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A música das esferas
| Foto: Pixabay

Costumo dizer que a última musa que deu as caras aqui o gato comeu. Mas há uma arte a que, de tão estranha – e ao mesmo tempo tão familiar – às obras do homem, chamamos a área delas, das musas. É a música. Mas que música? Ou, antes, o que é música? Seria música, indubitavelmente, uma peça de Mozart ou Vivaldi. Seria igualmente música uma canção popular, como as do antigo sertanejo. Ninguém pode negar que “Menino da Porteira” seja música, ainda que de espécie radicalmente diferente da de Bach, sendo talvez mais assemelhada, na sua simplicidade de elementos e no seu apoio na poesia, à dos blues do Delta americanos. Já o sertanejo universitário ou o funk carioca, a meu ver, dificilmente seriam passíveis de inclusão na ampla categoria da música. Eles não têm melodia, e por não ter melodia não têm harmonia possível, ainda que no novo sertanejo pobres músicos (de quem tenho enorme pena) fiquem ao fundo sucedendo-se em acordes desnecessários e alheios ao que é esgoelado pelo vocalista. Mas então um solo de bateria de jazz ou de rock, que tampouco têm melodia, não seriam música? Seriam breves interlúdios não-musicais?! Seria difícil defender esta hipótese.

Arrisco afirmar então que a música de verdade, e mais ainda a boa música (quem poderia negar que Mozart é superior a Salieri ou os Beatles superiores aos Beach Boys?), tem por característica sua inclusão numa ordem maior. É uma tese que, em outros termos, já vi defendida por Sir Roger Scruton, de quem não sou particularmente fã. O caso seria assim: as relações harmônicas entre as notas, e a própria frequência vibratória destas, deve estar de acordo com relações matemáticas que sustentam toda a ordem criada. A “música das esferas” por assim dizer. A oitava perfeita obtida pela divisão de uma corda ao meio, assim como suas divisões em outras relações matemáticas, gerando a quinta (esta incompreendida), a terça, etc., determinariam o quanto uma música está ali, está encaixada na ordem maior de todas as coisas, a ratio divina de São Tomás de Aquino (fixação minha, ao ponto de um livro meu ter este nome, em latim mesmo).

Um músico chinês tradicional, contudo, não poderia aceitar como “naturais” os intervalos apontados por Sir Scruton. Para ele outros – a quarta, e mesmo o trítono – soam bem, muito melhor que as fracas terças da nossa música ocidental. Talvez a gigantesca popularidade da música clássica ocidental na China hodierna, que nos brinda com concertistas de altíssimo calibre, todavia, aponte uma superioridade harmônica na nossa tradição. Talvez os intervalos musicais que preferimos estejam mais acordes com a ordem das esferas, com as relações fundamentais que tudo alinham.

Já a não-música, como o funk carioca ou o sertanejo universitário, tentam fantasiar-se de música como um lobo de cordeiro, e não conseguem. Quem os ouve o faz não pela beleza da (pseudo-)música, mas por outros instintos, mais primitivos, que ela atiça. No caso do funk e do novo sertanejo, por exemplo, as frequentíssimas alusões sexuais já servem de atrativo para uma vasta parte da população ignorante. A isso se junta um ritmo forte e marcado, que excita o coração a aumentar a velocidade de suas batidas, e pronto: para gente mais primitiva, tem-se a fórmula do sucesso. O mesmo, aliás, vale para grande parte do formulaico pop mundial, aliás todo composto por um ou dois sujeitos. Mas isso não é música. É outra coisa, mais parecida com a descrita por Huxley nas reuniões de seu Admirável Mundo Novo: um mecanismo sonoro de excitação, de base sexual e agressiva. Uma espécie de injeção de testosterona que entra pelos ouvidos.

A melhor música, a música mais sublime, é a que tem efeitos mais sutis

E isso nos aponta a próxima direção deste breve estudo informal. A música, ou antes todo ruído, tem efeitos. Os efeitos da música diferem dos dos demais ruídos por ela ser, como já disse, ajustada precisamente. Música não é um ruído desordenado. Fenômenos claros, como o fato de o batimento cardíaco poder ser aumentado ou diminuído, tentando ajustar-se involuntariamente ao tempo da música, nos mostra claramente alguns de seus poderes. Outros – como o auxílio no crescimento de plantas, alterações na fermentação de queijos, diminuição ou aumento da agressividade humana e animal, etc. – são também parte deste mesmo fenômeno, pelo qual o som age como ordenador ou desordenador de outras formas de vida. No homem isto ocorre por um dos sentidos mais ignorados pela razão, a audição, que normalmente serve apenas como porta de entrada para uma percepção racional e apreensão da origem do som e de um seu significado (uma voz que pede água tem um significado, enquanto o soar da campainha ou o toque do telefone têm outros). A música trabalha antes deste processo de apreensão.

Quando ouvimos música, nossa capacidade de apreensão – evidentemente maior em quem tem treinamento na área e ouve de modo mais “técnico” – cede lugar à capacidade de deleite, um deleite pré-racional que pode mesmo ser estragado quando muito racionalizado. É melhor ouvir apreciando a música que fazê-lo de modo completamente técnico, identificando a harmonia, cada instrumento, cada respiração, cada ajuste de som na masterização da gravação, etc. Ainda que este último modo de audição, restrito a quem é da área, seja em muitas medidas mais rico que o do vulgo, ele por vezes pode nos afastar do que é a magia das musas: a beleza intrínseca da música, sua capacidade de nos “encaixar” inconscientemente na ratio divina.

Imaginemos duas penitenciárias: uma em que os presos ouvem música barroca o tempo todo, e outra onde eles ouvem funk carioca incessantemente. Qual delas terá mais revoltas, homicídios, suicídios, etc.? Creio não ser necessário dar a resposta. O efeito da música, dos sons, dos ruídos, para o bem ou para o mal (imagino que ruídos industriais desconexos deem mais ou menos no mesmo que o funk, ou sejam um pouco melhores que ele), é inegável. Esse pertencimento à ordem de todas as coisas que a música propicia ou (no caso da má música) dificulta é, a meu ver, uma de suas características principais.

As próprias musas da mitologia grega, afinal, não seriam simples antropomorfizações dos elementos desta ordem? Um artista tocado por Euterpe, a musa da música, seria o que mais encaixa suas composições nesta ordem, que a quem busca com um pouco de abertura ao numinoso é evidente. O funqueiro, por outro lado, pisoteia Euterpe, nega liminarmente esta ordem, interessado que está apenas nos efeitos mais grosseiros da exposição ao som: o bumbo pesado e forte, que faz estremecer as vidraças da vizinhança ao sair da traseira do carro de um energúmeno que deve odiar seu próximo, a letra que, longe de qualquer poesia, enaltece o que há de mais vil na natureza humana, de tal modo que, tudo reunido, tem-se antes um instrumento de dessensibilização ao Belo que uma música. Euterpe chora, cheia de hematomas.

Já a música de verdade, seja ela popular ou erudita, vai provocar efeitos mais sutis. A melhor música, poderia até eu dizer, a música mais sublime, é a que tem efeitos mais sutis. Sua própria sutileza, por vezes, impede que ela seja apreciada por quem não tem o hábito de ouvir boa música, exatamente como uma pessoa que só se alimenta em lanchonetes americanas não terá paladar suficiente para apreciar plenamente uma fina comida francesa, que devorará exatamente como devora seus macbúrgueres, mastigando uma ou duas vezes aquela massa insossa e engolindo-a. As Gnossiennes de Satie, por exemplo, são mais sutis que os noturnos de Chopin; é mais fácil, por assim dizer, “entendê-los” que deixar-se abrir a elas. Idem para Mozart e Beethoven, de forma geral. A Eroica é uma corda que este último atira a Wagner.

A música popular, por sua simplicidade, é mais fácil de entender, mais fácil de captar, que a erudita. E veja o meu punhado de leitores corajosos que até aqui chegou que esse entendimento, essa captação de que falo, ocorre muito antes do entendimento formal, até mesmo da simples apreensão. Antes de perceber se é um fagote ou um clarone que toca esta ou aquela nota, sem mesmo saber a diferença entre um tom maior e um menor, o entendimento da música pode já estar formado, completo. Apreciar retamente uma música simples, simplíssima como um blues do Mississipi, uma canção armorial ou um tema folclórico inglês demanda relativamente pouco. Basta uma abertura a deixar-se levar pela música, fazendo com que ela possa nos tocar em sensibilidades ocultas que funcionam além (ou aquém) do racional. A tristeza do blueseiro ou a resignação do camponês nordestino da música armorial fazem-se presentes em nós pela própria mágica da ordem de todas as coisas, pela mágica das musas, e Euterpe sorri.

Daí, por exemplo, a caminhada nada surpreendente dada pela própria natureza humana aos novos gêneros musicais: do blues dos negros americanos, cruelmente tratados e separados pela cor da pele, veio o rock dos brancos donos do mesmo país. Este, quando chegou a um nível de sucesso que só a sociedade de consumo poderia gerar, começou a sofisticar-se, chegando até as obras quase sinfônicas do rock progressivo. Sempre, contudo, de forma musicalmente simples, por assim dizer: a sofisticação estava antes nos timbres que na harmonia ou mesmo no ritmo. Do rock progressivo a tocha da sofisticação passou, incrivelmente, aos estilos mais viscerais, talvez em tributo às origens do estilo musical. Hoje é mais fácil ouvir um solo rico e complexo numa gravação de metal que num rock leve, feito para tocar no rádio. No rádio, aliás, tende a reinar o insosso e o formulaico, justamente por medo de ofender a (falta de) sensibilidade dos ouvintes.

Mas é a música que importa, é a música que enriquece. Seja ela a popular, em que a melodia tem papel preponderante ao ponto de apagar tudo o mais, não se deixando senão raramente usar como a melodia barroca, que se esconde apenas para aparecer de novo em outras vozes, por vezes mesmo ao contrário, seja ela a música erudita com toda a complexidade, é ela que nos leva além, é ela que tem o dom de nos abrir ao Belo em todas as suas dimensões. Uma boa música leva a outra, e a jornada que começou com o blues pode e deve levar ao jazz e, dele, à música erudita. É degustando-a que aprendemos a gostar mais dela, a ouvi-la com mais atenção.

Ouçamos o que ela tem a nos dizer.

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