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A ideologia de gênero e o “bypass” na democracia
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Desde a ADPF 442, em que o PSol tenta impor o aborto goela abaixo da população brasileira, até tantas outras ações concentradas de constitucionalidade, o STF é usado em autêntico bypass ao Congresso e à democracia. A bola da vez é a ADI 5.668, que tenta empurrar a ideologia de gênero a todas as crianças do Brasil. O assunto já foi amplamente discutido e rejeitado no Congresso Nacional, mas mas eles não desistem. Se a democracia não funciona e se o poder que emana do povo por meio de seus representantes (artigo 1.º da Constituição) não agasalha seus pérfidos interesses, a solução é reduzir o quórum, dos 596 deputados e senadores para os 11 do STF – que, para alguns, são iluminados.

Enfrentando este tema, o Grupo de Estudos Constitucionais e Legislativos (Gelc) do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR) debruçou-se por semanas no estudo da ADI 5.668 e de tudo que a envolve. Como resultado deste meticuloso trabalho, realizado por diversos profissionais do direito, filosofia e teologia, foi emitido um substancial parecer, que publicaremos aqui em duas partes. Na primeira, mostraremos que a lei já contempla o que a ação alega pedir; na segunda, trataremos com detalhe da ideologia de gênero e dos direitos dos pais a ver respeitadas suas convicções morais na educação dos filhos.

O que o PSol diz querer na ação

O Partido Socialismo e Liberdade (Psol) ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, em face do artigo 2.º, inciso III, da Lei 13.005/2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE), bem como das metas 2.4, 2.5, 3.13, 4.9, 4.12, 7.23, 8.2, 9, 10.1, 10.6, 11.13, 12.5, 12.9, 13.4, 14.5, 16 e 16.2, inseridas no anexo do ato normativo. Nesta demanda, a agremiação partidária se insurge contra a ausência de menção expressa ao combate à discriminação em virtude de gênero, identidade de gênero e orientação sexual em âmbito escolar, bem como o machismo. Sustenta a inaugural que esta omissão normativa afronta o dever estatal de combate às discriminações, previsto no artigo 3.º, inciso IV e artigo 5.º, inciso I da Constituição Federal.

O que se busca é que seja imposto a todas as escolas públicas ou privadas a obrigatoriedade de coibir bullying homofóbico, transfóbico e machista, o que se alcançaria por meio da declaração de inconstitucionalidade de quaisquer outras formas de interpretação da Lei 13.005/2014. Entende que a falta de menção específica àquelas espécies típicas de bullying impede e dificulta a discussão sobre temas como a homofobia, transexualidade, integração entre gêneros, machismo e respeito à diversidade. Na equivocada opinião do impetrante, a omissão de terminologias por ele desejadas implica em “mordaça”, aniquilando quaisquer outras iniciativas voltadas à discussão sobre a realidade experimentada por crianças e adolescentes LGBTI, resultando também no desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, por ofensa ao Princípio da Integral Proteção.

Por fim, pleiteia-se que a Suprema Corte determine que seja aplicada à Lei 13.005/2014 a interpretação conforme a Constituição, com efeito aditivo, para obrigar todas as escolas a combaterem também as discriminações por gênero, identidade de gênero e por orientação sexual, respeitando-se ainda a identidade das crianças e adolescentes LGBTI dentro das escolas.

O PNE, da forma como está, já basta para o fim proposto

A inicial, de perturbadora contundência, já afirma de início existir perseguição perpetrada por um grupo de parlamentares contrários aos direitos humanos da população LGBTI e, também, contrários à plena cidadania das próprias mulheres cisgêneras. Essa conclusão decorre do fato de não ter sido incluída, nos planos de educação, uma menção expressa ao enfrentamento de modo especial das discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual. A omissão da norma, no tocante a tais terminologias, materializaria a vilania dos parlamentares em relação à comunidade LGBTI. Seguindo essa mesma lógica, os parlamentares também seriam contrários aos acima do peso, aos míopes, estrábicos e aos demais estudantes que tenham algumas características físicas que os destaquem.

Primeiramente, é indispensável a consideração acerca do nascedouro da Lei 13.005/2014, o Plano Nacional de Educação (PNE). Referida norma atendeu a todo o processo legislativo necessário à sua promulgação. Parte indispensável na sua formação são os intensos debates e discussões, com oitiva das mais diversas opiniões de grupos com ideologias distintas e posições políticas muitas vezes antagônicas. Durante o trâmite regular da norma, foram observados todos os princípios constitucionais que lhe referem, como devem ser os processos legislativos. A lei em questão nasceu de forma legítima e válida, oriunda do Poder Executivo através do PL 8.035, de 20 de dezembro de 2010, tendo tramitado regularmente pela Câmara e pelo Senado, e aprovado, assim, por parlamentares escolhidos pelo povo brasileiro, por meio de seu direito fundamental de eleger aqueles que os representam. O Poder Legislativo cumpriu seu papel de mandatários da população, dando voz a seus anseios e refletindo a sua vontade e, elaborando uma lei que atendesse a todos os anseios e contemplasse todos os direitos, ainda que de forma genérica.

No caso em tela, não existe nenhuma conspiração contra determinado grupo, nem poderia haver. O alegado silêncio legislativo – que não existe, diga-se de passagem – de forma alguma traduz uma maléfica intenção de estimular quaisquer atos discriminatórios, em atentado à nossa Lei Maior. Na mesma toada, a falta da expressão almejada não impõe ou dificulta o enfrentamento da questão cuja existência e relevância não se nega.

Nos artigos, metas e estratégias do Plano Nacional de Educação, já encontramos o repúdio a qualquer tipo de discriminação, violência e preconceito na escola, bem como a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito

Não se pode imaginar que o legislador atuou para produzir uma norma inconstitucional ou dissonante do ordenamento. A lei aqui combatida encontra-se perfeita e completa, trazendo em seu corpo a expressa previsão do combate a qualquer tipo de discriminação, inclusive a pretendida pelo impetrante. Os bens jurídicos, cuja proteção se busca, estão plenamente assegurados e garantidos.

Em relação à Lei 13.005/14, em seus artigos, metas e estratégias, já encontramos o repúdio a qualquer tipo de discriminação, violência e preconceito na escola, bem como a implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, com redes de proteção contra formas de exclusão: “Artigo 2.º São diretrizes do PNE: (...) III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

Digna de ser mencionada quanto a este ponto é a excelente nota da Convenção Geral dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleias de Deus no Brasil, a qual claramente repudia o bullying, a discriminação e o preconceito de qualquer tipo, colocando-se contra a procedência da ADI 5.668, expressando de forma consistente seu repúdio à tentativa de desrespeito à tripartição de poderes da República nos seguintes termos: “A ADI 5.668 desrespeita o processo democrático e por meio de uma estratégica peça jurídica pretende burlar o sistema legislativo do Brasil que rechaçou a inclusão do ensino da “ideologia de gênero” no Plano Nacional de Educação”.

Resta, assim, inequívoco que um grupo determinado, não tendo obtido sucesso durante a regular tramitação legislativa em menção específica que lhe interessa, recorre agora ao Poder Judiciário para atingir seu intento. Ao julgar procedente a ação, a suprema corte, lamentavelmente, atuaria como órgão legislativo, usurpando função que não lhe cabe, e atentaria contra a separação e harmonia entre os poderes.

A legislação brasileira já tem várias outras normas que combatem a discriminação

A ADI 5.668/2017 requer que o Plano Nacional de Educação (PNE) seja reinterpretado para que “sejam coibidas as discriminações por gênero, por identidade de gênero e por orientação sexual e, dessa forma, sejam respeitadas as identidades das crianças e adolescentes LGBTI nas escolas públicas e particulares”. Saliente-se que quaisquer atos discriminatórios são prontamente combatidos por nosso ordenamento. No sistema jurídico brasileiro, as crianças e os adolescentes gozam de todos os direitos fundamentais garantidos à pessoa humana, tanto aqueles reconhecidos pelo direito interno brasileiro quanto os previstos nos tratados internacionais de que o Brasil faz parte.

Essa proteção integral está disposta no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), conforme seu artigo 15: “A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis”. Por sua vez, a Lei 13.005/2014 (Plano Nacional de Educação), aprovada com vistas ao cumprimento do disposto no artigo 214 da Constituição Federal, coloca entre as diretrizes do PNE, em seu artigo 2.º, inciso III, já mencionado anteriormente, a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”.

Também a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, logo em seu artigo 1.º assim dispõe: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”. Percebe-se que a preocupação do legislador é que a educação seja ampla, irrestrita, tratando todos os aspectos inerentes à pessoa humana. A educação deve ser usada como instrumento de promoção do direito à igualdade, sendo que, além da família, a escola tem também fundamental importância, como lembra Luiz Gonzaga Bertelli em A Situação Embaraçosa da Educação Brasileira: Soluções.

É a família que deve estar à frente da formação da criança desde sua mais tenra idade, com as lições e exemplos dados. Quando se incutem nas crianças e nos adolescentes os princípios éticos e democráticos, esses certamente pautarão seu comportamento futuro, desde pequenos gestos e atos até grandes tomadas de decisões, sabendo discernir o que é correto ou não.

A escola tem também papel importante na formação da criança. Antes de mais nada, necessário se faz que se restaure o respeito e a autoridade dos professores, de forma que possam atuar como transmissores eficazes do conhecimento pedagógico e, principalmente, da conscientização dos valores que as crianças e adolescentes deverão levar pela vida toda. Os professores têm, sim, a “obrigação” de procurar instruir seus alunos e dar exemplos de ética, da convivência pacífica entre pessoas que tenham pensamentos diferentes dos seus e o respeito à diversidade. Assim, disseminando os valores cidadãos nas escolas, estarão dando uma eficaz contribuição para a construção de uma nação mais justa e democrática.

Citando novamente o artigo 3.º, parágrafo IV, da Lei 9.394/96, encontra-se preceituado que o ensino será ministrado com base “no princípio de respeito à liberdade e apreço à tolerância”. Desse modo, a todas as instituições de ensino já está imposto o dever constitucional de prevenir e coibir quaisquer formas de bullying discriminatório, independentemente de sua natureza. Sendo a escola o ambiente de formação de seres humanos, deve ter sua atuação pautada pelo combate rígido a qualquer forma de bullying praticado contra qualquer forma de diferença que exponha as crianças a situações vexatórias e de constrangimento – seja por motivo de sexo, classe social, aparência física, doenças, deficiências, capacidade intelectual ou qualquer tipo de limitação física ou intelectual. Todas as crianças são merecedoras de proteção, sem nenhuma distinção!

Os professores, alunos e todos os funcionários de instituições de ensino devem receber robusta formação e instrução para enfrentarem casos de bullying, sempre reforçando ideais de tolerância e respeito à diversidade, seja qual for sua origem

O bullying tem o poder de destruir a autoestima de um ser humano em construção e não pode ser tolerado em nenhuma vertente ou forma de expressão. Trata-se aqui da preservação de seres humanos, de crianças obviamente vulneráveis cuja personalidade, muitas vezes, não lhes permite defesa apropriada. Os danos são, na maioria dos casos, permanentes.

Os professores, alunos e todos os funcionários de instituições de ensino devem receber robusta formação e instrução para enfrentarem tais situações, sempre reforçando ideais de tolerância e respeito à diversidade, seja qual for sua origem. Não se trata jamais de especializar algum tipo de discriminação, conferindo-lhe especial proteção, mas sim, de se rechaçar qualquer tipo de agressão em ambiente escolar!

A especial proteção e determinação de combate direcionada ao bullying homofóbico, transfóbico e machista, acaba, por óbvio, por minimizar a dor e importância dos demais, o que se traduz, de forma gritante, em afronta ao princípio da isonomia. Liberdade e igualdade são princípios e valores de qualquer democracia. Como pode o direito deste ou daquele grupo sobressair em relação aos demais? Como se enfatiza determinado aspecto em detrimento de outros?

A doutrina afirma que a democracia repousa sobre três princípios fundamentais: o princípio da maioria, o princípio da igualdade e o princípio da liberdade. Aristóteles já dizia que a democracia é o governo onde domina o número, isto é, a maioria; mas também disse que a alma da democracia consiste na liberdade, sendo todos iguais. A igualdade, diz, é o primeiro atributo que os democratas põem como fundamento e fim da democracia. Não se pode privilegiar a proteção que deve existir em âmbito escolar contra um específico ato discriminatório.

Nessa linha, o professor José Afonso da Silva, ao discorrer sobre discriminações e inconstitucionalidade em sua obra Teoria do Conhecimento Constitucional, leciona: “São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela Constituição. O ato discriminatório é inconstitucional. Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso não se estendeu à pessoa ou grupos discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia.”.

Novamente, reitera-se, não está a se fazer aqui apologia a discriminação, preconceito ou fanatismo religioso. Pelo contrário, busca-se, sim, uma ponderação, reconhecendo-se que todos devam ter seus direitos e liberdades respeitados, não apenas esse ou aquele grupo. Qualquer menção específica na lei, como se busca na presente ADI, tornará, pois, a Lei 13.005/14 inconstitucional, porque ferirá o princípio da isonomia.

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