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Parte da imprensa só consegue enxergar líderes religiosos como autênticos estelionatários.
Parte da imprensa só consegue enxergar líderes religiosos como autênticos estelionatários.| Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney

Os ataques à religiosidade do povo brasileiro não param. A mais recente, pelo menos até onde eu saiba, é da jornalista Eliane Cantanhêde, em um programa da GloboNews. Ela simplesmente disparou:

“Muita gente se aproveita da boa-fé de pessoas que, ou sejam mais humildes, que tenham menos informação ou que estejam sofrendo, desesperadas, sem emprego, solitárias, fácil, alguém chega lá, cria uma empresa que se chama igreja, põe um nome, cria uma conta bancária, não paga IPTU, não paga os impostos e ludibria a boa-fé. (...) falta um pouquinho do Estado dar mais atenção a essa questão, porque chega num limite em que não é mais religioso, não é mais pessoal, é, vamos dizer assim, é rentável. Isso é triste, você deixar os cidadãos que são menos informados e mais vulneráveis na mão de gente capaz de qualquer coisa.”

É inaceitável que uma jornalista, em um programa de uma das maiores emissoras do Brasil (se não a maior), dispare comentários infelizes e preconceituosos contra dezenas de milhões de brasileiros, acusando, de quebra, seus líderes de estelionatários e “gente capaz de qualquer coisa”. Ao dizer que “alguém chega lá, cria uma empresa que se chama igreja, põe um nome, cria uma conta bancária, não paga IPTU, não paga os impostos e ludibria a boa-fé”, salvo melhor juízo e em tese é o mesmo que acusar alguém de “obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento” – tipo penal do estelionato, previsto no artigo 171 do Código Penal.

As declarações de Eliane Cantanhêde evidenciam um preconceito flagrante e violam a dignidade humana de milhões de brasileiros, tachados de ignorantes que facilmente são ludibriados por “gente que é capaz de qualquer coisa”

No Brasil, se a lei ainda não mudou, “caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime” é crime previsto no artigo 138 do Código Penal, assim como “difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação”, também é crime, pelo artigo 139 do Código Penal. O que a jornalista fez não parece incidir nesses tipos penais? O que lhe parece, caro leitor? Então, se a pessoa está com problemas pessoais e se torna evangélica, é porque foi ludibriada por gente que é “capaz de qualquer coisa”? É isso, produção? Parece que foi o que ela disse. Lembrei-me ainda de outro tipo penal, previsto no artigo 20 da Lei Antirracismo: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Aliás, esse crime é imprescritível e inafiançável. Será, apenas será, que a jornalista não tentou induzir ou incitar os brasileiros contra os líderes religiosos das pessoas humildes que estão sofrendo e que se tornam evangélicas? O que você acha?

Enquanto nosso caro leitor reflete sobre as perguntas acima, o que é líquido e certo é que tais comentários são alarmantes e carregados de preconceito, no mínimo contra os pastores evangélicos e os evangélicos em geral. Ela, com todas as letras, insinuou que esses líderes religiosos utilizam organizações religiosas como uma espécie de empresa para evitar o pagamento de impostos, explorando a vulnerabilidade de cidadãos em situação de dificuldade. Essas declarações evidenciam um preconceito flagrante e violam a dignidade humana de milhões de brasileiros, tachados de ignorantes que facilmente são ludibriados por “gente que é capaz de qualquer coisa”.

É fundamental reconhecer que o Brasil é um país marcado pela diversidade religiosa, sendo o maior país católico do mundo, com um crescente número de evangélicos. Mais de 80% da população declara-se cristã, com cerca de 30% identificados como evangélicos e 50% como católicos. No entanto, é necessário abordar essas questões com precisão e respeito. A Constituição de 1988 reconhece a relevância da fé cristã na formação histórica do país e garante a liberdade religiosa como um direito fundamental dos cidadãos. No fim de seu comentário, Cantanhêde ignora que o Brasil é um Estado laico e faz um apelo, como se morasse na China, para o “Estado dar mais atenção a essa questão”. Qual seria essa “atenção”? Interferir nas igrejas? Dizer quem é e quem não é igreja? É exatamente assim que acontece na China. Nem a França, Estado laicista desde 1789, tem esse tipo de postura.

Pelo contrário, a laicidade brasileira, como ensinamos na obra A laicidade colaborativa brasileira: da aurora da civilização à Constituição de 1988, é colaborativa e busca promover a convivência harmoniosa entre o Estado e as diversas manifestações religiosas, garantindo a separação institucional, sem ignorar a colaboração em prol do interesse público. No Brasil, conforme está disposto no artigo 19, I da Constituição, é vedado qualquer tipo de embaraço ao funcionamento dos cultos e das igrejas, devendo o Estado proteger sua ocorrência e liturgias, na forma prevista no artigo 5.º, VI, também da Carta Magna.

Para quebrar tudo, a jornalista critica a imunidade tributária religiosa dos templos religiosos, esquecendo que tal imunidade é uma conquista das democracias modernas e que visa, sobretudo, garantir a liberdade religiosa e evitar interferências estatais nas práticas de fé e crenças religiosas. Além da Constituição, o Código Civil assegura autonomia às organizações religiosas para sua organização e funcionamento, protegendo-as contra interferências externas e resguardando a voluntariedade dos fiéis (artigo 44, § 1.º).

Como o leitor já teve tempo de refletir, vamos voltar às perguntas iniciais:

1. O que a jornalista fez não parece incidir nesses tipos penais (artigos 138 e 139 do Código Penal)? Imputar aos líderes religiosos de pessoas carentes e em condições de vulnerabilidade a pecha de estelionatários parece, salvo melhor juízo, adequar-se perfeitamente a tais tipos penais. Seria importante que os líderes religiosos que se sentiram ofendidos acionassem o Judiciário com a devida ação penal privada para que a Justiça, por meio de um juiz criminal, se pronunciasse definitivamente se houve crime ou não. Entendo que o caso deveria, no mínimo, ser apurado.

Se o Brasil não entender logo a importância da religiosidade e da liberdade religiosa em todos os seus âmbitos, ela ruirá. Não existe democracia sem liberdade religiosa e proteção à religiosidade do povo que a sustenta

2. Então, se a pessoa está com problemas pessoais e se torna evangélica é porque foi ludibriada, por gente que é “capaz de qualquer coisa”? Se isso não é chamar essas pessoas de, no mínimo, ignorantes etc., eu não sei mais o que é.

3. Será, apenas será, que a jornalista não tentou induzir ou incitar os brasileiros contra os líderes religiosos das pessoas humildes que estão sofrendo e que se tornam evangélicas, incidindo no artigo 20 da Lei Antirracismo? O que você acha? É o que parece; e, se for, em tese seria crime inafiançável. Outra pergunta que a jornalista deveria responder diante de um juiz criminal.

O mais preocupante é o tom de normalidade. A mídia e os políticos em peso deveriam repudiar tal comentário. Líderes religiosos deveriam estar procurando o Judiciário, fiéis deveriam estar em passeata (pacífica) protestando. Mas, não vejo nada, além de um ou outro “cri cri” aqui e acolá, salvando-se a Gazeta do Povo, R7, o IBDR e a Unigrejas, o Pleno News e outros blogs evangélicos. Se o Brasil não entender logo a importância da religiosidade e da liberdade religiosa em todos os seus âmbitos, ela ruirá. Não existe democracia sem liberdade religiosa e proteção à religiosidade do povo que a sustenta.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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