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Unidade Especial do Iphan – Centro Cultural do Patrimônio, antigo Paço Imperial. Foto: Daniel Silva Barbutti/WikimediaCommons
Unidade Especial do Iphan – Centro Cultural do Patrimônio, antigo Paço Imperial. Foto: Daniel Silva Barbutti/WikimediaCommons| Foto:

Terça-feira passada ocorreu uma dessas coisinhas pequenininhas, que antigamente saíam perdidas num canto morto da página dezessete do jornal, mas que, anos depois, são percebidas pelos historiadores futuros como sinais de inflexão, pontos de mutação cruciais no desenvolvimento de uma sociedade. Imaginem os senhores que foram criados 231 cargos para o gabinete do interventor federal no Rio de Janeiro e para o Ministério Extraordinário de Segurança Pública. Normal, mormente num país em crise, em guerra civil não-declarada, como este nosso gigante adormecido ao som das balas perdidas em que a cada ano morre mais gente por causas violentas que nos setenta anos de existência deste moderno estado cruzado que é Israel, cercado de êmulos de Saladino armados com cinturões de dinamite, aqui onde a cada ano matam mais gente que morreram americanos na Guerra do Vietnã (como ninguém contou os mortos de olhos puxados, ignoram-se os demais mortos daquela guerra).

Mas a notícia não é esta. A notícia é a origem da verba. Afinal, por mais que nos sonhos dos políticos de esquerda seja possível criar dinheiro do ar, num passe de mágica que faria com que todos pudessem enriquecer da noite para o dia por um milagre de multiplicação da verba pública, o dinheiro que sai tem de ter sido um dia um dinheiro que entrou. E para que saia dinheiro bastante para pagar os salários e demais custos-Brasil dos duzentos e tantos cargos de confiança necessários para melhor gerir a luta contra a criminalidade que domina o Rio de Janeiro, alguém doutro tem que ir para o olho da rua. E quem foram os escolhidos? Quem foram as vítimas sacrificiais, aqueles que se viram na situação da mistura de bolo que a dona de casa não compra para poder comprar feijão o bastante? Ninguém mais e ninguém menos, senhores, que trabalhadores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em suma: vende-se o passado para que se possa tentar ter um futuro. Ao patrimônio histórico e artístico preferem-se, no calor do momento, as balas e granadas (ou ao menos quem de seu uso lícito se encarrega).

Note-se bem que eu não estou dizendo que é errado, que dirá um absurdo; não apoio passeatas em defesa dos demitidos (cargo de confiança é assim mesmo, não tem estabilidade alguma); nem, muito menos, vejo nisso um sinal assustador de um suposto avanço de um fascismo (quiçá mesmo um fascismo bolsonarista, a que só faltaria o bigode para compor a personalidade de líder totalitário, nos delírios paranoicos dos mesmos que não reparam que Maduro já tem um farto bigodão a dizer a que vem). Só constato. Constato que o patrimônio histórico nacional – ou, antes, a burocracia que vive dele como bezerros ou bernes vivem da vaca – está cedendo espaço, verba e importância à segurança pública.

Ou, antes, à insegurança pública, pois é ela que sentimos na pele. Ninguém se sente mais seguro ao ver um dos lados – o lado bom, o lado certo – de uma guerra, armado até os dentes e procurando confronto. Tememos que o encontrem enquanto saímos do restaurante ou do cinema, enquanto visitamos os parentes, enquanto, em suma, fingimos tão bem fingido que vivemos num país normal. Enquanto fingimos tão bem fingido que não há toda uma classe de gente que dedica a própria vida à segurança e à tranquilidade, ao menos tentada, de seus concidadãos. Em suma: polícia dá medo porque se teme que o conflito urbano aberto de que sua presença é símbolo e realidade se faça presente ali na nossa frente, estragando nosso programa de final de semana.

Já o Iphan não dá medo; só o que pode fazer é deixar vir à luz os podres de algum antepassado já há muito carcomido pelos vermes.

Mas na guerra a prioridade é do que assusta. Poucos cuidaram do zoológico de Bagdá durante a guerra, por exemplo… E aqui, no nosso bom e querido Bananão, o trato dos manuscritos de valor inestimável, que fariam e em alguma medida fazem já a alegria de uma pequena multidão de estudiosos, foram por necessidade postos para escanteio em benefício de planos estratégicos e táticos de campanha, relatórios de gastos e suprimento de munição ou de alocação de tropas, laudos periciais, inquéritos e demais componentes daquela fabulosa máquina de mover papel que atende pelo nome de Segurança Pública.

É difícil, se não impossível, deixar de defender a troca feita, ao menos no atacado. No varejo, claro, sempre se encontra bons motivos, e quando se lida com centenas de pessoas é inevitável que haja injustiças. Afinal, sempre se poderia ter demitido o subdiretor de manutenção de aparelhos de fax e de lâmpadas incandescentes do Iphan no lugar do sujeito que desveladamente cuida de que carunchos não devorem os documentos da Regência. Do outro lado, certamente há de haver dentre os 231 recém-agraciados pelas benesses orçamentárias pelo menos um ou dois que devem sua carreira à obediência incondicional às duas siglas-mestras do serviço público: “TCR” (“Tirar o ‘Seu’ da Reta”) e “PPF” (“Passar o Pepino pra Frente”). Não que não os haja no Iphan, claro. Burocracia é burocracia, e assim como o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, segundo Lorde Acton, a burocracia premia o comportamento de manada, e a burocracia absoluta a todos transforma em manada, como poderia ter dito Weber.

Mas o fato é este, a notícia é esta, e daqui a cem ou duzentos anos vai ser isto o publicado nos livros de História, em detrimento do que o grosso das matérias de jornal de hoje cobre e trata como imprescindível. Assim é o jornalismo, e assim é a História. Pouquíssimo têm a ver as disciplinas, ainda que na teoria tratem das mesmas coisas em períodos distintos do tempo. Era no Iphan que se podia descobrir muito disso; agora, contudo, é melhor dar tempo ao tempo enquanto o couro come lá fora. Os quarenta e tantos milhões de reais que iriam para o passado vão agora para uma tentativa a mais, que esperamos não seja vã, de garantir-nos um futuro. Lamentável, mas mais lamentável ainda é terem deixado a crise chegar a este ponto.

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