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Busca de dados em celular de investigados tem limite? No mundo civilizado, sim
| Foto: Bigstock

Praticamente todos os dias o sigilo de alguma pessoa pública é quebrado no Brasil em nome de uma investigação. De repente, começam a aparecer na imprensa dados que estavam naquele celular ou computador mas não têm nada com o assunto, são de outra investigação ou abrem outra investigação.

Não temos uma tradição de liberdades individuais e tendemos a pensar de forma binária nisso. Se o dado for verdade e a pessoa estiver errada, a maioria entende que tem de punir. Só isso importa. Aconteceu? Descobriram? Ponto final.

Só que tem outras coisas acontecendo aqui, a violação de liberdades individuais. Um caso de violação em que a pessoa realmente é culpada servirá para criar o precedente. Em pouco tempo, todos estarão vulneráveis à vigilância, com ou sem culpa no cartório.

Há quem argumente comigo na linha do “quem não deve não teme”. É bonito como ditado popular, mas delirante quando tem gente punida sem dever ou punida numa proporção muito maior do que deve. 

Diversas investigações que acompanhei ao longo dos anos, como repórter, tiveram um uso absolutamente malicioso dos dados obtidos de celulares e computadores. Algumas vezes isso baseou novos casos policiais e investigações, mas falamos aqui de invasão da vida pessoal, chantagem e vingança.

Quando você apreende o celular de alguém, todas as pessoas que já tiveram contato com aquela estão expostas. Se o acesso é a todas as mensagens, não vai ser só sobre o caso investigado. Mais que isso, não vai ser só sobre investigação. O que mais mexe com as pessoas, mesmo as criminosas, são as mensagens pessoais.

Em pouco tempo, todos estarão vulneráveis à vigilância, com ou sem culpa no cartório

Cito aqui um caso de vinte anos atrás, 2003, quando não tínhamos nem whatsapp nem redes sociais. Na Operação Anaconda, houve interceptações telefônicas. Muito daquilo foi utilizado para a investigação, que prendeu com propriedade uma quadrilha de venda de sentenças.

Mas, ali no meio, houve chantagens, distorções e vinganças - inclusive amorosas. Se o nome de quem te abandonou aparece numa transcrição de mensagem e a imprensa divulga, você acaba com a vida da pessoa. Apenas um exemplo, a vingança perfeita. 

Depois, mesmo que a mesma imprensa verifique que não era aquela pessoa, que era só um nome parecido na pronúncia, pouco importa. Uma exposição total acaba com a reputação de forma irreversível.

Já vi situações em que casos extraconjugais foram usados como forma de convencimento. Mais adiante, na época do Mensalão, um dos primeiros delatores foi “convencido” assim. Ele havia se casado com uma mulher que antes era garota de programa e já havia atendido diversos políticos em Brasília.

Depois de casar, ele mudou para outro Estado. As mensagens revelavam que ele tinha muito medo do encontro entre a mulher e os ex-clientes, todos do círculo de relacionamento dele. Também tinha muito ciúmes. O que fez a investigação? Intimou o casal para depor e prendeu só ele. Ela ficou livre em Brasília enquanto ele estava na cadeia. Delatou no mesmo dia.

Há casos que se desdobram para além do escopo da investigação. Pessoas são chantageadas por investigadores corruptos que tenham informações pessoais sensíveis sobre elas. Jornalistas que incomodam autoridades são ameaçados com vazamentos de conversas com as fontes. Autoridades são chantageadas a tomar decisões com base nas informações pessoais que podem ir parar na imprensa. 

Diversas investigações que acompanhei ao longo dos anos, como repórter, tiveram um uso absolutamente malicioso dos dados obtidos de celulares e computadores

Agora entramos em um frisson e na liberação a conta-gotas das mensagens de celular de todo o entorno do ex-presidente Jair Bolsonaro. O maior problema é começar a achar que pingo no i é letra, o que já vem acontecendo.

Esses dias, um militar que fazia a segurança da presidência foi desligado porque, segundo as informações da polícia federal, fazia parte de um grupo de whatsapp que defendia golpe de Estado. Isso foi visto como normal por parte da imprensa, o que mostra a distorção que vivemos.

Não há nenhuma informação sobre a interação dele no grupo ou os motivos pelos quais entrou. Ele pode ter tentado ajudar num golpe de Estado? Sim. Pode ter sido colocado lá por um amigo e não sabia direito as conversas porque silenciou? Sim. Pode ter alinhamento ideológico com o grupo sem deixar que interfira no trabalho? Sim. Pode ter entrado lá justamente porque faz a segurança do presidente e está monitorando? Sim.

Mas o que eu acho que aconteceu? Não acho nada, ou sei ou não sei. Aqui eu não sei, não foi divulgado. Se fazer parte de grupo de whatsapp passa a ser informação suficiente para julgar sumariamente alguém, estamos em maus lençóis.

Nos países com tradição democrática e de defesa das liberdades individuais, existem limites claros sobre quais informações podem ou não ser acessadas por autoridades. Na maioria você não pode entrar para investigar um caso e acabar com informação que resolve outro caso.

Esse tipo de coisa é chamada de “phishing expedition” pelas autoridades. Quando a investigação ainda não foi feita ou não há provas, se escolhe uma pessoa para mirar, quebra todos os dados dela e se faz como em uma pescaria, avalia o peixe que vem. 

Os peixes são verídicos? Provavelmente sim, mas se perde a cena completa. A Justiça só faz justiça quando investiga o crime para chegar aos culpados. O ato de investigar os culpados a priori para ver se há um crime se chama perseguição e arbítrio.

Na Alemanha, em 2010, a Corte Federal Constitucional, em Karlsruhe, obrigou o país a rever a lei de combate ao terrorismo por considerar que estavam avançando demais e indevidamente nos dados. 

Já vi situações em que casos extraconjugais foram usados como forma de convencimento

Na tentativa de combate ao terrorismo islâmico, a polícia havia sido autorizada por lei a cruzar dados novos com antigos. Quando se apreendia um celular ou computador de um suspeito de terrorismo, os dados dele eram cruzados com todos aqueles armazenados. 

Mas assim não combate melhor o crime? Não, assim se vicia o Estado a só conseguir ser eficiente com vigilância. As autoridades acabaram começando a pedir quebras de sigilo demais. Começa a virar um método mandar quebrar o sigilo a rodo para depois ver o que acha.

A Alemanha já se recuperou de tempos autoritários sombrios e sabe como esse tipo de coisa começa. A Justiça decidiu que os dados dos terroristas podem ser usados apenas para combate a terrismo e mandou que a lei fosse refeita, o que ocorreu. Segundo os juízes alemães, o problema é que as autoridades tinham dados demais dos cidadãos nas mãos delas.

Vivemos já um nível de tecnologia que chega à vigilância até das nossas maiores intimidades. Preservar a liberdade nesse contexto é difícil. Num país com tantos criminosos, nossa tendência é fechar os olhos. Se é criminoso mesmo, pouco importa como conseguiram os dados. O problema é que isso abre o apetite do Estado. Tudo o que se permite com os execráveis e malditos acabará se tornando a regra para os demais cidadãos.

Conteúdo editado por:Jônatas Dias Lima
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