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Sindicatos recorrem à judicialização e a greves para impedir volta às aulas presenciais
Aula remota durante a pandemia. Imagem ilustrativa.| Foto: Divulgação MCTIC

Nunca foi um segredo o fato de as escolas públicas brasileiras serem meros depósitos de crianças e adolescentes, versões das creches para gente pouca coisa mais velha. Nelas, sempre se disse, o Estado finge que paga, o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende. O que era mais um menos um segredo até o ano passado, contudo, é o quanto o mesmo se aplica às escolas particulares. Muitas famílias gastam uma parte desproporcional do orçamento mensal para pagar uma escola que prepare os filhos para o mercado de trabalho e abra-lhes as portas do ensino superior. Este, aliás, já é um péssimo objetivo, na medida em que o papel real da escola deveria ser garantir às novas gerações acesso à herança cultural da sociedade, não apenas treinar bons funcionários.

Com a pandemia, contudo, as mesmas barbaridades antipedagógicas que eram perpetradas contra os alunos entre as quatro paredes da escola e entre elas ficavam subitamente passaram a entrar em casa, à vista dos pais. Pela primeira vez, tornou-se-lhes possível ver o que os filhos recebem em troca da exorbitante mensalidade. Pela primeira vez puderam ver os professores em seu habitat real, a sala de aula, não mais apenas no artificialíssimo ambiente das tristemente famosas reuniões de pais e mestres. Isto, claro, resultou num choque dolorosíssimo. Soube de gente que ficou tão horrorizada ao perceber a farsa perpetrada pelas escolas com mensalidades na casa dos quatro dígitos mensais que mudou os filhos de escola. Para uma escola mais barata, claro, onde mais ou menos as mesmas barbaridades são perpetradas, só que por um custo financeiro menor.

Quem conhece nossas instituições escolares por dentro e tem um mínimo de cultura e respeito pelo estudo sempre soube que elas são uma triste piada. Sempre soube que os professores de Inglês seriam incapazes de entender um filme sem legendas, que os de Geografia não saberiam indicar num mapa qualquer país africano ou eurasiano pequeno, e que os de Matemática no mais das vezes só fazem repetir algo que ouviram na escola sem jamais haver tentado descobrir para que aquilo serve no mundo real. O tamanho do buraco, todavia, costumava ser ocultado aos pais dos alunos, que no mais das vezes simplesmente presumiam que recebiam aquilo pelo que pagavam tão caro. Afinal, em uma área normal de atuação profissional, os incompetentes são demitidos e a firma que não cumpre o que é obrigada contratualmente a entregar vai logo à falência.

Com a pandemia, as mesmas barbaridades antipedagógicas que eram perpetradas contra os alunos entre as quatro paredes da escola e entre elas ficavam subitamente passaram a entrar em casa, à vista dos pais

Qual seria, todavia, a obrigação da escola? O que ela deveria dar aos alunos em troca do que os pais pagam? E, mais ainda, como se definiria “competência” ou “incompetência” em tal ambiente? É aí que a porca torce o rabo. A visão dos pais, como disse, é de que a escola seria uma espécie de preparação para o mercado de trabalho e o ensino superior. Dificilmente, no entanto, se poderia estar tão longe da visão que orienta a classe da pedagogia. Este fortíssimo grupo de interesse, cuja existência é desconhecida pela quase totalidade dos pais, dominou há tempos a formação dos professores e hoje domina quase completamente todos os aspectos da escolarização fundamental e média. Tudo o que diz respeito ao ensino escolar é dominado e microgerenciado por ela, do material didático à organização interna de cada escola, passando pelos requisitos de contratação de professores. E, na visão deste grupo, um dos papéis mais fundamentais da escola é, literalmente, afastar as crianças dos valores que orientam os pais. A “matéria” lecionada é irrelevante, servindo apenas de excipiente do objetivo real de condicionar os alunos numa visão de mundo dominada por uma forma especialmente antirracional de extremismo esquerdista.

Com este objetivo, essa classe conseguiu universalizar a exigência de um diploma de licenciatura. Trata-se de um canudo que antes era necessário obter apenas para lecionar em universidades, mas hoje é requerido até mesmo de professorinhas primárias. Para a obtenção do famoso amuleto, claro, requer-se que o aluno se submeta a uma quantidade sempre crescente de matérias “pedagógicas”. O objetivo de todas aquelas horas a mais numa formação teoricamente profissional é um, e apenas um: aumentar as chances de sucesso de uma operação de lavagem cerebral. Nelas, tenta-se – e muitas vezes se consegue – convencer os futuros professores de que o papel que lhes cabe não é transmitir conhecimento, mas “fazer a cabeça” da molecadinha. E, como os papéis de direção e coordenação das escolas são também privativos dos lobotomizados por essa classe, não é daquele lado que se há de esperar qualquer incentivo à nefanda transmissão de conhecimento (vilipendiada como “educação bancária”).

Como bem-vindo efeito colateral das exigências desmedidas, ocorre também uma tremenda restrição na oferta de professores. Como qualquer restrição artificial de oferta, isto provoca uma supervalorização da qualidade do produto ofertado. Assim como em tempos de fome carne de rato se torna uma iguaria, em tempos de MEC qualquer licenciado vira professor. Se houver uma única vaga de professor sendo disputada por um gênio da matemática e da didática formado em Engenharia pelo ITA e com real vocação de professor, e qualquer sujeito de tênis que conseguiu colar o bastante para garantir-se a duras penas um diploma de licenciatura em Matemática na UniFácil, o contratado será necessariamente este.

A educação brasileira, diga-se de passagem, jamais foi boa. Nosso sistema educacional é em grande medida fruto de ideias positivistas que tentam “purificar” o conhecimento de qualquer referência ao mundo material, evitando até mesmo mencionar qualquer aplicação prática que ele possa a ter. Na nossa triste tradição escolar, quanto mais a manipulação do ensinado ocorrer de maneira puramente intelectual, sem que jamais se sujem as suaves mãozinhas dos mestres e alunos, maior a nobreza percebida do empreendimento educacional. Por um lado, isto impediu que a dominação completa do sistema acadêmico de pedagogia e seu desmesurado avanço sobre todas as instituições educacionais causassem todo o estrago desejado no mundo real. Um país em que houvesse uma tradição de aplicar o ensinado já teria se tornado uma distopia pior que a Coreia do Norte se algo como a pedagogia brasileira tivesse sobre suas instituições de ensino metade do domínio que conseguiu sobre as nossas.

Por outro lado, todavia, o descompasso entre as expectativas dos pais e os objetivos praticamente unânimes dentro dos ambientes escolares, que só agora se tornou visível pela transferência da aula para a casa do aluno, certamente trará consequências interessantes. Mais interessantes ainda, quando ao descompasso de expectativas se soma a grande probabilidade de o bolsogoverno atual aproveitar a situação instaurada de fato pela pandemia para trocar a obrigatoriedade de presença em uma escola pela obrigatoriedade de passar em alguma prova estatal (como o Enem). É o tal homeschooling, ou escolarização doméstica, que pode perfeitamente ser terceirizada pelos pais e operar via internet, como em tese estão fazendo agora as escolas reconhecidas pelo MEC.

A vertiginosa decadência do sistema escolar brasileiro, que tive a tristeza de acompanhar por dentro, é – ou era – ignorada pela massa da população. Os mais jovens achavam que sempre fora assim; e os mais velhos, que continuava tudo como era quando iam à escola. Já quem pôde ver a decadência aumentando bimestre a bimestre, ano a ano, década por década, acompanhando muitas vezes o crescimento de alunos, sabe como tudo piorou tremendamente. E agora, eis que os pais puderam ver com os próprios olhos que os professores de seus filhos são no mais das vezes analfabetos funcionais. Que as provas e exercícios são copiados e colados de páginas de internet, mesmo por serem os professores muitas vezes incapazes de elaborá-los. Percebe-se agora claramente que a escola, mesmo e talvez mais ainda a particular que a pública, é realmente apenas um depósito de crianças e adolescentes. Que seu papel social não passa nem remotamente perto do que os pais pensavam ser, resumindo-se ao de continuar a creche para garantir que haja mais mulheres no mercado de trabalho. Isto, por sua vez, faz com que os salários diminuam devido ao aumento da oferta de trabalhadores, o que, por sua vez, demanda que ambos os cônjuges trabalhem fora, num ciclo vicioso que só interessa ao grande capital.

A parte da escola que deveria ser dedicada ao ensino, quando a escola foi subitamente transferida para uma tela no ambiente doméstico, revelou aos pais todo o seu fracasso, toda a sua absoluta incapacidade. Afinal, para que serve acorrentar a criança a uma tela, numa espécie de depósito agora doméstico de crianças, que quase nada ensina e, se ensina, ensina a coisa errada?!

Devido ao vício positivista, mesmo em tempos mais remotos, quando eram os avós dos estudantes de hoje que estavam na escola, o currículo já era um castelo de cartas flutuante. Destarte, os pais não estranham que as crianças tenham de “aprender” um monte de arbitrariedades sem sentido, numa progressão igualmente sem sentido, vomitando-as na prova e logo as esquecendo. Afinal, foi assim com eles também. A única diferença é que agora os professores no mais das vezes nem tentam ensinar a “matéria”, e as provas foram se tornando cada vez mais fáceis, exatamente por isto.

Digamos, porém, que os pais queiram garantir aos filhos uma boa nota no Enem. Para isso a única solução é realmente aprender todo aquele bestialógico, todas aquelas irrelevâncias pseudodidáticas. E é aí que entram as plataformas didáticas privadas, que operam via internet. Já há várias, que por interesse em vender aos pais e aos alunos seu produto têm todos os incentivos necessários para aproveitar ao máximo cada aula. Ao contrário, claro, do que ocorre na escola. Quando se compara as aulas (se é que se lhes pode dar tão nobre nome!) por internet de uma escola particular e de algumas destas plataformas, a diferença é brutal. Naquelas, uma professora visivelmente incapaz enrola os alunos por três horas, ao cabo das quais eles terão uma vaga noção daquilo de que ela falava. Nestas, um bom professor apresenta de forma clara e sucinta a mesma matéria em menos de dez minutos.

Os pais não estranham que as crianças tenham de “aprender” um monte de arbitrariedades sem sentido, numa progressão igualmente sem sentido, vomitando-as na prova e logo as esquecendo. Afinal, foi assim com eles também

Tendo sido eliminado pela pandemia o papel social de depósito de crianças, qual seria o sentido de submeter os pimpolhos àquilo tudo, se em uma hora por dia – contando com o tempo de fazer os exercícios de casa – eles podem aprender mais e melhor que em cinco horas diárias na escola a distância? Mais ainda: tendo sido substituído o dever de sentar-se mais ou menos quieto cinco horas por dia num banco escolar pelo de prestar atenção e exercitar-se no conteúdo aprendido até sua fixação, tornou-se possível aos fedelhos aprender outra coisa que a escola atual nem sonha sequer em valorizar, que dirá em ensinar: a autodisciplina.

Curiosamente, o processo que está começando agora tem um modelo bastante próximo, que é o surgimento dos aplicativos de transporte. O serviço de táxi tradicional dependia basicamente da escassez deliberada de autorizações governamentais para o prestar. Com o surgimento dos aplicativos, tornou-se evidente a artificialidade e a irrelevância para a qualidade do serviço das tais autorizações governamentais. O mesmo pode e deve ocorrer no ambiente escolar; afinal, a única coisa que o reconhecimento pelo MEC prova, na comparação entre as plataformas de aprendizado digital e as escolas, é que o que o MEC reconhece é péssimo, enquanto o que o mercado elabora e o MEC ignora é ótimo. A chancela estatal tem valor negativo de qualidade.

Mais ainda: a súbita descoberta pelos pais de que estavam pagando por uma coisa e levando outra fatalmente levará à substituição do tempo na escola por outros tipos menos caros e desastrosos de depósito de crianças durante a jornada de trabalho dos pais, com empresas que se encarreguem de levar as crianças do judô ao curso de inglês e deste à aula de desenho, preenchendo de forma mais produtiva aquele tempo. Quanto ao que seria supostamente ensinado na escola, em menos de uma hora em casa o petiz aprenderá muito mais.

Quem sabe, talvez possamos até mesmo sonhar com uma maioria de alfabetizados entre os formandos do ensino médio, daqui a alguns anos? Seria lindo.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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