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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Que atire a primeira pedra quem não resolveu sair de um grupo de WhatsApp da família ou de amigos devido à fervura do ambiente político. Parece que todos somos vítimas e ninguém sabe direito como sair. As pessoas parecem possuídas por um excesso de certezas e falta de dúvidas que simplesmente impedem qualquer tipo de diálogo, dentro e fora da família. Em outra coluna, cheguei a dizer que muita gente substituiu a religião pela política, tratada como pilar existencial.

Compreendo as questões morais em jogo e os argumentos contundentes que muita gente me apresenta. Ainda assim, acredito que a família é a célula fundamental da sociedade e que nossos princípios e valores são maiores que a defesa de qualquer projeto político, por melhor que seja.

A maioria pensou que, acabadas as eleições, as coisas se restabeleceriam como mágica. Haveria um lado perdedor, um vencedor e vida que segue, tem mais eleição daqui a quatro anos. Não foi o que vimos. Aqui não falo nem dos grupos que se organizaram para protestar, mas da beligerância em nossos grupos mais íntimos, que não se desfez ao final da competição. E esse creio ser o principal problema.

Vivemos um momento em que é tarefa individual e coletiva da sociedade encontrar formas de recompor o tecido social. Isso não será feito por nenhuma das lideranças políticas.

Qualquer que seja a luta política do momento, um povo que deixa fraturar suas famílias e comunidades não tem como ser o líder de um projeto de país. Será inevitavelmente governado por quem divide para governar. Não creio, no entanto, que esse tenha sido um projeto maquiavélico dos nossos políticos. Se eles fossem tão planejados e eficientes, o Brasil já seria a Noruega.

Vivemos um momento em que é tarefa individual e coletiva da sociedade encontrar formas de recompor o tecido social. Isso não será feito por nenhuma das lideranças políticas. A “pacificação” prometida pelo presidente eleito, Lula, não parece ser o mote de sua própria militância. Somos um país em que as duas maiores forças políticas confiam na rejeição do adversário. Lula depende do antibolsonarismo para se manter forte. Jair Bolsonaro é um fenômeno político derivado diretamente do antipetismo.

O cidadão comum que se passou a se interessar por política está enredado nessa realidade, que se soma à novidade do diálogo mediado por algoritmos, da hipercomunicação e de mudanças significativas na imprensa. Compreender como chegamos à Torre de Babel que vivemos é tarefa fundamental para que a sociedade civil possa assumir as rédeas dos debates que interessam ao país. São os políticos que precisam atender às nossas demandas, não o oposto.

Entre os diversos fatores que explicam um divisionismo quase intransponível está a mudança no estilo de imprensa desde a migração para a internet. Continuamos a analisar o noticiário com a mente analógica, mas ele já está há muitos anos na dinâmica digital.

Um estudo recente de avaliação de palavras feito pela Universidade de Nova Iorque mostra que manchetes com tom moralista, de indignação, ódio e medo têm crescido exponencialmente desde os anos 2000. Isso foi antes mesmo da expansão das redes sociais, que começaria a ocorrer na década seguinte.

Títulos neutros ou explicativos têm sido cada vez mais raros. Bia Kunze, a “garota sem fio”, pioneira do colunismo sobre internet e tecnologia, trouxe uma explicação interessante. Na era do impresso, a manchete de capa tinha de ser chamativa. Agora, todos os títulos têm de ser chamativos para caçar cliques. É um efeito que contamina a sociedade e também molda a imprensa. Muitas pessoas nem lêem mais os artigos, ficam apenas nas manchetes. Compartilhar essas manchetes virou uma forma de socialização, de estabelecer conversas e manter grupos ativos.

Precisamos enxergar as pessoas que amamos em sua totalidade, além daquilo que nos dividiu. Relações familiares sólidas são feitas de uma série de interesses daqueles mais corriqueiros. Nossas maiores alegrias são momentos simples, às vezes singelos.

Claro que existe o fator humano de recorrer a simplificações, mas também há explicações técnicas e econômicas. A maioria das pessoas acessa a internet por meio de celular e tem planos básicos ou pré-pagos. As empresas telefônicas têm acordos comerciais com as redes sociais. A navegação é livre, sem gasto de dados. As pessoas conseguem acessar livremente e com muita facilidade as manchetes e resumos em redes sociais ou grupos de WhatsApp e Telegram. Não têm a mesma facilidade para ler os textos completos.

É uma dinâmica que também acaba moldando a produção jornalística. Um paper publicado no início do ano analisando a cobertura sobre Covid-19 mostrou que notícias negativas tinham muito mais acesso que notícias positivas. Isso faz com que cada vez mais manchetes negativas tenham espaço.

Houve cobertura sobre casos positivos, experiências de sucesso, superação da pandemia e recuperação econômica. Mas elas não receberam a mesma atenção. A pesquisa faz um recorte entre convicções políticas, no caso entre democratas e republicanos. Não há diferença nesse sentido. Estamos viciados em um tipo de interação social que consiste em nos irritar e indignar coletivamente. Reagimos coletivamente às vezes de forma colérica, interagindo com o que sempre está num tom mais alto. E isso tem cobrado o preço nas nossas relações individuais.

Não conseguimos mais ver os indivíduos em sua totalidade, analisar o que significam de verdade em nossas vidas, ter em mente a história que nos une. Tudo isso fica naquele tom mais ameno e acolhedor que tende a não reter nossa atenção. É a economia da atenção que vivemos hoje. Essa realidade se espalhou para a política. Todas as forças políticas subiram seu tom porque, na economia da atenção, ter os olhos virados para si significa poder. O que mais causa indignação nas pessoas é o que mais dá poder. E isso tem se traduzido nitidamente no poder político, não só por aqui, mas também no Brasil.

Diante de todos os desafios que nos aguardam num momento político tão grave e único, o maior deles talvez seja retomar o diálogo no grupo da família antes do Natal. Precisamos voltar a ver aqueles que são nosso porto seguro em toda sua complexidade, não apenas nos momentos que julgamos mais infelizes de seu posicionamento político. É uma tarefa que parece hercúlea. Todos os grandes desafios parecem maiores ainda quando precisam começar dentro de casa.

Entender a dinâmica da comunicação digital e as mudanças que nos afetam psicologicamente na imprensa e na política é tarefa para começar ontem. A tecnologia nos trouxe a possibilidade de carregar a família no bolso, estar sempre juntos mesmo quando a vida nos obriga a estar em lugares diferentes. Só que ela também nos traz a tentação de gastar nossa curta vida brigando com estranhos, nos envolvendo com estranhos e deixando de ter o abrigo de quem realmente caminha junto de nós.

Num momento como o que vivemos, é natural que todos tenham suas convicções políticas e queiram participar dos debates da vida pública. Isso eu não questiono. Meu questionamento é como fazer isso sem fraturar nossos laços mais próximos nas famílias, comunidades, grupos de amigos e igrejas.

O que mais compartilhamos são notícias e, na maior parte das vezes, aquelas em tintas mais fortes e que causam mais indignação. Somos escravos dos algoritmos e desse processo todo quando precisamos urgentemente ser senhores. Às vezes é difícil saber por onde começar a desfazer esse nó. Parece algo grande demais para cada um de nós. Talvez uma tarefa que demande gente poderosa, canetadas, regulações mais sérias, autoridades mais comprometidas com o bem estar da população.

Quando vamos ter tudo isso? Talvez não seja rápido o suficiente para você viver a vida plena que pode ao lado dos que você ama e que te amam. Tomar consciência de que vivemos esse processo é o primeiro passo. Retomar o diálogo no grupo da família é uma tarefa individual e coletiva. Alguém sempre tem de dar o primeiro passo. Não proponho desculpas, buscar culpados, purgar erros e decisões erradas. Proponho o caminho da redenção, misericórdia e compreensão.

Precisamos enxergar as pessoas que amamos em sua totalidade, além daquilo que nos dividiu. Relações familiares sólidas são feitas de uma série de interesses daqueles mais corriqueiros. Nossas maiores alegrias são momentos simples, às vezes singelos. Nada disso cabe nessa dinâmica de velocidade e virulência em que acabamos nos metendo. Precisamos aprender a usar as redes a nosso favor. Elas podem nos induzir a esse trem descarrilado do festival coletivo de indignação, mas não nos obrigam.

Nós podemos fazer conscientemente o uso da tecnologia para nos aproximar daqueles que amamos, estender a mão, acolher, ajudar, mostrar que precisamos fugir dessa dinâmica em que tudo – menos os mais próximos – se torna algo urgentíssimo.

Alguém tem de dar o primeiro passo. Você tem coragem?

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