| Foto: Neza Eerin/Free Images

Li uma vez, num livro daquela série do rabino Small, escrita por Harry Kemelman, um diálogo interessante, que cito de (péssima) memória: o rabino estava conversando com um não judeu, um daqueles tipos americanos que pegam a Bíblia e tentam descobrir o que Deus estaria realmente querendo deles. O sujeito explica pro rabino que é vegetariano, porque afinal, ainda que Deus tenha permitido o consumo de carne, havia posto na Bíblia tantos empecilhos para comê-la que lhe parecia óbvio que o recado divino final seria que carne não era comida de gente. Como tanto o autor quanto o personagem principal são judeus, não é de se estranhar tanto que ele tenha pulado por cima da belíssima cena no Novo Testamento em que um anjo manifesta-se a São Pedro com todo tipo de animal e lhe diz três vezes que os tome, mate e coma. Assim como não fica feio eu não saber cada detalhe do Corão, um judeu que não conhece uma bela passagem do Novo Testamento, afinal, não comete tão grave erro nisso.

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Mas o fato é que realmente há no Antigo Testamento miríades de leis alimentares, e quando a elas se juntam as leis inventadas pelos fariseus (antepassados de todo judaísmo rabínico) no intuito de “fazer uma cerca em torno da Lei” e impedir as pessoas de inadvertidamente pecarem, a coisa fica realmente quase impossível de ser seguida. Afinal, uma coisa é não cozinhar o filhote no leite da mãe, como está na Escritura. Outra, muito mais complicada, é manter três jogos de pratos, panelas etc., porque seria errado pousar um ovo cozido descascado num prato em que um dia esteve um peito de frango e horas depois comer o pobre do ovo acompanhado de uma fatia de queijo. Esta é a versão rabínica; pudera que o autor do livro – confundindo-a com o que está na Escritura – a considere complicada e ponha na boca de seu personagem não judeu que o mais fácil seria não comer carne.

Eu mesmo conheço uma pessoa que justifica seu vegetarianismo radical (aliás veganismo) com sua ascendência judaica. Assim dá para seguir quase todas as leis alimentares judaicas sem ter muito trabalho. Menos trabalho, todavia, seria mandar as leis alimentares pro mesmo lugar que as de oração, do sábado (ih, essas são complicadíssimas!), de impureza ritual menstrual, e por aí vai, e simplesmente não ligar para elas. Mas não: o veganismo, na verdade, tornou-se uma espécie de substituto da religião. Não apenas da judaica, vejam bem, mas de todas, a verdadeira ou as falsas. Hoje em dia há gente que tem por religião cantar com os amigos duas vezes por semana, ouvir música ruim o tempo todo e não fumar nem beber: são os pentecostais, ou a maioria deles. Há os que a isso juntam saias compridas e cabelão para as mulheres. Alguns têm ainda um mandamento extra de ir bater na porta das pessoas domingo cedo para tentar atraí-las para a mesma roubada. Há outros, que raramente se misturam com estes, que preferem levantar pneus e frequentar não cantorias, mas fisioterapias. São os crossfiteiros. Ficam fortuchinhos, mas o nível de entusiasmo requerido é muito maior que o dos meros escultores da própria carne, que por outro lado chegam a injetar-se venenos que compram pela internet para ganhar bolinhas em lugares determinados do corpo. Mesmo na Igreja Católica, que nunca foi dessas coisas, encontram-se grupelhos mais doidinhos que se colocam mandamentos laterais aos magotes: saias compridas, cruzes episcopais em leigos, xingar o papa (!), o diabo a quatro.

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O veganismo, na verdade, tornou-se uma espécie de substituto da religião

A religião, na pós-modernidade, assim, parece ter dois componentes principais, que se retroalimentam até tornar a pessoa de todo insuportável. Um lado é uma restrição. Qualquer restrição, diria eu, serviria; assim sendo, as pessoas simplesmente escolhem a religião que restrinja algo que não lhes afeta muito. Quem fuma maconha até arrotar fumacinha pela orelha, por exemplo, passa longe do pentecostalismo, mas abraça com vontade o veganismo. O negócio é ter-se algo por proibido, coisa aliás que explica bem alguns dos problemas do catolicismo hodierno, que passou a ter a liturgia celebrada em vernáculo bem na hora em que as pessoas começaram a ir em números jamais vistos morar em países de língua diferente, e – no Brasil – levantou ou relativizou um monte de proibições bem na hora em que as pessoas correm para alguma. Assim, por exemplo, como a proibição católica de comer carne de animais de sangue quente às sextas-feiras tornou-se no Brasil passível de substituição por absolutamente qualquer outra penitência, incluindo piscar os olhos duas vezes, a maior parte dos católicos nem sequer imagina que deva haver alguma penitência às sextas, que dirá que é proibido, via de regra, comer carne neste dia. Da Quaresma nem falo. Nem da Septuagésima, nem do Advento (em que estamos), nem das têmporas... O fato é que, num mundo sequioso de proibições arbitrárias e penitências malucas, a Igreja parece ter-se esquecido de ensinar aos fiéis as que não são nem arbitrárias nem malucas.

Na pós-modernidade, todavia, é forçoso que elas sejam arbitrárias, ou ao menos percebidas quase como tal. Afinal, a sua função é exatamente oposta à das proibições das religiões tradicionais, cristianismo aí incluído. Enquanto um católico abstém-se de carne às sextas para não se mimar, para sofrer um pouquinho, mesmo, e assim não se deixar esquecer que merece e precisa sofrer bem mais pra ver se toma jeito; enquanto um judeu não come porco para manter entre ele e o mundo não judeu uma cerca que o impeça de viver como se judeu não fosse; o pós-moderno adere a proibições tresloucadas por razões contrárias, opostas, contraditórias a tudo isto. Para ele, o papel principal da proibição não é nem melhorá-lo (posto que ele já é excelente!) nem separá-lo de um mundo que se esquece do transcendente; não, a razão de ser da proibição é festejar a própria superioridade do pós-moderno. Ele não se mistura com essa gentalha, ele está acima, é mais puro, perfeito, e ao obrigar os demais a planejar tudo em função de seus tabus arbitrários e autoimpostos ele está sendo gentil ao dar-lhe chance de prestar-lhe reverência assim. O vegano tem um orgulho de ser vegano tão absurdamente grande que não consegue nem sequer, como o fariseu da parábola, agradecer de pé a Deus por ser assim e não assado. Não; é Deus que teria de lhe agradecer por ele ser tão bom. Ele, no fundo, é deus no lugar de Deus: é perfeito, imutável, ato puro, a perfeição absoluta, e o resto do mundo está ao seu serviço. Ah, e que lhe tragam oferendas também sem glúten.

O mesmo, o mesmíssimo, vale com a certeza pentecostal de que é um dos santos, salvos, perfeitos, que irão indubitavelmente para o Céu (ainda que esta possa facilmente ser testada ameaçando-o de morte; fosse ela tão forte, ele agradeceria a gentileza de mandá-lo logo para o Céu, mas isso é coisa assaz rara de se encontrar por estas bandas). Vale também, claro, para crossfiteiros e marombeiros em geral, que já vi fazerem as bolinhas de carne pular em tentativas desesperadas de atrair a atenção de alguém que as elogie. Mas o veganismo, dentre todas essas religiões baratinadas, é de longe a mais perto do arquétipo. O culto a si mesmo, nele, não leva nem sequer a uma tentativa deslocada de “aprimorar”, de certa forma, o corpo, ainda que em detrimento da alma, como a do povo de academia. Ao contrário, até: os veganos no mais das vezes orgulham-se de parecerem os primos mais malnutridos do Drauzio Varella. Ou vampiros deixados sem sangue alheio por gerações. Ou tuberculosos terminais. Ou hóspedes de campos de concentração norte-coreanos. Em suma: eles acham bonito estar com a cara verde, com as bochechas caídas, com a pele seca e flácida, com os braços fracos demais para abrir uma garrafa pet (calma, é pra reciclar o plástico fazendo artesanato!). Acham legal, supimpa mesmo, ter sempre problemas digestivos. E caspa. E mau hálito.

Tudo vale a pena se a alma não é pequena, escreveu o poeta. Mas, para eles, tudo vale a pena se se pode bater fracamente no peito murcho e proclamar-se em fraco e mau som, por ausência de saúde e de força física, gloriosamente vegano. Por seus lábios, pudessem eles voltar no tempo, não teria passado nem sequer o leite materno! Só plantas, folhas, raízes, preferencialmente cruas e sem gosto! Não lhes houvessem caído os dentes por avançada desnutrição, mastigariam também os espinhos, felizes.

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Já as vacas, ah, tanto elas quanto as galinhas, os porcos e as cabras, todos estes fofos animaizinhos são seus amiguinhos. O fato de provavelmente a imensa maioria dos veganos jamais ter visto um desses bichos ao vivo ajuda a explicar bem tal engodo. Convenhamos: só pra começar, nenhum deles existiria em sua forma atual se não fosse a necessidade humana de produção de carne e leite para a alimentação, e as formas mais primevas deles não são amiguinhas nem da mãe delas.

As galinhas, parece, são parentes dos jacus. Dizem até que é possível a um jacu galar ovos de galinha. Mas entre uma e outro há enorme diferença física; uma galinha que tentasse ir viver a vida como jacu não duraria dois minutos. O mesmo vale para vacas e auroques, seus antepassados mais próximos. Aliás, diga-se de passagem, quando os cientistas loucos nazistas resolveram recriar os auroques, a experiência fracassou porque aqueles monstros medonhos matavam quem chegasse perto. Refiro-me aos auroques, não aos nazistas. Vai ser amiguinho dum bicho desses! Não fosse o fato de a carne dele ser boa (mais uma vez, do auroque), jamais teriam os nossos antepassados cruzando o auroque mais mansinho com a auroca mais calminha até que se chegasse a esses bichos tão idiotas, tão inofensivos e tão saborosos que são as vacas. A introdução de javalis no Brasil, e seu cruzamento com porcos domésticos, e os apuros em que a prole de ambos tem posto os agricultores de vastas regiões do país, já contam a história da domesticação porcina.

Animais domésticos e domesticados, exatamente como os selvagens, não são “nossos amigos”, por uma razão muito simples: eles não são seres humanos. Eles não são capazes de razão, nem de amizade

O veganismo, assim, é ainda mais pós-moderno que as demais religiões ersatz do terceiro milênio, por depender fundamentalmente dos outros e por se ver inserido num contexto a que ele decididamente não pertence. Enquanto, sei lá, o pentecostalismo tupiniquim atual depende duma bíblia faltando pedaços catada da Igreja Católica e se crê (quando se dá ao trabalho de crer em algo, coisa rara) parte de uma Cristandade maior, o que se tem ali é gente, microfone, alto-falante, alguns  exemplares de um livro, umas cadeiras, uma mesa e uma porta de garagem. Tudo parte de um mobiliário tipicamente urbano, para um fenômeno tipicamente urbano.

Já o veganismo – mais urbano ainda, nascido em berço hipster americano – se percebe baratinada, tresloucada e despirocadamente como algo “natural”, no sentido de fazer parte de um mesmo mundo composto de passarinhos canoros, vacas amorosas, porcos dançarinos, que sei lá eu. É toda uma fantasia que estaria, em tese, entre o rural (uma estranha ruralidade desprovida de proteína animal) e o silvestre (idem). É até engraçado, aliás, quando um que outro desses doidivanas decide-se a ir pra roça. Outro dia li uma reportagem sobre um grupelho que chegava a separar os galos das galinhas “para que elas não fossem estupradas” pelo galo. É uma séria ausência de compreensão de como funciona a natureza, pra dizer o mínimo.

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A natureza – conto agora este segredo ao pobre leitor que enfastiadamente chegou a este ponto de minha avassaladora verborreia – é feroz. Os bichos se mordem e se comem. Tucanos comem os ovos dos demais pássaros, bem como a carniça deles. Nada menos bucólico que ver dois tucanos disputando a carniça podre e fedorenta de um passarinho. Tatus, tão fofinhos, adoram devorar cadáveres humanos. Esta é uma das razões por que eles têm tamanho desempenho em cavar buracos, diga-se de passagem. Galinhas comem tudo o que se mova, inclusive e especialmente escorpiões. Já estes mordem tudo o que se mova e eles consigam morder, inclusive veganos. A obtenção da proteína indispensável para a saúde humana era originalmente uma obra de machismo e de coragem, em que machos-alfa falocêntricos, destilando masculinidade tóxica, metiam-se no mato com lanças rudimentares (substitutos penianos, diria Freud) atrás de um bicho doente o bastante para que eles conseguissem matá-lo antes de ou bem o bicho fugir ou bem a caça virar caçador, e o caçador repasto. Depois os malvadões agricultores passaram, como mencionei acima, a cruzar bichos aprisionados (eu, sinceramente, detestaria estar perto de um auroque aprisionado; já estive perto de um javali furioso, e não foi um momento agradável), até que – tornando-os mais idiotas a cada geração, mais ou menos como fizemos com os lobos para chegar nos bichos bobões e amorosos que nos acompanham, a que chamamos em geral “totó” – tivéssemos vacas, galinhas e outros bichos literalmente feitos para serem comidos, criados por Deus e pelo homem para que nos deem leite, queijo, picanha, bacon, costelinhas...

Aí me vem um vegano e diz que é amiguinho deles. Mentira, mentira cabeluda de quem nunca esteve a mais de 500 metros de uma lâmpada elétrica, de quem pode contar nos dedos as vezes em que não teve nenhuma residência humana ao alcance da vista e do berro. Se alguma houver havido. Que se metam na roça; nem precisa do mato. Que tentem dar de comer a porcos sem serem comidos por eles. Que tratem de vacas com cria e touros. Que procurem acalmar um galo enfurecido com palavras doces.

Animais domésticos e domesticados, exatamente como os selvagens, não são “nossos amigos”, por uma razão muito simples: eles não são seres humanos. Eles não são capazes de razão, nem de amizade. Eles obedecem a seus instintos. Nós domesticamos uns para que nos amem (e podemos bem amá-los de volta, mas não podemos, nem temos como ser “amigos” deles, por ser esta uma categoria relacional e de comportamento humana, não animal) e nos protejam (seja de camundongos nos silos, como os gatos, seja de ladrões, como os cachorros). A outros domesticamos para que nos alimentem, direta (carne) ou indiretamente (ovo, leite). Eles fazem – ou antes deveriam fazer, se morássemos como fomos criados pra morar, com muito mais espaço – parte de nosso domus, nossa casa, em posição subalterna. A galinha, o porco e a vaca, literalmente, foram feitos para serem comidos. Exatamente como nós precisamos de sua proteína para viver. O músico atinge seu auge ao criar beleza com seu instrumento; a galinha, ao ser preparada ao molho pardo. Simples assim.

Chesterton dizia que, quando o homem se comporta do melhor jeito que pode, coloca-se acima dos anjos; quando se comporta mal, todavia, põe-se abaixo dos animais, pois animais não têm escolha e gente tem. Os veganos, nessa brincadeirinha com que tentam tampar um buraco do tamanho de Deus que há em seu coração, pintam-se como se Deus fosse eles e os bichos fôssemos nós. Não é assim.

Veganos podem ser nossos amigos; bichos, jamais.

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