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Detalhe de estátua da deusa Têmis diante da sede do Supremo Tribunal Federal.
Detalhe de estátua da deusa Têmis diante da sede do Supremo Tribunal Federal.| Foto: Gervásio Baptista/SCO/STF

Talvez por serem na prática desimportantes, até mesmo uma espécie de anticlímax, as festas de casamento de gente que já morava junto costumam ter uma opulência algo felliniana, com os “noivos” gastando o que não têm para celebrar a mera oficialização do que já acontecia. É o caso também da posse do Lula, que já confessou que está governando desde que lhe foi dada a vitória no que se convencionou (sob pena de perseguição) chamar de eleição. Coisa fina, polida, elegante, com luvas de pelica sobre a mão de ferro: esta simulação de democracia para inglês (e americano, e europeu... enganaram a gringalhada toda!) ver é muito mais elegante que qualquer quartelada tradicional de Terceiro Mundo.

Mas o fato é que faz tempo que sumiu do horizonte político brasileiro a tal democracia. Tendo sido um presidente fraco, no governo Bolsonaro a diferença tão bem apontada por José Dirceu – o homem das sombras; por onde anda? – entre estar no governo e deter o poder alargou-se a proporções inimagináveis. O grosso do vácuo foi preenchido pelo Supremo, que, fazendo-se mais Supremo que Tribunal ou que Federal, espalhou-se metastaticamente Estado afora, e substituiu a tão cantada e tão desconfortável democracia pela critocracia – o governo dos juízes. Não se trata, infelizmente, de uma critarquia como a do antigo Israel, em que os juízes julgavam malfeitos e disputas, mas não aporrinhavam o povo fazendo valer seus gostos e vontades, e sim de uma critocracia autocrática, em que, à moda dos países da antiga Cortina de Ferro ou das ditaduras africanas, irritar o manda-chuva traz punição garantida.

O STF, fazendo-se mais Supremo que Tribunal ou que Federal, espalhou-se metastaticamente Estado afora, e substituiu a tão cantada e tão desconfortável democracia pela critocracia – o governo dos juízes

Mais ainda: paradoxalmente, foi a chegada da critocracia que acabou com a nomocracia – o governo da lei, em que a lei vale mais que a personalidade do juiz, do governante ou do desgovernante. Aquilo que se convencionou chamar de Estado de Direito não existe mais no Brasil faz tempo. Qual terá sido sua pá de cal, entre tantos ataques absurdos? Terá sido a eliminação da prisão dos condenados em segunda instância, soltando criminosos às mancheias pelas ruas apenas para soltar o Desejado dos Juízes? Quando se pensa que a regra mundo afora e história afora sempre foi a prisão após a condenação em primeira instância, já sendo coisa extremamente nociva à sociedade postergá-la para dar mais tempo para as chicanas e outras safadezas dos criminosos ricos e poderosos, seria possível dizer que tal ataque à nomocracia já foi um grande avanço rumo ao precipício da anarquia. Pelo menos é essa a impressão de quem tem de conviver com bandidos que entram na delegacia por uma porta e saem pela outra, sem jamais pagar pelos seus crimes, sempre livres para atacar os mais pobres (rico tem carro blindado, muro alto com cerca elétrica... a vítima primeira do criminoso comum é o pobre, sempre ele). Ou teria sido a anulação, por uma tecnicalidade besta, da mesma condenação em primeira e em segunda instância que levara os critocratas a soltar aquela bandidagem toda, logo seguida pela declaração de terem prescrito os muitos crimes do Amado dos Critocratas? Ou, ainda, a proibição de se mencionar tais fenômenos, fazendo de soltura absolvição, coisa tão delirante que provocou protestos (logo calados) de ministros aposentados da mesma suprema corte? Ou, dentre tantas outras barbaridades que nem dá para contar sem desta coluna fazer um livro, a inconstitucionalíssima prisão de um parlamentar por delito de opinião? Ou, ainda, a vingancinha besta de mandá-lo pagar multa obscenamente alta por ter sido interrompida a perseguição ilegal pelo indulto bolsopresidencial? Ou, ainda, os horrores da campanha, em que o suposto árbitro fez-se capitão de time, com o resultado que eu previra com diferença de um décimo de ponto porcentual?

O fato é que temos Estado, ao menos por enquanto, mas ele não é nem um pouco democrático, e seria piada macabra dizê-lo Estado de Direito. Vendo o ministério lulesco, aliás, multiplicado em números ao ponto de parecer que cada esquerdista impenitente haveria de vir a tornar-se ministro de alguma besteira, só podemos definir o que já está por aí desde o segundo turno como um Estado Critocrático de Esquerda. Temos uma ministra cujas credenciais para cuidar da Ciência e Tecnologia (como se fizesse sentido um ministério disso, aliás) são a presidência de um Partido Comunista. Desisti de acompanhar, mas parece que haveria outra ministra credenciadíssima pelo fato de ser irmã da Marielle, famosa por seu martírio e apenas por ele, e foi ao menos percebido como razão bastante para merecer nomeação ter sido coleguinha de serviço da “primeira-transante” (sim, já vi a pobre esposa do Dedeta-em-chefe sendo “elogiada” com o termo transante, como se os filhos dos demais presidentes houvessem surgido por geração espontânea). As desimportantes finanças do Estado Critocrático de Esquerda foram dadas ao Haddad, valha-me Deus, que provavelmente as pintará de vermelho e as decretará ciclovias financeiras.

Do mesmo modo, agindo com empáfia que não se justificaria nem se uma esmagadora maioria dos brasileiros o houvesse eleito, os suspeitos de sempre já vêm voltando o poder recentemente recuperado contra quem quer que seja percebido como seu inimigo. O sujeito que comandava a PRF e foi ameaçado por cumprir a lei e tentar enxugar um pouquinho de gelo coibindo uns poucos dos muitos abusos do voto de cabresto Nordeste afora foi demitido (pelo Bolsonaro! – que, se acha que assim terá leniência por parte da esquerda, é mais ingênuo que um general) e está em vias de ser processado, além de ter como sucessor apontado um palhaço que, dentre tanta gente neste mundo de meu Deus, escolheu por ídolo Fidel Castro. O juiz Marcelo Bretas também vem sendo ameaçado, cataram a arma da bolsodeputada maluquinha, e tanto o Bolsonaro quanto seus filhos podem ter certeza de que, se não acharem urgentemente asilo político, vão em cana pelo crime de terem demonstrado, pelo voto popular, que o povão não quer ver o PT nem pintado de dourado.

O Bolsocongresso eleito pelo Grande Eleitor do pleito passado que se prepare, aliás. Afinal, trata-se de uma novidade que não se via desde antes de os militares tirarem a bola do campo em 1964: um Congresso em que a direita é mais representativa que a esquerda, em números e em entusiasmo ideológico. Na Câmara que ora volta para casa, o parlamentar ilegalmente perseguido pelo critocrata-em-chefe era a exceção; neste Congresso seu tipo será antes a regra. Não precisa ser campeão de xadrez para deduzir que na melhor das hipóteses o Congresso será, ou continuará a ser, completamente esvaziado. Demorou para promulgar alguma lei, ou mesmo emenda constitucional, de interesse dos poderosos? O Judiciário o faz pelo Legislativo, e pronto. Algum parlamentar ousa falar mais alto contra os desmandos do poder? Sugiro desde logo que o faça do exterior, para evitar ver o sol nascer quadrado. O mais tragicômico da história é que uma das desculpas dadas para perseguir o tal bolsodeputado foi ele haver se manifestado em favor do AI-5 (que ele provavelmente nem sabia direito do que se tratava, só que era coisa de que a esquerda não gosta; bem sei que quem vê cara não vê coração, mas poucas pessoas têm menos cara de intelectual que o pobrezinho), e provavelmente teremos na prática, sem o trabalho e o vexame de botar no papel, a mesmíssima coisa no Estado Critocrático de Esquerda que ainda está afiando as garrinhas. Quarteladas grosseiras nunca mais; temos agora a mesma coisa feita de modo elegante (como o “demônio elegante” a que se referiu o Santo Padre), bebericando champanhe e comendo lagostas.

O pior efeito da eliminação prática do Estado de Direito, todavia, o que há de gerar as piores consequências, é que sem que haja recurso possível à Justiça, ou antes a um sistema judiciário minimamente imparcial, fomenta-se na prática o mais negro desespero entre os injustiçados. E desesperados tomam medidas desesperadas. Basta ver o bolsominion preso cheio de armas e bombas em Brasília – se é que não se trata de um agente provocador; afinal, tamanha imbecilidade é tudo o que os critocratas estavam pedindo ao Príncipe deste Mundo. Do mesmo modo, os acampamentos continuados diante de quartéis (e, presumo, em estradas; a censura atual, mais feroz que a dos milicos, faz com que só saibamos deles por testemunhas oculares ou indiretamente), com tantos pobres-coitados desesperados em suas camisas da seleção, me fazem lembrar de quando o profeta Isaías fala dos “insensatos [que] dirigem suas preces a um deus que não salva”.

Temos Estado, ao menos por enquanto, mas ele não é nem um pouco democrático, e seria piada macabra dizê-lo Estado de Direito

A despeito dos sonhos e fantasias de seus adoradores, os militares são isso mesmo, um “deus non salvans” (em latim fica bem mais legal; “não salvante”!). Fosse salvante esse deus lá do povo da camiseta da CBF, ele teria impedido que o Brasil caísse nesta vala séptica em que ora se encontra. Teria impedido que a Constituição – por pior que seja – fosse rasgada. Teria dado mais atenção à manutenção da realidade prática do Estado de Direito que à elegância com que ele foi destruído. Nada fizeram, e só farão algo daqui para a frente se forem ainda mais incompetentes que parecem. Quando se pensa que provavelmente há de haver promoções em massa para ganhar o favor do oficialato assim que a caneta oficial estiver nas mãos do Escolhido dos Critocratas, fica ainda mais não salvante o deus dos pobres desesperados acampados diante de seus santuários verde-oliva.

Isto, contudo, não significa que o PT conseguirá criar a ditadura do proletariado que alimenta as fantasias onanísticas de seus quadros. Pelo contrário, aliás. Se o Bolsopresidente era um governante fraco, que só ganharia alguma força agora, quando o relativo sucesso de seu governo elegeu um Congresso afinado com ele, mais fraco ainda há de ser o PT. A direita brasileira acordou, para o bem e para o mal. Ainda que eu, pessoalmente, não morra de amores nem pela direita nem pela esquerda – que diferem principalmente nos pecados de estimação –, é inegável que uma enorme parcela do eleitorado brasileiro finalmente ganhou representação. Uma fatia bem maior que a que se alinha com a esquerda, aliás, que só tem apoio ideológico real numa pequena parcela da classe média urbana. Quando à direita se somam os pouquíssimos conservadores ativos na política, tem-se uma pedra bem no meio do caminho da esquerda, pronta para provocar topadas, entorses e claudicações inesperadas de todo tipo. O único jeito de contornar tal situação é jogar ainda mais fora das regras, violar ainda mais os trapos a que já se reduziu qualquer devaneio de ordem constitucional no país. E isso, por sua vez, como já apontei acima, aumenta o desespero e a fúria de uma direita numericamente superior em meio à população brasileira.

O Estado Critocrático de Esquerda é, até mesmo nesta definição que lhe dei, um barril de pólvora pronto para explodir. O Estado há de ser mais critocrático ou mais de esquerda? Quem vai mandar em quem? Os critos serão por muito tempo o único crata? Não é nem um pouco improvável que em breve, muito breve, surja alguma disputa em que os critos estejam de um lado e os cratos do outro, em que o Executivo não queira executar o que parece bom aos critocratas, ou vice-versa. Quem vai ganhar?

Mais ainda: todo o sonho delirante em que se finge que o Apedeuta foi eleito por votação unânime da população brasileira depende de até que ponto se conseguirá manter a aparência de democracia para inglês ver. Um AI-5 disfarçado passa, mas se for necessário botar algo no papel (esse outro “deus não salvante” de devoção da gringa) a coisa vai ficar feia, e o apoio incondicional que a (fantasiosa) fama do Lula lhe vale no exterior vai ser fortemente abalado. Mais ainda: não basta ter o Planalto e o STF (e a mídia comprada, claro; fortuna digna de um Ali Babá já foi prometida às emissoras para comprar-lhes o apoio incondicional) se não se tem como fazer valer as muitas ordens tão mal dadas. A desconfiança em relação à própria segurança da Presidência, que vai ser tirada do Gabinete Militar, já mostra claramente o problema. Quem a fará, os Gaviões da Fiel? O quadro de segurança institucional não é o problema, veja bem meu solitário leitor, mas a dificuldade que se tem em garanti-lo institucionalmente mostra claramente os limites do poder de fato de quem tem duas canetas e 1 milhão de microfones, mas não muito mais que isso.

É fácil conseguir uma minoria de agentes carreiristas nesta ou naquela instituição que estejam dispostos ao que der e vier e apostem a carreira (e, no médio e longo prazo, a liberdade) no apoio aos poderosos do momento. Estes servem perfeitamente para prender um deputado de cada vez, mas já seria difícil conseguir número suficiente para encarar grupos mais robustos de gente desesperada, com prova a persistência dos bolsoacampamentos (já qualificados de “organizações criminosas”, aliás) e a própria destruição do Estado de Direito é o que faz com que cresça mais e mais o número dos desesperados. Do mesmo modo, se o projeto petista de esvaziamento das funções institucionais das Forças Armadas for adiante, com a criação de uma Guarda que assumiria muitas das atuais funções do Exército e outras gracinhas, o interesse institucional pode levar os generais a fazer o que seu suposto patriotismo e risível apego ao Estado de Direito não fizeram. Mais ainda se não ganharem muitos brinquedos novos do Papai Noel de nove dedos: tanques, aviões, barcos, drones, que sei lá eu.

O Bolsonaro nunca deixou de ser, aos olhos do alto oficialato (o baixo é bolsonarista), uma figura dúbia. De um lado, casavam bem em suas preocupações de centro-esquerda, como um projeto desenvolvimentista. Por outro, ele passou por cima deles com muitas medidas liberais, como a eliminação de privilégios militares sem sentido na legislação de armas (esta o PT pretende reverter, por outras razões) e, claro, medidas econômicas várias que vão contra a visão de mundo do pessoal da Escola Superior de Guerra. O PT, por outro lado, está lotado de gente que os militares consideram inimigos e que, por sua vez, está se coçando para implementar um revanchismo que felizmente até agora não aconteceu no Brasil. A sôfrega loucura do poder, a hybris que vem dominando a esquerda e a critocracia antes mesmo da oficialização da conquista do que resta do Planalto, no entanto, pode perfeitamente levá-los a achar que conseguem “se dar bem” em cima das Forças Armadas. É provável que, na sua forma peculiar de egocentrismo, não se deem conta de que chegaram lá não por força própria ou desejo popular, mas pelo interesse do alto oficialato em evitar a impressão internacional de que desejam retornar aos anos 1970, ainda que nessa o Estado de Direito tenha tombado exangue à beira da estrada.

Não precisamos ter medo de uma ditadura do proletariado, mas temos todas as razões do mundo para crer que a tentativa frustrada de instaurar uma há de causar vastas perdas e danos

Teremos de apertar os cintos, em ambos os sentidos da expressão: por um lado, o fato de o Brasil ter sido um dos poucos países a sobreviver quase ileso à Covid não o torna imune a, sob nova administração, falir ao ter de bancar um Estado dinossáurico, bolsas-esmola mil para compra do voto dos miseráveis e, ainda por cima, o pão de cada dia das demais ditaduras de esquerda latino-americanas, ansiosamente aguardando a generosa mesada que o Erário tupiniquim voltará a lhes dar. Por outro, essa tremenda quantidade de complicações faz com que seja praticamente certo que tenhamos tempos tremendamente turbulentos pela frente. Conflitos entre o (por ora) Desejado dos Critocratas e os próprios; o desespero das vítimas de ambos; os interesses divergentes dos quadros do PT e do alto oficialato; a destruição da economia (Haddad?! Sério??!!); a fantasia por parte da esquerda de que desta vez abocanharam não apenas o governo mas o poder, quando têm muito menos de um e do outro; a ressurreição da direita popular, que pode ter seus líderes perseguidos, mas é grande demais para voltar a ser calada; a instabilidade institucional não só brasileira, mas mundo afora, com sérios riscos de quebras sistêmicas de mercados e de acordos...

Não precisamos ter medo de uma ditadura do proletariado, mas temos todas as razões do mundo para crer que a tentativa frustrada de instaurar uma há de causar vastas perdas e danos. Quem mais há de sofrer, como sempre, são os mais pobres, os mais fracos: aposentados, trabalhadores informais, grupos identitários usados como bucha de canhão pela esquerda, pequenos agricultores e pequenos empresários. Em um distante segundo lugar, há de ser bem penoso para quem levante a cabeça e declare posição numa política que cada dia mais tende a ser uma briga de foice no escuro. Quem está hoje por cima da carne-seca estará amanhã mais por baixo que barriga de jacaré, e vice-versa. No fim dessa confusão toda terão sido tantas reviravoltas, tamanha destruição do que ainda resta de ordem democrática, que dificilmente escaparemos de uma destruição tão completa da legitimidade e da autoridade do Estado, que nem temos como conceber ainda que forma terá a organização política brasileira em uma ou duas décadas.

Apertemos, assim, os cintos; é só o que nos resta fazer.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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