente que pedi ao bombeiro “um pouquinho dessa morfina que você tem aí, por favor”. Graças a ela não entrei em choque e pude continuar orientando meu próprio resgate. Vício profissional de perito criminal, creio eu.

Costumo dizer que desde aquele momento não me afastei mais da bendita morfina. Levo sempre um pouco comigo para casos de emergência (que para mim podem ser algo tão simples como não ter onde deitar após ficar mais de duas horas sentado). No hospital, ela vinha diretamente na veia. Era maravilhoso: a técnica em enfermagem, aquele anjo, aplicava 10 mg de morfina no meu acesso venoso e pouquíssimos segundos depois eu sentia primeiro como se alguém houvesse tampado o meu rosto com um travesseiro, impedindo-me brevemente de respirar, e pouco depois a dor – ou a maior parte da dor – ia embora. Eu ficava, coisa espantosa, com tão pouca dor que conseguia até conversar.

Quando a minha primeira e longuíssima internação chegava ao fim, todavia, resolveram “desmamar-me” (é este o termo) da morfina, para que eu não virasse um dos chatos que ficam no postinho de saúde pedindo morfina aos médicos até vencer pelo cansaço. Aqui o traficante da esquina não vende heroína, fazer o quê?

Foi horrível. A dor não parava, e davam-me tristes sucedâneos que em nada ajudavam. Até remédios para dor de barriga me enfiavam pelas veias, sem efeito. Tendo saído do hospital para o tratamento dito domiciliar, comecei a tentar sentar. Um pouquinho. Para não ficar sozinho na cama. Fui comer à mesa com minha família, e tentei sentar num escritório que minha esposa montou para mim, para escrever um pouco. E aí a dor voltou. Digo, aí a dor lancinante voltou, pois eu continuava convivendo com dor permanente, que jamais havia parado. Nem durante o tempo no hospital, com morfina, nem após o “desmame”.

A ortopedista recomendou-me uma poltrona grande e fofa, daquelas que reclinam. Consegui uma, que era de minha avó e um amigo pegou para mim. Não adiantou. Como a dor era, estranhamente, na pele – toda composta de uma mistura estranha e feia de tecido cicatricial e a pele de enxerto, riscadinha e bicolor –, fui primeiro a um dermatologista. Apenas me olhou, ele me encaminhou a um neurologista. Neurologista?!

Fui, então, ao famoso neurologista. Ele discerniu, com razão, que alguma coisa não dera certo no tratamento das minhas queimaduras, e ou bem meus nervos decapitados pelas chamas ou bem meu cérebro era incapaz de interpretar corretamente qualquer pressão feita abaixo da cintura (como a que ocorre quando nos sentamos). Para ser mais preciso, meu cérebro cismava (e cisma ainda) que estou sentado numa chapa de fazer hambúrgueres, ligada no máximo. Sem que nada esteja me queimando (convenhamos que já fui demasiadamente queimado na minha porca vida), meus miolos, em pânico, correm em círculos atrás de um extintor.

Os opioides na verdade não eliminam a dor, apenas fazem com que ela não incomode. E isso vale para qualquer dor, não apenas as físicas

E aí voltei à morfina. Junto com gabapentina, remédio especializado que interage magnificamente bem com aquela, e depois, além disso, duloxetina, amitriptilina, e o que mais for. Mas a morfina, e é dela que eu quero aqui falar, tem um problema sério: ela cria tolerância. Assim, a minha dose teve de ir subindo aos poucos, mês a mês, para que eu ficasse com a mesma (relativamente pequena) intensidade de dor. Comecei com 10 miligramas, e quando vi estava nos 60. Resolvi então cortá-la, antes que tivesse de deglutir mais centímetros cúbicos de morfina que de comida. Não é um remédio especialmente caro, mas não nado em dinheiro.

E aí comprovei o acerto do Dalrymple: quis parar, parei. Desde então, tomo morfina apenas uma ou duas vezes ao mês, quando, apesar dos mais bem-feitos planejamentos, me vejo sentado na minha cadeira de rodas por horas a fio, sem ter como me deitar um pouco que seja para aliviar a dor nas partes comprimidas. Estou há anos nos 60 mg. A duração do alívio continua a mesma: três horas. Quando tive de viajar horas de carro para fazer a perícia médica da aposentadoria, passei dois dias tomando a bendita morfina de três em três horas. Não é necessário relógio: passou das três horas, algum demônio desgramento acende a chapa de hambúrgueres onde permanentemente me sinto sentado.

O resultado é que não sei mais o que é conforto (a não ser quando me deito; o alívio é tão enorme que me pego pensando que estou me mimando demais, que isso deve viciar, essas coisas). Não sei mais o que é estar sem dor. A todo momento tenho uma dorzinha (para os meus padrões atuais; se eu sentisse algo assim aos 30 anos teria certeza de estar morrendo). Até as coisas mais estapafúrdias, como urinar, me causam dor a ponto de ser difícil falar e ter lágrimas escorrendo pelas barbas. Como também perdi o controle da micção, e hoje ando com um saquinho pendurado na perna, isso significa que volta e meia estou parado na rua chorando de dor, sem que tristeza alguma que não a reles micção tenha me acometido.

Mas isto foi um prefácio, que escrevi apenas para deixar claro que sei bem do que estou falando. Dor. Dor e morfina, ou qualquer outro opioide. Aliás, um médico especializado em dor me escreveu um dia uma receita para adesivos de fentanil, opioide fortíssimo também vendido nas esquinas nos Estados Unidos, que eu vinha usando no hospital. É maravilhoso; fica-se quase sem dor alguma, dia após dia. Mas o custo dele está muito além de meus rasos bolsos, e a contragosto tive de desistir da ideia.

Outra curiosidade sobre opioides, e que tem a ver com o tema que está aqui na minha cabeça e acabará por sair de minha pena após esta longuíssima introdução, é que eles agem sobre a dor; enquanto houver dor, o opioide a mirará e ao menos tentará acabar com ela, sendo seus efeitos psicotrópicos sentidos apenas quando se os toma acima da quantidade que há de acabar com a dor. Nem sei como são esses efeitos, pois nunca consegui acabar com as minhas dores tomando-os; só as diminuo ao ponto de poder trabalhar, conversar, tocar música, essas coisas básicas da vida. Uma pessoa que esteja com uma dor fortíssima, graças a essa peculiaridade dos opioides, pode tomar uma tal dose de morfina, heroína ou fentanil (no fundo a diferença é pequena, mais questão de potência que de efeito) que mataria imediatamente de overdose um desses felizardos sem dor. E isso mesmo que o dolorido jamais tenha provado um opioide antes. Ah, e a morte por overdose é por asfixia: aquele efeito do “travesseiro na cara” simplesmente não passa, parece. Deve ser horrível.

Outra peculiaridade ainda, que aprendi nos meus parcos de estudos de toxicologia, efetuados por razões profissionais, é que os opioides na verdade não eliminam a dor, apenas fazem com que ela não incomode. E isso vale para qualquer dor, não apenas as físicas. Assim, uma pessoa que tenha, por exemplo, sido abandonada pela esposa amantíssima (coisa que me aconteceu no meio dessa confusão que narrei acima, e portanto posso falar também por experiência e afirmar sem pejo que é muito pior que qualquer dor física), pode tomar uma boa dose de morfina e assim não mais chorar o abandono. Ele passaria, dizem (nem tentei), a simplesmente não incomodar, como não me incomoda tanto estar sentado numa chapa quente o tempo todo.

A overdose de opioides e o suicídio de viciados estão entre as primeiras causas de morte dos cidadãos da maioria étnica dita branca

Dito isso, vamos ao tema: a epidemia de vício em opioides nos EUA. Trata-se, no momento, de um dos maiores problemas de saúde pública daquele país. A overdose de opioides e o suicídio de viciados estão entre as primeiras causas de morte dos cidadãos da maioria étnica dita branca. Ela começou com uma picaretagem capitalista: uma grande firma farmacêutica, a Purdue Pharma, patenteou um opioide que na verdade era basicamente apenas o que já se conhecia, porém apresentado em comprimidos do tipo “extended release”, que soltam aos pouquinhos o princípio ativo ao longo de um dia. Assim, em vez de tomar, digamos, 10 mg de morfina de três em três horas, o dolorido tomaria 50 mg de oxicodona (copyright Purdue) uma vez ao dia, ou coisa parecida, e o comprimido se encarregaria de soltar aos poucos o opioide. Pois bem: fizeram uma tremenda propaganda, dizendo que isso “não viciaria” (aliás, foi exatamente o que aconteceu com a heroína, que tem este nome porque a Bayer a lançou como sendo uma heroica variedade de morfina que não viciaria. “Se é Bayer é bom”, dizem), e convenceram os médicos a receitá-lo para todo tipo de dor, especialmente as dores crônicas: dores nas costas, por exemplo, ou nas pernas de pessoas que trabalham em pé.

Nos EUA, todavia, remédios em geral são caríssimos, e por isso mesmo, num ciclo vicioso que só faz aumentar seus preços, eles são cobertos pelos planos de saúde. Comprá-los do próprio bolso está muito além da capacidade do cidadão comum. Tendo, contudo, este cidadão comum se acostumado a viver sem dor, ou quase sem dor, coisa que a sua (e em crescente medida a nossa) sociedade tende a apresentar como um “direito”, quando acabava o “tratamento” e o plano de saúde parava de cobrir a caríssima medicação o negócio ia ficando mais complicado. Traficantes de esquina começaram a vender comprimidos, que compravam de pessoas que tinham ainda direito à receita, mas não tomavam o remédio.

Ao mesmo tempo, a geopolítica veio morder o próprio rabo, e bem ali a guerra dos EUA contra o Talibã, no Afeganistão, havia então eliminado o controle por esta milícia de vastas extensões de território, que passaram às mãos dos “aliados” americanos (senhores da guerra do norte afegão, os mesmos que haviam se aliado à União Soviética quando os EUA bancavam o Talibã, que brigavam com este basicamente por razões étnicas e tribais). Ora, o Talibã havia conseguido praticamente eliminar o cultivo da papoula do território afegão, e a expulsão do Talibã somada às vicissitudes da guerra levaram grande parte da população civil a voltar a plantar papoulas, que rendem mais em menos tempo e assim diminuem a chance de dedicar-se a plantar gêneros alimentícios apenas para tê-los roubados por milícias em luta. O resultado é que o preço da heroína abaixou tremendamente, dado o aumento de oferta, e a demanda potencial oculta americana – composta de pessoas honestas, que nada têm a ver com os viciados em crack ou cocaína, ou mesmo com os junkies (heroinômanos) europeus – rapidamente fez com que o fruto das papoulas plantadas graças à ação americana no Afeganistão chegasse aos EUA sob forma de heroína. E então começou realmente a praga.

As gangues mexicanas, por cujo intermédio a heroína oriunda da Ásia inundou o mercado americano, passaram também a plantar papoulas. A China comunista, vendo nisso uma tremenda oportunidade de mercado, começou então a vender para pessoas físicas americanas (basicamente pelos correios, com compras efetuadas pela internet) sacos de um quilo de fentanil. Ora, o fentanil é cerca de mil vezes mais forte que a morfina. Um quilo de fentanil equivale a uma tonelada de morfina. O problema, todavia, é que se o “corte” do produto (ou seja, sua mistura com agentes inertes para aumentar o peso e volume, diluindo assim o princípio ativo) for mal feito, o que é quase inevitável em laboratórios de fundo de quintal, uma dose teoricamente equivalente a uma dose de morfina pode conter fentanil suficiente para matar um quarteirão.

E assim começaram as overdoses, hoje tão comuns que o injetor de adrenalina (antídoto do opioide, por assim dizer) passou a ser parte de todo tipo de bolsa de primeiros-socorros americana.

Pode-se perguntar de quem é a culpa. Eu diria que sua parcela maior recai não sobre os usuários, nem sequer sobre os traficantes de esquina. Os únicos que agiram de caso pensado foram as gangues mexicanas e os chineses, atendendo contudo a uma demanda já presente.

A culpa principal é de uma sociedade descristianizada, que perdeu o sentido da dor. A mensagem de que a dor tem sentido, e que é pela união de nossa dor à do Sacrifício de Cristo na Cruz que as almas são salvas, é a novidade fundamental do cristianismo. Mas a sociedade americana nunca teve acesso a esta mensagem, tendo sido estabelecida por versões sectárias e, em última instância, protoimanentistas do cristianismo. Quando um calvinista vê na riqueza um sinal da preferência divina e, portanto, da sua predestinação ao céu, faz sentido que ele veja na dor – que é uma forma de pobreza, da santa pobreza do Cristo dolorido... – um sinal da predestinação ao inferno. Se não for o “pai” calvinista que o faz, será o “filho” capitalista, como apontou Weber.

A mensagem de que a dor tem sentido, e que é pela união de nossa dor à do Sacrifício de Cristo na Cruz que as almas são salvas, é a novidade fundamental do cristianismo. Mas a sociedade americana nunca teve acesso a esta mensagem

Ter dor, assim, para o americano médio, simplesmente não faz sentido. Não podemos falar muito, na medida em que tal processo de descristianização afetou também em grande medida nossas classes médias urbanas das capitais, que tampouco são ainda capazes de ver sentido salvífico e santificante na dor. Mas é de lá que isso vem, e lá a coisa atinge a todos. Uma pessoa com dor crônica, que não consegue trabalhar eficientemente, é por definição um loser, um “perdedor”. E eis que ao socorro dele, fazendo dele um winner, um “vencedor”, surgem os opioides. Primeiro no consultório médico e no balcão da farmácia, depois no traficante da esquina.

E é por isso que o vício em opioides atingiu de modo especial as comunidades de “brancos” de baixa renda. É a classe que mais perdeu nas últimas décadas, a classe que foi educada pensando que o mundo lhe pertencia, e subitamente viu-se sem ter nem sequer como fazer o que era considerado o mínimo uma ou duas gerações atrás: comprar uma casa a prestações, ter um carro na garagem, trabalhar de sol a sol em busca do enriquecimento material. Enquanto o vício em cocaína nos anos 90 do século passado atingiu principalmente os ditos yuppies, a classe ascendente “branca”, e o vício em crack na década seguinte atingiu desproporcionalmente os “negros”, os opioides vieram tirar a dor da perda de situação social (além da dor nas costas!) da classe decadente “branca”, da classe que nunca tivera como lidar com a dor, mas que nunca tivera tanta dor assim. Quando a dor apareceu, a dor social primordialmente, o que lhes solucionava a dor física passou também a agir sobre esta, possibilitando assim que se sentissem vivos e ativos, que deixassem de ver um loser ao olhar-se no espelho.

Foi uma tempestade perfeita, como eles mesmos dizem, unindo fatores diversos – a ganância da indústria farmacêutica, os efeitos entorpecentes dos opioides sobre a dor física e moral, os efeitos colaterais da guerra americana contra o Talibã, a ação das gangues mexicanas, o interesse chinês no enfraquecimento social americano etc. – num cadinho cujo resultado é o sacrifício da classe que, para mal ou para bem, construiu os EUA. Deste enfraquecimento virão consequências outras, em que poucos têm pensado: a ascensão de outros grupos étnicos naquele país tão tristemente dividido, o recrudescimento dos movimentos de “orgulho branco” e outras barbaridades, desesperados por ver o controle do país escapar-lhes de vez das mãos, quiçá mesmo uma tremenda reviravolta na política, com o surgimento de demagogos não “brancos” (de que Alexandria Ocasio-Cortez pode ser a ponta de lança), apoiados pela nova maioria “marrom”. Por enquanto eles estão apenas na esquerda, mas é uma questão de tempo para que surjam versões político-eleitorais de Dinesh d’Souza.

Opioides, repito, não viciam. O que vicia é a ideia de uma vida sem dor. O sonho da eficiência. O delírio da ascensão social pelo trabalho, num momento de depressão econômica em que ela se torna praticamente impossível. Tudo isso, todos estes vícios, são característicos da mentalidade “branca” americana, e foram eles que prepararam o caminho para que o amortecimento de todas as dores pela ação dos opioides acabassem por fazer com que o chavão do chinês fumando deitado um cachimbo de ópio fosse substituído pelo pai ou mãe de família de classe média “branca” americana engolindo pílulas. É uma dessas ironias da história, visto que o chinês do chavão foi viciado em ópio graças à guerra movida pela Inglaterra (“mãe” dos EUA) contra a China para garantir que esta droga não fosse proibida; algo como se as gangues mexicanas vencessem em batalha o governo americano para garantir o fim da “Guerra Contra as Drogas”.

A história se repete como farsa, disse Marx, e nisso tenho de concordar com ele.

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