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Desfile da escola de samba Grande Rio, campeã do carnaval carioca de 2022.
Desfile da escola de samba Grande Rio, campeã do carnaval carioca de 2022.| Foto: André Coelho/EFE

Um dos destaques amplamente divulgados na semana do carnaval fora de época foi dado à campeã do desfile das escolas de samba do Grupo Especial no Rio de Janeiro, a escola Acadêmicos do Grande Rio, e seu tema: “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”. O tema, conforme explicação dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, que o compuseram, foi uma busca por reconciliar a figura do orixá – que, na cosmogonia iorubá, é o mais humano das entidades espirituais, representação das diferentes energias da natureza observadas – com a sociedade brasileira, que tradicionalmente o associa à figura do diabo.

Este desfile, e a repercussão gerada pelo fato de a escola de samba ter sido a campeã, levantou em muitos círculos uma discussão sobre intolerância religiosa, ante esta associação do orixá com a figura bíblia do diabo, ou Satanás. Muitas vozes se levantaram dizendo que Exu merecia este desagravo e que associá-lo ao demônio seria um ato de intolerância e verdadeiro racismo religioso. Segundo os defensores dessa tese, a associação começou com missionários europeus, em seus primeiros contatos com terras africanas, no século 19, importando para o Brasil escravagista tal pecha contra o “abridor de caminhos”. Esta situação é demonstrada por vários adeptos das religiões de matriz africana, que perfazem 0,3% da população brasileira no último censo do IBGE, de 2010.

Pensadores que concordam com a visão olham a intolerância sob um prisma de relação cultural (europeu colonizador versus afrobrasileiro colonizado e escravizado). E mostra o quanto a religião, como sistema de crenças, expressão e valores, molda a cultura. Considerando a visão de Exu como um princípio de movimento, tanto de ordem quanto de desordem, parece ter sido natural que os europeus cristãos associassem esta figura com Satanás, o “adversário”, que está em oposição a Deus. Porém, como explicam, o sistema religioso iorubá não comporta uma visão de forças espirituais conflitantes: tudo é ordem natural – o bem é um resultado do mal e há um ciclo energético infinito, pois toda a natureza, em seus elementos, é vista misticamente como orixás; Exu não tem um elemento definido, está em todos.

Não existe liberdade religiosa se for negado ao discurso religioso, fundamentado em seus livros sagrados e dogmas, pregar o rechaço desta ou daquela religião

Agora, veja o leitor que, enquanto a explicação “teológica” parece ser válida para defender a posição da religião afrobrasileira, há críticas contundentes de intolerância quanto à posição de fé de matriz cristã. O Zeitgeist (“espírito da época”, como ficou famoso pela obra de Hegel) indica que o respeito à diversidade deveria fazer com que não se possa criticar a cosmovisão religiosa do outro sem, de pronto, ver seu ato tachado de intolerante e mesmo racista. E nada mais errôneo em nossa sociedade do que a imposição monista de ideias, especialmente em matéria religiosa.

Aqui sempre vale o disclaimer: não há espaço para qualquer ato de segregação, diminuição ou ofensa a pessoas por sua religião. É justamente este o espírito da laicidade colaborativa brasileira: permitir que Jesus e Exu convivam livremente no seio social, cabendo a cada um entender-se e ver o mundo através da lente transcendente que constitua compromisso para a sua consciência, seja a revelação teísta da Bíblia ou a observação deísta do mundo.

O que é, então, o ato de preconceito e discriminação punível na legislação brasileira? Conforme falamos em nosso Direito Religioso, são atos de intolerância para com outrem por sua convicção religiosa, ou de segregar alguém em razão de sua fé. Dizer, portanto, que Exu está associado ao Diabo é, em si, um ato de preconceito ou discriminação religiosa? Se a resposta for teológica, entendemos que não. Afinal, a espiritualidade iorubá tem toda a liberdade de entender o mundo como um espaço natural de energias que são movidas por um orixá. Também o cristianismo, por seu turno, pode entender o mundo como criado por um Deus pessoal e que, ante a queda dos seres humanos pela escolha por desobedecê-lo – instigados por um ser espiritual igualmente caído –, eles estão agora sujeitos ao mal. E que este mal se apresenta também pelo desvio do ser humano em não conseguir conhecer ao Deus verdadeiro (e único), buscando alternativas espirituais próprias, na reivindicação que o monoteísmo tem de exclusividade.

O que não se pode admitir é que, ante o legítimo argumento teológico (de parte a parte), passem as pessoas a diminuírem umas às outras, ofenderem-se ou agredirem-se, verbal ou fisicamente. O limite da tolerância está em poder professar sua visão de mundo, tanto material quanto espiritual, com respeito pela consciência alheia, tão valiosa quanto a sua.

Não existe liberdade religiosa se for negado ao discurso religioso, fundamentado em seus livros sagrados e dogmas, pregar o rechaço desta ou daquela religião. Como ensina o professor André Tavares, é do núcleo central da própria liberdade religiosa a proteção ao discurso religioso, mesmo que seja tido como ofensivo ao destinatário.

Aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou quanto à possibilidade de hierarquização das religiões, inclusive a partir de críticas consideradas ofensivas e desagradáveis aos membros de outras religiões. A Primeira Turma do STF, levando em conta o conceito de racismo estabelecido no caso Ellwanger, criou importante precedente sobre a liberdade de expressão religiosa, decidindo da seguinte forma (grifos nossos):

2. No que toca especificamente à liberdade de expressão religiosa, cumpre reconhecer, nas hipóteses de religiões que se alçam a universais, que o discurso proselitista é da essência de seu integral exercício. De tal modo, a finalidade de alcançar o outro, mediante persuasão, configura comportamento intrínseco a religiões de tal natureza. Para a consecução de tal objetivo, não se revela ilícita, por si só, a comparação entre diversas religiões, inclusive com explicitação de certa hierarquização ou animosidade entre elas.
3. O discurso discriminatório criminoso somente se materializa após ultrapassadas três etapas indispensáveis. Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior.
4. A discriminação não libera consequências jurídicas negativas, especialmente no âmbito penal, na hipótese em que as etapas iniciais de desigualação desembocam na suposta prestação de auxílio ao grupo ou indivíduo que, na percepção do agente, encontrar-se-ia em situação desfavorável.
5. Hipótese concreta em que o paciente, por meio de publicação em livro, incita a comunidade católica a empreender resgate religioso direcionado à salvação de adeptos do espiritismo, em atitude que, a despeito de considerar inferiores os praticantes de fé distinta, o faz sem sinalização de violência, dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais.
6. Conduta que, embora intolerante, pedante e prepotente, se insere no cenário do embate entre religiões e decorrente da liberdade de proselitismo, essencial ao exercício, em sua inteireza, da liberdade de expressão religiosa. Impossibilidade, sob o ângulo da tipicidade conglobante, que conduta autorizada pelo ordenamento jurídico legitime a intervenção do Direito Penal.

7. Ante a atipicidade da conduta, dá-se provimento ao recurso para o fim de determinar o trancamento da ação penal pendente (RHC 134.682, de relatoria do ministro Edson Fachin, julgado em 29 de novembro de 2016).

O STF garante a liberdade discursiva das religiões, ainda que exercida com críticas severas às demais fés. O proselitismo configura o núcleo essencial do direito de liberdade de expressão religiosa

Ou seja, para um discurso religioso ser considerado crime, deve preencher três requisitos, ou passar por três fases: a primeira é cognitiva, deve ser verificada a desigualdade entre os grupos e/ou indivíduos. A segunda fase é a valorativa, o discurso deve afirmar que tal pessoa ou grupo é inferior por pertencer a certa religião, ou, por exemplo, prestar culto a Exu. A terceira e última é aquela em que o orador, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior. Vejam, não guarda nenhuma relação com a possibilidade de alguém, em razão de seus dogmas, discordar que Exu seja do bem, ou vice-versa!

O fato é que o precedente do STF referido garante a liberdade discursiva das religiões, ainda que exercida com críticas severas às demais fés. O proselitismo configura o núcleo essencial do direito de liberdade de expressão religiosa.

Tolerância, como ensinou John Locke na famosa Carta de Tolerância, de 1689, é o direito de cada religião ter seu espaço na sociedade política e viver conforme seus dogmas, sem sofrer interferências estatais, desde que orientadas, objetivamente, para o bem comum e o florescimento humano. Que Jesus e Exu convivam na sociedade, e que cada um busque por si, com liberdade, a verdade.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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