| Foto: Arek Socha/Pixabay
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Bem sei que a interminável novela das eleições americanas já torrou muito bem torrada a paciência de todo mundo. Desta feita, porém, uso-a apenas de mote para apontar uma diferença que muito nos favorece em relação a nossos famosos irmãos do Norte. Trata-se do seguinte: como já vim apontando em colunas anteriores, os Estados Unidos – por não terem religião própria, ou, antes, por ser o Estado americano liminarmente fechado à ideia de adotar como sua uma religião preexistente – têm na prática como religião instituída o próprio Estado. Ele mesmo é a igreja institucional americana, e seus mandatários os sacerdotes. Daí que vêm os tantos usos das figuras bíblicas referentes à própria Igreja estabelecida por Nosso Senhor e não reconhecida pelos EUA para referir-se não a ela, mas ao país. “Uma casa que não pode ser dividida”, “uma cidade sobre a montanha”, “uma candeia que não pode ser escondida debaixo do alqueire” e tantas outras expressões são percebidas pelos americanos como se incongruentemente referissem-se a seu próprio (e recentíssimo) país. Do mesmo modo, é extremamente comum que nas imaginativas pregações escatológicas dos pregadores protestantes de lá os EUA desempenhem papel de destaque.

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Como igualmente já apoquentei a enorme paciência de meu punhadinho de leitores ao afirmar que a origem da legitimidade pseudossacerdotal dos mandatários americanos é a eleição, não me alongo nisto. Aponto, todavia, outro ponto do “sonho americano”, que para nós faz pouco ou nenhum sentido: o “day in court”, “dia no tribunal”. Basicamente, trata-se do seguinte: o sonhador americano tem entre suas premissas a de que os julgamentos feitos nos tribunais de sua pátria não são apenas justos, mas também verdadeiros loci, “lugares” de manifestação do seu sonho. Isto decorre de vários fatores ao mesmo tempo, todos ou quase todos completamente alheios à nossa realidade e modo de pensar. Alongo-me, então, pedindo desde já que se resignem à minha prolixidade os poucos que venham a ler as mal-traçadas que ora batuco.

O primeiro fator de monta é a forma como se compõe a noção de moral do americano. Chesterton, famosamente, disse que os americanos não têm qualquer padrão de certo e errado, e em seu lugar colocam aquilo de que gostam ou não gostam. Por estas palavras, ele se referia à pseudomoral kantiana, composta basicamente de listinhas do que seu criador chamava de “imperativos morais categóricos”. Estas figuras da sórdida imaginação do Onanista de Kaliningrado seriam “descobertas” do que seria certo ou errado, dotadas de valor universal. Por este princípio, todos seriam, em tese, capazes de chegar pela razão à mesma conclusão. Quem não a aceitasse, então, seria necessariamente ou bem desprovido de razão ou bem maligno – tendo chegado àquela suposta “verdade” e a negado. Em outras palavras, burro ou mal-intencionado. Esta é a base do que passa por moral nos EUA, o que por si só já explica perfeitamente a situação atual, em que listinhas de imperativos morais categóricos irreconciliáveis fazem com que os membros dos dois partidos tenham a mais perfeita certeza de que os membros do partido oposto são necessária e inescapavelmente burros ou mal-intencionados. Isto, claro, impede completa e liminarmente que haja qualquer tentativa de diálogo; afinal, ninguém dialoga com retardados ou com demônios.

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O sonhador americano tem entre suas premissas a de que os julgamentos feitos nos tribunais de sua pátria não são apenas justos, mas também verdadeiros loci, “lugares” de manifestação do seu sonho

Há, contudo, uma tentativa de manter uma “base” que seria comum a todos. Esta, aliás, é – justamente por conta de fazer parte da religião civil – realmente aceita, de uma maneira que a nós, brasileiros, chega a parecer loucura. E é. Trata-se, nada mais nada menos, da legislação. Ela, como na teoria delirante do positivismo kelseniano que assombra os cursos técnicos de legislação positiva e burocracia aplicada que aqui passam por faculdades de Direito, é o “mínimo moral”. Em outras palavras, obedecer à lei – qualquer lei, toda lei – é o mínimo que se pode e deve exigir de comportamento de todo e cada cidadão. E, não, as leis não são poucas e bem explicadas; muito ao contrário, aliás. A lei americana é consuetudinária, ou seja, baseia-se em precedentes judiciais e jurisprudência, não em promulgação. É por isto que vemos em filmes os advogados procurando historinhas mais ou menos semelhantes àquela com que estão lidando no Judiciário.

Em outras palavras, o mínimo que se espera de uma pessoa decente, por lá, é que obedeça a leis que ela mesma não conhece. Por outro lado, justamente por essas leis serem derivadas do costume, isto acaba sendo mais ou menos um sinônimo de agir como todo mundo age, não fazer marola, não sair do padrãozinho. Quando, por outro lado, se sabe que há uma lei “diferente” ou pouco usual neste ou naquele lugar, toma-se cuidado extremo em evitar violá-la. É, como se pode ver, uma relação com a lei totalmente diferente da que os brasileiros temos. Um guia turístico de VIPs americanos me contou certa feita que, quando queria evitar algum comportamento indesejado da parte dos tais VIPs, bastava-lhe em geral dizer que havia uma lei que o proibia.

Além disso, há outro elemento crucial, que é o fato de que a regra, nos tribunais americanos, é que haja um júri para qualquer coisa mais séria. Enquanto aqui no Brasil usamos de jurados para homicídios, e olhe lá, nos EUA a própria ideia de um julgamento envolve um “júri de seus pares”. O americano, assim, considera que será julgado por gente como ele. No tribunal é realmente proibido mentir, e as provas contra ou a favor do réu são apresentadas exaustivamente. E mais ainda, ainda que não seja coisa muito falada, é lei nos EUA que o júri tem o direito de não apenas verificar se o réu descumpriu tal ou tal lei, mas também de julgar a lei. Este procedimento de nulificação da lei em favor do costume faz com que, mais uma vez, os hábitos e costumes da população possam ser ainda mais importantes que os antecedentes ou mesmo a promulgação de alguma diretriz judicial. Veja-se, então, que para uma pessoa acostumada a agir honestamente “como todo mundo”, o júri apresenta-se como a oportunidade real e “santificada” pela religião cívica de corrigir toda e qualquer injustiça.

Daí a importância no sonho americano do famoso day in court, o dia no tribunal: é lá, é então, que a inocência ultrajada pode ser vingada. Para nós isto parece loucura. Afinal, estamos acostumados com leis promulgadas por políticos que já sabem que elas não vão colar. Sabemos que num tribunal ver-nos-emos diante de um dos nossos juízes, que veem o mundo por lentes opacas e fuliginosas e interessam-se apenas por compor o infame silogismo perfeito de Beccaria. Para eles trata-se simplesmente de verificar que, se a lei diz que tal ato é punido de tal forma e o réu cometeu tal ato, assim será ele punido. O costume é no mais das vezes oposto à lei, e agir como todo mundo não nos livra em absoluto de severa punição – tão maior quanto mais irrelevante for o suposto crime – caso caiamos nas garras do Judiciário brasileiro. O que para eles é o sonho da redenção do inocente para nós é a certeza do teatro do absurdo, do kafkiano, da alucinante e macabra realidade alternativa em que vive nosso Judiciário.

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Lá mesmo, todavia, o sonho do day in court vem sendo solapado sistematicamente por um procedimento que vejo com muito temor imiscuir-se no nosso já péssimo sistema. Trata-se do plea bargain, ou acordo judicial, em que o indiciado confessa-se culpado de crime menos grave que aquele de que é acusado, e assim é condenado sem mesmo passar por um julgamento. Este instrumento acaba por causar tremendas injustiças, pioradas por nos EUA a polícia ser parte, estando ligada à promotoria, não instrumento inquisitorial neutro como no Brasil. O que acaba acontecendo é que o criminoso real que comete um homicídio doloso faz um acordo pelo qual é punido por homicídio culposo, que confessa, e assim sua punição é menor. Já o inocente, apavorado pela conversa da polícia (que, reitero, trabalha nos EUA para a acusação!), acaba por confessar-se culpado de crime que não cometeu, mas cuja pena é mais leve que a daquele de que é falsamente acusado. E assim os reais criminosos recebem punições mais leves e os inocentes são condenados injustamente. Aqui mesmo no Brasil a transação penal frequentemente faz disso, aliás.

Mas, porém, contudo, entretanto, no entanto, todavia, continua fazendo parte integrante do sonho americano o day in court. Inúmeros filmes de tribunal e livros de ficção ajudam a manter consolidado esse sonho cada vez mais irreal na cabeça do americano médio. A crença numa suposta imparcialidade da Justiça e de sua adesão aos hábitos e costumes da população continua viva e pujante. É lá, lembramos, que o inocente pode apresentar toda sua história, todas as suas provas, tudo o que proclama aos Céus a sua inocência ultrajada, e receber a justiça que busca. Tal é o sonho. Mas este sonho acaba de ser cortado pela raiz, de maneira brutal e inimaginável em qualquer outro momento da história americana.

Trump teve negado o seu day in court; toda a papelada preparada por sua equipe e por outros não teve seus lacres rompidos, não foi examinada, não veio à luz

O próprio presidente dos Estados Unidos, o Sumo Sacerdote da religião cívica, tentando apresentar aos tribunais as provas de nada mais nada menos que fraudes eleitorais maciças – logo, de ultraje sacrílego ao sacramento básico de constituição, de legitimação, de “ordenação” do próximo Sumo Sacerdote –, teve seu day in court liminarmente negado. Nem sei quantos tribunais, incluindo-se na conta a própria Suprema Corte (logo, a Suprema Liturgia cívica!), simplesmente negaram-se a examinar a enorme pilha de provas, indícios e evidências que a equipe de advogados do Homem-Abóbora montou em prazo recorde. Milhares de depoimentos em cartório (que nos EUA valem uma cadeia braba se forem provados falsos), de provas técnicas de todo tipo, não foram examinados por nenhum tribunal. Não se trata de uma situação em que eles tenham sido examinados e provados falsos; isto seria uma corroboração do discurso da hoje oposição e hoje igualmente situação futura. E seria, a seu modo, igualmente uma corroboração da importância do famoso day in court, no caso até mesmo a Suprema Corte, o tribunal supremo da religião cívica. O resultado, qualquer que fosse, contra ou a favor de Trump, seria aceito por todos justamente por vir das entranhas sacramentais da religião cívica.

Mas não. Trump teve negado o seu day in court; toda a papelada preparada por sua equipe e por outros não teve seus lacres rompidos, não foi examinada, não veio à luz. São, ao mesmo tempo, três instituições da religião cívica moderna que se relevam mero teatrinho, que veem negada sua importância no meio do que provavelmente é a maior crise por que passam os EUA desde a Guerra da Secessão. O presidente, o Sumo Sacerdote, já tivera sua fala cortada no meio de uma transmissão ao vivo por todas as cadeias de rádio e televisão, incluindo a pública NPR. Isto já é espantoso. Mas mais espantoso ainda é que lhe seja negado, justamente a ele, o seu day in court. Ao fazê-lo, nega-se a própria instituição do day in court, a esperança americana de que a Justiça quase celeste há de ser feita por um júri de seus pares. E, finalmente, devido ao objeto da discussão – as fraudes eleitorais, cuja inexistência ou existência não foi provada judicialmente –, corta-se igualmente pela raiz a legitimidade do sacerdócio cívico de quem venha a ser empossado em janeiro próximo.

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A legitimidade da ascensão de Biden e Harris foi negada, o que é um ataque sério ao sistema, à própria base da religião cívica, quando vieram à tona as inúmeras acusações de fraude. Se estas acusações fossem provadas falsas ou verdadeiras por um tribunal, após meticuloso exame das provas, evidências e indícios apresentados por ambas as partes, a situação voltaria a alguma normalidade institucional. Sem que tenha havido exame da matéria, contudo, não há legitimação da autoridade do próximo Sumo Sacerdote. Mutatis mutandis, é como não se pudesse ter certeza de que o papa é um sacerdote validamente ordenado.

É até compreensível, para nós, o que aconteceu. Mas não é – e é isto que venho apontar – compreensível dentro do sistema de pensamento, da religião cívica, de nossos irmãos do Norte. Um brasileiro entende perfeitamente que o Supremo lá deles tenha evitado fazer marola na hora em que a situação já está complicada e o domínio da mídia pela oposição garante que sejam poucas vozes a reclamar duma provável posse presidencial de Biden ou Harris. Um brasileiro entende, sabendo do que escrevi acima, que para os juízes e ministros do Supremo tudo o que Trump tentou levar aos tribunais seja uma batata-quente de que mais vale se livrar, uma Caixa de Pandora que parece mais prudente não abrir. Mas isto é porque nós não acreditamos naquilo tudo, não somos fiéis devotos da religião cívica americana.

Já que isto aconteça lá é sinal de uma dissolução social que faz das manifestações e confusões que se seguiram à morte de George Floyd pífias e patéticas pantomimas. Estes elementos que acabam de ser negados, desmascarados e dissolvidos estão no cerne do pouco que ainda une a população americana. Já há vozes, e vozes importantes, falando de secessão. O maioral do Partido Republicano no Texas já propôs que os estados americanos que se viram ultrajados pela Suprema Corte ao ter negado o exame de suas acusações de fraude eleitoral unam-se em entidade separada do resto dos EUA. Um deputado estadual, igualmente texano, já declarou que proporá um plebiscito para ver se a população do estado prefere continuar nos EUA ou voltar a ser uma república independente, como foi de facto por dez anos no século retrasado.

Estamos assistindo de camarote à dissolução da Modernidade, um pesadelo que terá durado pouco mais de 200 anos e provavelmente será estudado no futuro como mera fase terminal da decadência da civilização medieval ocidental. Os EUA são o núcleo duro da Modernidade, o país mais importante a ser construído em tabula rasa por princípios modernos (os demais, aliás umbilicalmente ligados aos EUA, são o Canadá, que costumo dizer ser um estado americano desunido; a dupla siamesa Austrália e Nova Zelândia; e, finalmente, Israel, na prática também um estado americano). A queda do sistema moderno americano, a dissolução dessa experiência social maçônica extremamente bem-sucedida enquanto durou, é tão ou mais representativa do fim da Modernidade que a derrocada final do império espanhol (aliás, pelas mãos armadas dos EUA) foi representativa do fim do Antigo Regime.

Aqui, no Bananão, estamos bem. Com a exceção das nossas sofridas megalópoles, claro, que mais cedo ou mais tarde terão de dissolver-se pela interiorização dos habitantes, cada vez mais incentivada e acelerada pela anomia institucional que já domina muitas delas. No interior, se sumissem de um dia pro outro a polícia e os tribunais, é provável que a ordem social aumentasse, em vez de diminuir. Não temos sonhos de justiça governamental; nossa ordem é de outra ordem, se me perdoam a gracinha. Teremos, sim, problemas e convulsões, mormente no litoral. Mas no nosso vastíssimo interior, a queda da Modernidade será com certeza menos daninha e menos impressionante que, digamos, a hiperinflação do (des)governo Sarney. Estamos bem, e podemos admirar de nosso confortável camarote o que está em curso no dito Primeiro Mundo.

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