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Blitz de trânsito com agentes da Setran e da Urbs no Centro de Curitiba.
Blitz de trânsito com agentes da Setran e da Urbs no Centro de Curitiba.| Foto: Cassiano Rosario/Arquivo/Gazeta do Povo

Semana passada contei aqui um causo que ilustra o perigo de quando a aplicação de uma lei pensada para criar dificuldades e vender facilidades é posta na mão de quem não se interessa em vendê-las. Um dos pontos que nos ajudam a reconhecer tais leis é a sua total arbitrariedade. Pode ter havido, em algum momento histórico, um motivo qualquer que fizesse com que uma versão ancestral de tal lei proporcionasse algum bem ao povo. As formas que tais leis vão tomando, contudo, tendem a afastar-se mais e mais de qualquer benefício real, na exata medida do interesse em abrir mercado para a venda de facilidades pelos amigos do rei. Daí elas irem e virem, daí ser proibido ontem o que era obrigatório anteontem, e vice-versa.

Foi bem o caso aqui por estas bandas. Para quem tenha perdido o último capítulo, contei que foi apreendido o carro (em perfeitas condições de uso) que levava minha tia de idade de volta para casa, sem que houvesse sido cometido qualquer crime que não a falta de um papelzinho carimbado dentre muitos. Pois não é que este órgão de imprensa publicou minhas mal-traçadas na mesma data em que finalmente conseguiram liberar o carro e seguir viagem... e no dia seguinte caiu a lei? Sim, senhoras e senhores: o valiosíssimo e extremamente necessário pedaço de papel, precioso ao ponto de tornar necessário deixar à beira de uma estrada estadual rural uma senhora octogenária e seu cachorrinho velho e cego, não é mais exigido. Eles viajariam numa sexta e acabaram viajando na quinta seguinte, tamanha a gincana burocrática cujo início contei aqui. Pois se houvesse ficado por decisão própria e saído na sexta seguinte, o fero guardinha só lhes teria desejado boa viagem.

Tem sido cada vez mais usado para definir este tipo de situação o termo “anarcotirania”. Não se trata do triste apanágio destas belas terras em que vivo; este fenômeno tem dado as caras por todo o Primeiro Mundo, e consegue fazer-se presente até mesmo nas áreas mais anômicas de nosso Brasil, como o Rio de Janeiro. Trata-se de uma etapa do desbarate das instituições de um sistema em fase terminal de decadência, em que as grandes leis (não matarás, não roubarás, não cometerás adultério ou falso testemunho...) cessam de vigorar, mas as pequenas (não dirigirás se houverdes bebido uma latinha de cerveja ao jantar, não viajarás sem o papelzinho tal...) são diligente e ferozmente aplicadas sempre que possível. É claro que uma blitz da Lei Seca no Rio de Janeiro deixará passar, como a cortejo principesco de carruagens douradas puxadas por pintosos garanhões crinalvos, os carros roubados de um bonde de traficantes armados até os dentes de ouro. Mas ai do pai de família cujo hálito delatar a cervejinha do jantar! Ai do camelô que ouse vender seus produtos onde passe a Guarda Municipal! Ai da família que ensine em casa aos filhos sem combinar um esquema com alguma escolinha para fingir que a frequentam!

Na anarcotirania, as grandes leis cessam de vigorar, mas as pequenas são diligente e ferozmente aplicadas sempre que possível

Nos países de Primeiro Mundo, o processo em curso acaba por se tornar mais evidente por não ser tão clara a divisão dos territórios entre o Estado formal em vias de desmanche e seus competidores. A persistência da ilusão de controle pelo Estado faz com que o fechamento de redes inteiras de lojas em algumas cidades da Costa Oeste gringa, causado pela ubiquidade dos saques em massa, possa ser creditado a algum mau promotor. E a outro, e a outro. O caso, no entanto, é que, por mais que tais promotores saiam todos de uma mesma fábrica de garantistas gerenciada e comercializada pelo Soros, na prática são apenas um dentre muitos sintomas da crescente anarcotirania. As calçadas de tantas cidades outrora ricas, Primeiro Mundo afora, tornaram-se favelas. Vastas áreas em tantos países ricos estão em poder de “organizações não governamentais” armadas não tão diferentes dos nossos comandos de narcotraficantes. Organizações ditas religiosas unem-se – como escrevi outro dia aqui mesmo – aos narcotraficantes para controle “moral” dos territórios ocupados.

Assim como um território ocupado por um poder paralelo ao Estado (como é o caso da residência da maioria absoluta dos cariocas) é apenas o preenchimento de um vácuo, coisa que a natureza abomina, a lei paralela também vem preencher o vácuo da supostamente legítima. Das proibições de mulheres de cabeça descoberta nas Zonas Urbanas Sensíveis francesas às faixas que subitamente surgiram São Paulo afora proibindo palhaçadas e acrobacias com motocicletas em áreas dominadas pelo PCC (“SUJEITO A CACETE”, pressurosamente explicam os legisladores ad hoc), passando pelos conhecidos “tribunais do tráfico”, o que se tem é uma ocupação de vácuo.

No caso da lei a coisa acaba sendo ainda pior, justamente por as instituições supostamente públicas não terem mais nem capacidade nem sequer desejo de fazer valer as leis importantes. As leis de verdade, expressões locais de uma mesma lei natural universal somadas às tradições e costumes daquele povo. As leis que dão uma base moral à sociedade, e que são ontologicamente muito anteriores a ela e ao próprio Estado. Quando o Estado toma a si o monopólio da violência (logo, do julgamento e da definição de delitos e penas), sua autoridade moral passa a depender da concordância de seus códigos e procedimentos com a lei primeva, que a sociedade espera ver cumprida e cujo descumprimento espera ver punido. Quando, em sua decadência, ele descamba para a anarcotirania, forçando o cumprimento justamente de normazinhas idiotas que no mais das vezes descumprem as leis fundamentais ou lhe são ordenadas de forma tão indireta que chega a ser arbitrária (como o tal papelzinho de carro de acima e da semana passada), ele perde sua autoridade moral. A pouca que ainda tivesse, na medida do parco cumprimento anterior das leis fundamentais.

E é aí que entra a fantasia de poder de todo detentor de cargo supostamente público. Do guardinha de trânsito cuja masculinidade depende da apreensão de veículos ao ministro do STF que faz da Constituição papel higiênico, passando pelos governadores e demais chefetes, cada um deles acha que está aumentando ou demonstrando a própria autoridade ao forçar o cumprimento de regrinhas tão irrelevantes quanto arbitrárias. Que o efeito seja contrário – pela simultaneidade do abandono do que importa com a obrigação do desimportante – não lhes passa pela cabeça, como não lhes parece ocorrer que a anomia que assim criam retira das instituições que comandam ou pretendem comandar qualquer vestígio de autoridade moral que ainda tivessem. É a “macheza” do guarda ao deixar na beira da estrada uma octogenária, orgulhoso de sua incorruptibilidade, que faz com que não se o chamem em caso de crime real. É a arbitrariedade nas pequenas coisas que leva um governador a exigir e a deixar de exigir este ou aquele documento para o tráfego em seus territórios que leva muitos a desistir de tudo e deixar de pagar impostos, e mesmo de registrar o próprio carro. Conheço gente que compra carro em leilão, sabendo que não pode ser documentado, mas contando usá-lo até que seja apreendido, para então comprar outro. Ou o mesmo. Já me disseram que financeiramente é um bom negócio, mas provavelmente não levam consigo senhoras de idade e seus cachorrinhos de maneira regular.

Nas favelas que proíbem “tirar de giro e chamar no grau” as motocicletas (seja lá o que forem tais atos) sob pena de másculo e maiúsculo “CACETE”, também não ficará barato – explica a mesma faixa – “roubar na quebrada”. Não é necessário acrescentar que os detentores locais do monopólio da força, a gangue de narcotraficantes, tampouco permitem assassinatos cometidos por outrem. As grandes leis, as leis importantes por ontologicamente anteriores ao Estado e à ONG armada que o sucede, continuam valendo “na quebrada”; destarte, ameaçar de cacete quem faça gracinhas com a moto não diminui a autoridade do narcolegiferante. Ele é “narco”, mas não “anarco”, se me faço entender. A mesma proibição em área ainda dominada pelo Estado – logo, onde se pode matar e roubar com relativa impunidade – só fortaleceria a anomia, por ser justamente percebida como anarcotirânica. E, mais ainda, esperar-se-ia que a proibição de uma quinta-feira fosse desautorizada na sexta e quiçá tornada obrigatória na segunda (no fim de semana só há movimento paraestatal, afinal).

Esta simultaneidade da anomia anárquica em relação às grandes leis e a inflexibilidade em relação às irrelevantes é a essência da anarcotirania. É o desvio do poder oriundo do papel de mantenedor de instituições do Estado para o exercício puramente arbitrário de autoridade. Mao Tsé-Tung estava errado: a autoridade não surge da ponta de um fuzil. Ela surge da necessidade social de ordem, de que – quando a escala é suficientemente grande – brota a necessidade de haver alguém a quem se possa terceirizar a manutenção de tal ordem. O fuzil de Mao garantiu-lhe o poder na China por ter expulsado os japoneses e o Kuomintang, fazendo cessar uma guerra total em que ninguém podia viver em relativa paz. Hitler tomou o poder para então ganhar fuzis, por ter sabido prometer o fim de uma anomia reinante. Num país ordenado e pacífico – a Suíça dos últimos séculos, por exemplo – fuzis jamais conquistariam o poder; no máximo obteriam uma paz de cemitério ao obliterar a população.

Do guardinha de trânsito ao ministro do STF, passando pelos governadores e demais chefetes, cada um deles acha que está aumentando ou demonstrando a própria autoridade ao forçar o cumprimento de regrinhas tão irrelevantes quanto arbitrárias

Quando as instituições, em todos os níveis, geram anarcotirania ao redirecionar arbitrariamente o poder de manutenção de uma ordenação social que já perderam a capacidade de manter, criam-se vácuos. Vácuos morais ainda mais que vácuos de poder, na medida em que a anarcotirania elimina o que é a base do poder (estatal ou paraestatal): o consenso moral da importância das grandes leis; a percepção universal pelos membros da sociedade de que a manutenção da ordem está em mãos capazes; a tranquilidade para trabalhar sem ter de cuidar pessoalmente do que é problema social. Este mesmo jornal já publicou um artigo em que Bruna Frascolla comparava – em outros termos e com outros interesses – a anarcotirania da região ainda dominada pelo Estado no Rio de Janeiro com a relativa tranquilidade (ao menos em termos de cracudos agressivos) de um bairro dominado por uma milícia e de uma cidadezinha baiana. Evidentemente, a zorra anarcotirânica era pior que a da “rua dos cabarés” baiana e que a do bairro em que os milicianos sustentavam seu poder não pelos fuzis, mas pela manutenção de alguma ordem. Previsível, diria eu (do alto de minha teorização interiorana) ou (conhecedor na prática) o habitante da rua francesa ou americana favelizada e sujeita a surtos de tifo.

Tifo, em pleno século 21, nos países mais ricos do mundo?! Taí coisa que só a anarcotirania faz por você. Bom, pelo menos agora, até que seja revogada a última ordem arbitrária do excelentíssimo governador, daquele papelzinho não precisaremos mais para viajar por aqui com octogenárias e seus cachorrinhos. Já é alguma coisa.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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