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Há pouco mais de um mês fui procurada por um grupo de médicos querendo relatar os níveis de evidência científica que estão colhendo com o uso da hidroxicloroquina no tratamento de pessoas com sintomas leves de Covid-19. Pelo que me disseram, os médicos pró-tratamento precoce se organizaram em grupos de WhatsApp no Brasil inteiro e já somam 4.736 profissionais.

Apesar de serem milhares, esses médicos reclamam, com razão, da falta de espaço na imprensa, acostumada a ouvir só os presidentes das entidades de classe que, segundo eles, não são científicas, apenas associações médicas mesmo. Eles são a prova viva de que há muita divergência entre os associados dessas mesmas entidades, assim como acontece em outras profissões. O presidente da OAB, por exemplo, está longe de ser a voz uníssona de todos os advogados do país.

Uma das queixas dos médicos que aderiram ao protocolo do Ministério da Saúde e estão tratando doentes logo nos primeiros sintomas - todos da linha de frente dos consultórios, muitos também pesquisadores -, é a de que os presidentes da Sociedade tal ou da Associação tal estão alardeando como prova de ineficácia do remédio pesquisas com resultado inconcluso, por falha na metodologia.

Dois dos estudos publicados mais recentemente, em 16 de julho - um na Inglaterra, outro nos Estados Unidos -, ambos apontados como inconclusos, serviram realmente de base para "novas recomendações contra o uso da hidroxicloroquina em pacientes na fase inicial de Covid-19" por entidades médicas brasileiras. Mas neles não há sequer indicação dos níveis de evidência científica tão exigidos.

Na minha visão leiga nem deveriam ter sido considerados sem conclusão. Um deles mostrou resultado 50% melhor entre os pacientes medicados. De cada 100 que receberam o remédio 2 evoluíram para fase mais grave da doença, enquanto que no grupo não medicado foram 3 em cada 100. Se multiplicar isso por 10, a diferença será de 20 para 30 pacientes internados. Isso já significa lotar uma UTI num hospital de grande porte.

Mas as pesquisas não são publicadas como inconclusas ao leo. A análise das revistas científicas segue critérios. Conforme a metodologia e a quantidade de amostras analisadas, os responsáveis pelas publicações classificam os estudos como positivos, negativos ou inconclusos e atribuem a eles níveis de evidência científica e graus de recomendação de uso.

Se você for curioso o suficiente sugiro dar um olhada no site que divulga as pesquisas médicas para ver que os estudos inconclusos mencionados acima, altamente relevantes na visão de alguns presidentes de sociedades médicas brasileiras, não se enquadraram em níveis de evidência científica, porque avaliaram grupos de pacientes pequenos e em condições de saúde diferentes. A maioria era jovem, nem precisaria de medicação.

Ou seja, ninguém deveria sequer ter dado bola para pesquisas assim. Deveriam é olhar para os níveis de evidência científica e para o grau de recomendação das dezenas de pesquisas já publicadas com resultado positivo, que em geral vêm sendo ignoradas pelas sociedades médicas e pela imprensa, sabe-se lá por que.

O caso do Tamiflu, usado sem "evidência científica"

Depois de assistir a mais de 20 horas de aulas médicas e debates entre profissionais especializados em infectologia, toxicologia, doenças autoimunes e no estudo da imunidade humana; de ler várias pesquisas, feitas não só no Brasil, e de conversar com médicos e farmacêuticos pró e contra o tratamento precoce, descobri algo que praticamente não se divulga.

Sabia que o famoso Tamiflu (oseltamivir), usado para tratar pacientes de H1N1 - a última gripe forte que se espalhou pelo mundo, em 2009 -, não tinha a evidência científica comprovada nos padrões que hoje exigem da hidroxicloroquina e da ivermectina?

Estudos publicados na época traziam o alerta para os médicos de que o remédio tinha eficácia comprovada apenas por "evidências clínicas". Repare no texto em destaque na página 2 do documento que reproduzo abaixo, publicado pelo Centro de Informação Sobre Medicamentos de um hospital público de Mato Grosso.

"Segundo a FDA (Food Drugs Administration), o nível de evidência clínica deste fármaco para tratar a Gripe A H1N1 se enquadra na categoria C, ou seja, se baseia apenas em opiniões de especialista. Até o momento, não foram encontrados na literatura pesquisada, estudos clínicos controlados e randomizados que tenham testado o Oseltamivir em pacientes com Gripe A H1N1. "

Orientação aos médicos de um hospital público de Mato Grosso sobre o Tamiflu, largamente utilizado em 2009

Ou seja, assim como os remédios agora tão questionados por quem defende que haja "evidências científicas", o Tamiflu começou a ser testado em doentes, que melhoraram. E por causa do resultado que foi sendo observado pelos médicos nos consultórios, entrou no protocolo de saúde do mundo todo apenas com base na "opinião de especialistas". Isso, e apenas isso – a opinião de especialistas – é considerado evidência científica (nível C, mas é).

Níveis de evidência científica

Uma coisa que todo mundo deveria saber antes de usar a expressão “evidência científica” é, portanto, que há vários níveis de evidência. Quando estudiosos decidem fazer uma pesquisa para apurar se determinado remédio funciona ou não para combater os sintomas de uma doença, ou combater diretamente o agente causador daquela doença, os resultados são enquadrados em níveis de evidência e a pesquisa recebe um grau de recomendação.

Normalmente se consideram cinco níveis de evidência e quatro graus de recomendação: A, B, C ou D, sendo que D é o pior, daquelas pesquisas não recomendadas. Para se ter ideia da confusão atual quando dizem que não há evidência científica sobre a eficácia da hidroxicloroquina para Covid-19, já há estudos com grau de recomendação B para o remédio (melhor do que o Tamiflu na época da epidemia de H1N1). E não havia essa gritaria contra o Tamiflu, certo?

O nível que muitos exigem para considerar a hidroxicloroquina recomendável contra Covid-19 é o A, aquele que segue o padrão chamado de duplo cego randomizado, em que os pesquisadores acompanham um grupo bem grande, de mais de 2000 pacientes, com as mesmas condições de saúde, sendo que metade recebe o remédio e outra metade não. E aí comparam os resultados.

Se no grupo que recebeu o remédio tiver mais gente curada, esse é o nível A de evidência para a eficácia do medicamento. Nem mesmo a pesquisa divulgada ontem, feita com pacientes internados em 55 hospitais - e que já está sendo apresentada como prova inconteste da ineficácia do medicamento-, tem esse nível de evidência.

Até porque, dizem os médicos que seguem recomendando o remédio, ele só funciona com pacientes na fase inicial da doença, com sintomas ainda muito leves, porque é um antirretroviral com poder de impedir a proliferação do vírus. A pesquisa foi feita com pacientes hospitalizados. Mesmo que digam que eram pacientes com sintomas leves, todos estavam internados. Quem se interna só por causa de alguns espirros?

Depois de tudo o que li e ouvi, especialmente conversando diretamente com médicos e pesquisadores, entendi que a evidência científica em torno do uso de uma medicação é subjetiva. Para algumas pessoas há resposta clara, para outras, não. Assim como para alguns órgãos existe evidência da eficácia de determinado remédio e para outros, não.

Se você der uma busca na internet por “pirâmide de evidência científica” você vai encontrar desenhos mostrando de forma didática isso que eu estou falando. Algumas tem até mais de cinco níveis: começa com pesquisa em laboratório, pesquisa em animais, aí vem o nível de "opinião de especialistas", o de relatos de casos clínicos, depois o de relatos em série, o de estudo de casos controle até chegar, enfim, no padrão mais abrangente – o tal do duplo cego randomizado.

Classificação dos pesquisadores

Desculpem o tamanho do texto, mas é que esse assunto é tão controverso que merece uma última observação. Os pesquisadores recebem pontuações conforme os estudos que desenvolvem. Tem muita gente por aí dando destaque para pesquisas de estudiosos com pouca pontuação e ignorando estudos feitos por pesquisadores bem mais pontuados.

Não que isso seja necessariamente o melhor critério para avaliar um trabalho científico, mas em tese, quem já fez muitos estudos e tem décadas de experiência, tende a usar métodos melhores de pesquisa do que os novatos.

Seria muito bom se os "fiscais da Ciência" parassem de falar do que não entendem, porque estão criando um antagonismo desnecessário entre os médicos. Ninguém é louco por ter decidido que só o maior dos níveis de evidência deve ser considerado ou insano por estar adotando agora os mesmos critérios da época da gripe H1N1.

É por isso que a preocupação geral deveria ser alertar as pessoas a procurarem um médico logo nos primeiros sintomas e não só quando já estiverem muito mal, com falta de ar, como se recomendava no início da pandemia. Cabe ao médico avaliar, pelo estado de saúde do paciente, pelo seu histórico, por suas características físicas, pela faixa etária, se ele deve ou não ser medicado. E a decisão final é do paciente. É ele o maior interessado em se tratar ou não.

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