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Detalhe da foto oficial da coroação de Elizabeth II, em 2 de junho de 1953.
Detalhe da foto oficial da coroação de Elizabeth II, em 2 de junho de 1953.| Foto: EFE/EPA/Cecil Beaton

Os olhos do mundo se voltam para Londres, onde, comovidos, acompanhamos as manifestações de quase todos os cantos do globo pelo falecimento de Elizabeth II, rainha do Reino Unido, chefe de Estado em 15 países, líder de uma comunidade de 53 nações (a Commonwealth), somando aproximadamente 2,1 bilhões de pessoas. Ela ainda era chefe máxima da Igreja Anglicana, com o título de “Defensora da Fé”, que acompanha os monarcas ingleses.

Um dos elementos mais interessantes – em nosso foco de estudos – da sociedade política inglesa é o fato de lá ser trazido para a modernidade o sistema de teocracia cesaropapista. De forma resumida, esta palavra junta outras duas: césar (transliteração do latim caesar) e papa, ou, ainda, imperator et pontifex. Isto quer dizer que há, na mesma pessoa, o depósito da autoridade política (o “césar”) e religiosa (o “papa) máximas.

No caso inglês, o monarca é, ao mesmo tempo, chefe de Estado e chefe da Igreja, algo que remonta ao período medieval com Henrique VIII, quando rompeu com a Igreja Católica. A partir daí, o poder (potestas) e a autoridade (auctoritas) daquele reino são exercidos pelo soberano. O primeiro sendo aquela instituição que rege, ordena, organiza – a abóbada da Constituição. Sem seu exercício sereno e forte, o edifício da sociedade não subsiste como o conhecemos (e está aí a história da Revolução de Oliver Cromwell para contar). O segundo, por seu turno, sugere a legitimidade de “augere”, fazer crescer, aumentar, produzir (daí também vem a palavra auctor, autor). Uma legitimidade conferida e que serve de modelo, farol. Uma força de atração, orientação.

A morte de Elizabeth II é o fim de uma geração de pessoas guiadas pelo senso de dever, muito diferente da sociedade credora (exigente por direitos) que se seguiu nas décadas de seu reinado

Como exemplo do poder (potestas) está o fato de o monarca ter em seu poder a possibilidade de vetar as leis do reino, ou de dissolver o parlamento, e mesmo de apontar ocupantes de posições ali (um terço da Câmara dos Lordes é composta pelos “lordes espirituais”, bispos anglicanos escolhidos pelo soberano). Já a autoridade (auctoritas) está na liderança que ocupa nas inúmeras instituições de caridade ao redor do reino, inspirando a sociedade pela busca do bem comum.

E é esta combinação única, aliada à figura carismática da rainha, que dá o senso comum de perda desta grande figura. É, como muitos dizem, o fim de uma era, com a última dos grandes líderes mundiais que reconstruíram a Europa (e o mundo) após os horrores da Segunda Guerra Mundial. O fim de uma geração de pessoas guiadas pelo senso de dever, muito diferente da sociedade credora (exigente por direitos) que se seguiu nas décadas de seu reinado.

Este senso, inclusive, ficou imortalizado pelas palavras da então jovem princesa Elizabeth, quando disse em um discurso na Cidade do Cabo (África do Sul), em seu 21.º aniversário: “Eu declaro diante de vocês que toda a minha vida, seja ela longa ou curta, será dedicada ao seu serviço e ao serviço da nossa grande família imperial, à qual todos nós pertencemos”. O novo rei, Charles III, em seu primeiro pronunciamento à nação na sexta-feira, dia 9, relembrou este discurso, acrescentando: “foi mais que uma promessa; foi um compromisso profundo, a cujo cumprimento devotou toda a sua vida”.

E está aqui a chave para se entender o que hoje espanta o mundo nesta cobertura midiática a respeito da morte da rainha. Seu senso de dever estava ligado à transcendência, muito bem representada naquela cultura e instituições. Mesmo com a mudança radical pela qual o mundo passou nas sete décadas de seu reinado, a estabilidade pessoal e o zelo com que tratou a Coroa enquanto elemento dignificante da Constituição são explicados por duas palavras: serviço e dever.

É este senso que o novo rei também revela querer marcar seu período, agora iniciado (a terceira era “carolíngia” dos ingleses). Ele afirma: “os deveres da monarquia permanecem. Assim como as relações particulares e responsabilidades do soberano em relação à Igreja da Inglaterra, igreja onde minha própria fé está tão profundamente enraizada”. E segue dizendo: “Nesta fé, e nos valores que ela inspira, fui educado a valorizar o senso de dever para com os outros, e de manter com grande respeito as tradições preciosas, as liberdades e responsabilidades de nossa história única e nosso sistema de governo parlamentar”. Talvez para ouvidos “laicos” e que pensam não ter a religião um sentido na relação entre poder e autoridade, estas falas soem “medievais”. Porém, a monarquia britânica e o sistema parlamentar construíram a era moderna, o que hoje chamamos democracia – só que, lá, uma democracia coroada.

O que sabemos, ao fim, é que sem dever não há como se manterem promessas. Esperamos que o rei Charles III possa seguir este tremendo exemplo de sua mãe e predecessora, conforme prometeu ontem. Que seja uma vida feliz (happy) e gloriosa (glorious), como diz o hino nacional inglês. E que seu serviço continue inspirando muitos nesta e nas próximas gerações!

God save the King!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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