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O escritor Gilbert Keith Chesterton.
O escritor Gilbert Keith Chesterton.| Foto: Ernest Herbert Mills/Domínio público

Dizem que em alemão há palavra para tudo. Não deixa de ser verdade, mas isto ocorre por causa de um truquezinho gramatical do povo da salsicha, chucrute e cerveja: eles não usam espaços entre os componentes de um termo, o que faz com que aquilo que em qualquer outra língua demandasse duas ou três palavras possa ser expresso em alemão por uma só. Esta, claro, consiste daquelas outras juntinhas, sem espaço algum. Por exemplo, a palavra alemã “Weltanschauung” é apenas a junção de “Welt” (“mundo”) e “Anschauung” (“visão”). Mas eis que temos uma chiquérrima palavra única para dizer “visão de mundo”; toda coladinha, sem espaços vulgares.

Isso de visão de mundo é coisa muito complicada: tal como o peixe não percebe a água em que nada até ser dela tirado, não percebemos a nossa visão de mundo até que a examinamos, preferivelmente em contraste com outras, de outros tempos e lugares. Chesterton famosamente escreveu que ser católico significa escapar da triste sina de ser um “filho de seu tempo”. Em outras palavras, a catolicidade demanda uma “Weltanschauung” própria, que a seu modo diminui um pouco a influência da vigente na sociedade em geral. A menos, claro, que se esteja falando da visão de mundo de alguém mergulhado num mar de catolicidade, como um camponês europeu medieval.

Já aqui, em nossa sombria pós-modernidade, uma catolicidade real conflita abertamente com a visão de mundo reinante, propagada pela mídia, pela academia, pela política e por tantas outras vias a fazer-nos a cabeça. Onde o mundo exige utilitarismo, a catolicidade demanda uma moralidade teleológica; onde o mundo exige a busca desenfreada do prazer, a catolicidade demanda algum ascetismo deliberado; onde o mundo exige coletivismo, a catolicidade demanda a ação moral individual, que reconhece a dignidade infinita de cada ser humano; onde o mundo exige individualismo, a catolicidade demanda a família e as sociedades intermediárias; onde o mundo exige a busca de riqueza material, a catolicidade demanda que se perceba seu perigo moral e que se busque uma pobreza evangélica; onde o mundo exige o racismo, a catolicidade demanda que se busque a fraternidade em Cristo, em Quem não há mais judeu nem grego. E por aí vai.

Chesterton famosamente escreveu que ser católico significa escapar da triste sina de ser um “filho de seu tempo”. A catolicidade demanda uma “Weltanschauung” própria, que a seu modo diminui um pouco a influência da vigente na sociedade em geral

Poder-se-ia dizer que, por ter seu cerne na Encarnação do Verbo, no ingresso do Eterno Incriado na temporalidade criada, a catolicidade demanda que sejamos filhos da Eternidade, em contraste com os filhos do tempo ao redor. Não que não sejamos, claro, ao mesmo tempo também filhos de nosso tempo; a visão de mundo católica seria sempre falsa se não levasse em consideração e julgasse o que está ao redor. Mesmo assim, para quem realmente vive a catolicidade há sempre uma sensação de estranheza. De exílio, onde se geme e se chora num vale de lágrimas. De saudades do verdadeiro lar, que não se alcança pelo mero deslocamento geográfico, sim pelo abraçar do Eterno.

É isto é o que nos dá o que apontou Chesterton: a capacidade de olhar de fora, de não estar completamente imerso na visão de mundo da sociedade que nos rodeia. Apenas recuando-se para fora de uma dada situação é que ela nos aparece em sua forma total. Isto nos permite, por exemplo, perceber mudanças na visão de mundo dos que nos rodeiam. Tanto as bruscas quanto as que ocorrem de maneira lenta o bastante para que quem não tem outro arrimo intelectual a não ser a sociedade em que está imerso sofra da famosa síndrome do sapo fervido. Reza a lenda que um sapo posto numa panela de água fria que lentamente se vai esquentando morre cozido por não perceber a mudança gradual de temperatura; já um sapo jogado na mesma água quente pularia imediatamente. Assim ocorre com a maioria das mudanças de visão de mundo de qualquer sociedade.

Operações de controle psicológico feitas a toque de caixa de cima para baixo, como as que normalizaram o antitabagismo, as relações carnais com pessoas do mesmo sexo e a fantasiosa “mudança de sexo”, justamente por serem súbitas e intensas, fazem com que muitos sapos pulem da panela. É mudança demais em pouco tempo, e isso assusta. Já outras transições, que ocorrem de modo mais lento (e, talvez por isso mesmo, mais firme), acabam passando desapercebidas por quem não tem medida de comparação. E assim fervem-se sapos aos magotes.

O pior, todavia, é que uma visão de mundo baseada simplesmente no temporal, no forçosamente transitório, faz com que se torne impossível perceber não apenas o eterno, mas até mesmo o que era comum há pouquíssimas gerações. As pessoas, em suma, caem no mais completo provincianismo temporal, vendo nas modas e manias da sociedade ao redor algo eterno e evidente. Daí, por exemplo, as derrubadas de estátuas ocorridas ano passado mundo afora; os iconoclastas simplesmente não conseguiam julgar os personagens históricos retratados a não ser pelo prisma de seus próprios preconceitos provincianos, e botavam no mesmo saco Miguel de Cervantes e Cecil Rhodes.

Um dos mais daninhos efeitos do provincianismo temporal, de que a iconoclastia de 2020 é efeito e exemplo, é a percepção de visões normais em sua época como peculiar atributo de raros monstros (ou santos). Por cegueira à visão de mundo daquele instante no passado, gente que lá seria tida por normal é vista como se fosse um raio em céu claro, uma nefanda exceção a uma supostíssima regra de “normalidade” que, claro, corresponderia exatamente à visão de mundo do provinciano temporal. Em seu provincianismo, ele não concebe outra normalidade que não a sua.

O outro lado da mesma moeda falsa é a incapacidade de perceber a lógica interna (logo, de julgar apropriadamente) a orientar a visão de mundo vigente noutro tempo. Tomemos, por exemplo, um personagem que provavelmente levou Belzebu a caprichar numa reforma das caldeiras para receber a contento no Inferno: Adolf Hitler. Ele era, sim, monstruosamente mau. Muitas das crenças que o tornaram em nossos dias sinônimo de maldade monstruosa, no entanto, eram coisas que estavam no ar. Coisas em que ele estava longe de ser exceção à regra. Já muito do que lhe era peculiar (antitabagismo e vegetarianismo, por exemplo), por ser hoje tido por normal, não é via de regra associado a ele.

Uma visão de mundo baseada simplesmente no temporal, no forçosamente transitório, faz com que se torne impossível perceber não apenas o eterno, mas até mesmo o que era comum há pouquíssimas gerações

A visão de mundo quase unânime na primeira metade do século passado, com base no pensamento darwiniano, percebia o mais hediondo racismo como algo “científico”, “comprovado”, “natural”, e por aí vai. Mesmo as pessoas mais “progressistas”, mesmo os que estavam na vanguarda do pensamento da época, mesmo os cientistas mais apolíticos, tinham o racismo (no que incluo o antissemitismo) como verdade autoevidente. É evidente que isto não exonera Hitler: afinal, os demais filhos daquele tempo, por mais que vissem o judeu, o preto ou o cigano como “seres inferiores” de alguma maneira, não deram o passo da ideia errada ao mais formidoloso genocídio. Quando vemos o apoio geral da sociedade alemã (e, antes da guerra, de vastas parcelas da população de outros países que depois vieram a juntar-se aos Aliados) às medidas hitlerianas, quando vemos praticamente todos os demais países fechando-se à imigração dos judeus de que Hitler queria “livrar” a Alemanha (genial, isso de “livrar-se” de gente tão “subumana e incapaz” quanto Einstein, por exemplo, que conseguiu fugir na ocasião, como exceção que confirma a regra), o que vemos é o espírito daquele tempo (o “Zeigeist” – alemão tem mesmo palavras pra tudo!). A maldade hitleriana apenas pôs em prática algo que já estava no ar.

Se formos mais longe na história, vemos, por exemplo, a completa incapacidade dos provincianos temporais de hoje de entender a relação entre Islã e Cristandade ao longo destes últimos mil e tantos anos. Como reação ao anti-islamismo decorrente dos ataques terroristas da seita salafista, criou-se neste século uma fantasia apriorista de um Islã “esclarecido”, “tolerante” e “acolhedor”, que é projetada em ocasiões em que realmente não faz sentido algum julgar por critérios atuais. Li outro dia, numa página de arqueologia, um artigo cujo título dizia que o exame genético de uma ossada de pouco menos de mil anos teria demonstrado um crime, ou coisa parecida. Intrigado, passei a ler. Cheguei ao fim do artigo e tive de voltar: qual seria o crime?!

Pois bem: o crime seria a Reconquista da Península Ibérica pela Cristandade. Ele teria sido “demonstrado” pelo fato de que o finado tinha ancestrais oriundos da África do Norte, mas foi criado, viveu e morreu na atual Espanha, enquanto hoje, todavia, são raros os espanhóis com semelhante ancestralidade. Ora, pitombas, o crime que se demonstrou foi outro: a invasão da Espanha por estrangeiros oriundos do Norte da África! Recuperar o produto do roubo, ou seja, reconquistar a Espanha e mandar os descendentes dos invasores de volta para casa certamente não é algo pior que a invasão original. O mesmo, claro, hoje se diz acerca das Cruzadas, e patati e patatá.

Sem entender as circunstâncias, não se pode julgar; nem para mal, nem para bem. E quem não julga e não discrimina come carne podre e tenta jogar futebol com bolas de pedra. Sem entender o passado, repetimos seus erros

Do mesmo modo, ainda, é curiosíssimo perceber como critérios baseados estritamente na herança cristã que nossa sociedade ainda carrega são usados para negar a especificidade de Quem a iniciou. Acostumados com a igualdade (ou mesmo superioridade) feminina decorrente da ênfase cristã na superioridade da Virgem Maria sobre todas as demais criaturas, acusam o Cristo de “machismo” por não ter ordenado apóstolos do belo sexo. Acostumados à noção cristã do valor infinito de cada alma humana, ignora-se o escândalo que foi Sua aceitação de publicanos e prostitutas. E ainda, claro, indo ainda mais longe, reclama-se por ter Ele dito aos que perdoava que não mais pecassem!

Pois veja bem o meu paciente leitor que eu não estou propondo nenhuma espécie de relativismo moral, como fazem alguns ao tratar de outros tempos e outros povos. Só afirmo que temos de ter critérios mais, bom, eternos que as modas de nosso tempo, e que temos de entender aquilo que nos propomos a julgar. A natureza humana é imutável, mesmo não o sendo as culturas, e se nos aplicamos ao labor é possível chegar bem perto da compreensão do que hoje nos parece loucura rematada. Sem entender as circunstâncias, não se pode julgar; nem para mal, nem para bem. E quem não julga e não discrimina come carne podre e tenta jogar futebol com bolas de pedra. Sem entender o passado, repetimos seus erros.

Por exemplo, os sacrifícios humanos perpetrados por cartaginenses, astecas, maias, celtas e outros são, no sentido mais estrito do termo, demoníacos. Sem que tentemos, todavia, entender a visão de mundo que tornava tais sacrifícios não apenas aceitáveis, mas desejáveis ou mesmo necessários para os idólatras, não teremos como ir além do choque da descoberta de comportamento tão alheio ao legado da presença cristã bimilenar na nossa sociedade. Para fazê-lo, para sair da bolha de nosso tempo e perceber aquele, é preciso ter esta capacidade de perceber “de fora” tanto aquela sociedade pagã quanto esta nossa sociedade descristianizada, em vias de paganização. Até porque, diga-se de passagem, tudo se encaminha para a volta dos sacrifícios humanos.

Ou, dependendo do ponto de vista, podemos afirmar que de uma certa maneira eles já estão presentes. Para combater a legislação pró-vida texana, que proíbe que seja morto um neném cujo coração já bate, a “Igreja de Satã” (sim, sim, isso existe. Baseada na Califórnia, claro) entrou com um processo afirmando que o aborto é um “ritual” seu. Está certo que a tal “igreja”, ao menos em seu discurso público, afirma não acreditar nem em Deus nem em demônios. Tomaram, dizem eles, o nome do Tentador apenas ironicamente, em reação ao protestantismo fundamentalista daquelas bandas. Como o melhor truque do Capeta é convencer os incautos de que ele não existe, no entanto, eu realmente não duvido da “satanicidade” da tal denominação, e não me espantaria se descobrisse que esotericamente seus membros efetivamente perpetram infanticídios rituais. Sacrifícios humanos, em suma.

Não temos como saber como as pessoas de – por exemplo – daqui a 500 anos nos verão. Suponho que ficarão chocadas com a sociedade de consumo, com os lixões, com a exaustão de raríssimos recursos naturais para construir infinitas babulagens que vão para o lixo no ano seguinte. Suponho também que rirão muito das fantasias de gênero e da arrogância do discurso climatológico, se alguém ainda se lembrar dessas nossas peculiaridades então. Mas sei, com toda a certeza que nos é possível pra cá do Céu, que quem viver catolicamente verá as coisas de forma em muito semelhante à dos que a vivem hoje. A diferença será apenas a estranheza maior em relação àquilo que hoje é tão “normalizado” que por vezes nos passa quase desapercebido. Serão nossos descendentes filhos de seu tempo, afinal.

Se forem católicos, todavia, serão também filhos da eternidade.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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