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Mammon. Ilustração do “Dictionnaire infernal”, par Louis Le Breton.
Mammon. Ilustração do “Dictionnaire infernal”, par Louis Le Breton.| Foto: Wikipedia Commons

Por medida provisória, nosso bolsopresidente enfiou o pé na jaca mais uma vez. Desta feita o fez em grande estilo, garantindo que muitas crianças venham a ver o pai ou a mãe como um estranho que passa apenas um dia em contato com elas ao mês. Em nome da “liberdade econômica”, e em flagrante ato de culto a Mammon, o demônio da cobiça, a folga dominical obrigatória foi substituída por uma única folga dominical ao mês, na medida provisória (quem dera!) que tem até – ironicamente – 27 de agosto, dia de Santa Mônica, a dileta mãe de Santo Agostinho, para ser aprovada.

Há uma multidão de famílias em que tanto pai quanto mãe trabalham. No que talvez seja a maior parte delas, ao menos nos centros urbanos, a casa e o trabalho ficam muito afastados um do outro. Tanto o pai quanto a mãe, assim, têm de sair de casa antes mesmo de o sol nascer para gramar várias viagens de transporte público, levando horas em cada sentido, para ganhar o pão de cada dia. Mas o domingo é o dia da família, o dia em que os casais e seus filhos têm todo o tempo do mundo para passearem, andar de mãos dadas, jogar bola, o que seja. Ou, antes, era: agora, graças à medonha bolsomedida, será extremamente provável que na maior parte das ocasiões a folga semanal da mãe seja num dia e a do pai, em outro. Encontrar-se-ão como navios que se cruzam à noite. Em apenas um dia do mês a família poderá estar junta.

Em todo o mundo há a prática saudável de um dia semanal de descanso, para que a família possa se encontrar. Nos países de origem cultural islâmica, este dia é a sexta-feira; no único país da nação judaica, é aos sábados; nos países do Ocidente, de origem cultural cristã, é no domingo. Não se trata de uma questão religiosa que haja um dia de descanso por semana. É, antes, uma necessidade da vida, para o bem das famílias e para alívio do estresse acumulado durante a semana. Quando morei em Israel, vi como todos os cidadãos, inclusive os ateus, budistas e o que mais for, descansavam no sábado. Era exatamente como o domingo daqui: uma minoria vai prestar culto a Deus, mas praticamente todos aproveitam o dia para estar com aqueles que amam. Não se pode exigir de ninguém que cultue a Deus de uma certa maneira, mas pode-se, sim, exigir que o governo, que está – ou deveria estar – a serviço da população e não dos grandes capitalistas, facilite o que é um direito natural. E, mais ainda, que ele facilite este direito de uma maneira que esteja de acordo com a tradição e com os hábitos da maioria da população. Não duvido que daqui a algumas gerações, por exemplo, na Europa, o domingo seja substituído pela sexta-feira islâmica, na medida em que os descendentes de migrantes de origem islâmica estão fadados a suplantar numericamente os descendentes de famílias de matriz cultural cristã, pela simples razão de aqueles terem filhos e estes, cachorros. E o governo que o fizer estará fazendo algo perfeitamente aceitável. Não o é, contudo, eliminar o dia de descanso comum.

Pode-se, sim, exigir que o governo, que está – ou deveria estar – a serviço da população e não dos grandes capitalistas, facilite o que é um direito natural

Esta medida não interessa em absolutamente nada a população; só quem tem a ganhar com ela são os maus patrões, que preferem o lucro imediato à manutenção da paz doméstica de seus empregados e, mais ainda, à preservação da sociedade. A base da ordem social não é o comércio, não é o mercado. A base de toda ordenação social é, e não pode deixar de ser, a família. Já é triste demais que para muitos não seja mais uma opção a esposa poder cuidar dos filhos em vez de mourejar na rua, como sempre havia sido dever do homem e sempre deve ser direito da mulher. Quando a decisão de terceirizar o cuidado dos filhos é imposta a uma mulher que preferiria estar ao lado deles, como é seu direito e direito das crianças, a família, e nela a ordem social, já está sendo atacada. Mas resta, ou restava, o domingo. Afinal, não serão os escritórios de alta advocacia financeira que prenderão seus engravatados aos domingos. Não serão os diretores de multinacionais que se verão afastados da família. Quem terá a família temporalmente desfeita será a classe mais baixa. A mesma cujas esposas já se veem forçadas a partir de casa e abandonar a criança numa creche (e, mais tarde, em casa, enfeitiçadas por um aparelho de televisão ou na rua, procurando e encontrando confusão). Esta atomização da sociedade, esta destruição do convívio (logo, dos laços) dentro da família só traz alegria àqueles, à esquerda socialista ou à direita capitalista, que preferem atomizar a sociedade e fazer dela mera aglomeração de indivíduos ligados pelo Estado ou pelo Mercado, estes dois ídolos ideológicos modernos.

Aquela longa fileira de faces tristes atrás de caixas de supermercado, ou de mulheres ansiosas por uma pequena comissão que atacam em bando quem entra numa loja, serão os afetados. Os homens que passam o dia carregando caminhões ou operando maquinário pesado serão os afetados. Os pedreiros. As babás. E, junto – ou antes em separado –, serão suas famílias as maiores vítimas. As crianças terão ainda menos chance de conviver com o amor do pai e da mãe, na medida em que eles todos – crianças, pais e mães – só se encontrarão uma vez ao mês. Isto fará delas, claro, presas ainda mais fáceis para todo tipo de estelionatário e de vendedor de paraísos falsos, das seitas à droga, passando pelo consumismo.

É na família, dentro da família, no seio da família que se constrói o ser humano, que surgem as novas gerações. O papel do Estado é proteger a família, e não dissolvê-la ainda mais, num momento em que a crise já é tremendamente forte.

Nosso bolsopresidente, todavia, foi eleito como mal menor pela maioria da população por seu discurso contrário à dissolução da família pela esquerda (através de táticas como a ideologia de gênero, por exemplo – que aliás continua em curso: a UFMG, a USP e a UFBA juntaram-se agora para criar um “robô transexual virtual que fala pajubá” para fazer propaganda de ideologia de gênero junto aos jovens). Infelizmente, como não era de todo imprevisível, ele resolveu aliar-se à dissolução da família pela direita; se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Que ele não se preocupasse realmente com a família era evidente. Afinal, ele já fez projetos propondo a castração dos pobres, e já está na terceira “esposa”. Mas tamanho gol contra seria possível ter a esperança que ele não tentasse fazer. Ganhará palmas das federações industriais e outros órgãos do alto clero capitalista. Aumentará os lucros de um monte de gente cujo único denominador comum é já ser rico e não ter o menor interesse social, ou mesmo pessoal para com o empregado. E facilitará tremendamente o trabalho de dissolução social que é o que – na altura em que já estava – facilitou enormemente a introdução de todo tipo de perversão propagandeada pela esquerda para ajudar a abalar mais forte e rapidamente a instituição familiar, este pequeno castelo que faz com que se tenha aonde voltar após combater os dragões do dia a dia.

A medida provisória foi aprovada na Câmara, e espero sinceramente que seja rejeitada no Senado. Espero, mais ainda, que o presidente perceba o mal que ele está fazendo e se arrependa, e trabalhe a favor do país, inclusive de seu eleitorado. A vida familiar de um pobre é tão ou mais valiosa que a vida familiar de um rico. O encontro dominical de milhões de famílias, a criação de milhões de crianças, certamente é infinitamente mais valiosa que os milhões de reais, manchados do sangue, suor e lágrimas dessas famílias, que venham a ajuntar-se a outros milhões de reais já jazentes em contas de banco dos patrões.

Pela família, pelas próximas gerações: que cada senador rejeite essa proposta nauseabunda.

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