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Migração de mórmons para Utah, em pintura de William Henry Jackson.
Migração de mórmons para Utah, em pintura de William Henry Jackson.| Foto: Reprodução

No fim do ano passado, dei um pulo no shoppingperto de minha casa, para olhar as vitrines e o “liquida” de Natal. Olha daqui, olha dali, quando “pechei” com um amigo que detém um mandato eletivo. Conversa vai, conversa vem, quando eu disse: “agora, com a nova gestão em Porto Alegre, poderíamos sugerir ao novo prefeito a criação de uma subsecretaria municipal de Liberdade Religiosa, a exemplo do Rio de Janeiro”. Resposta automática do amigo: “Pra quê?”.

O papo continuou; entretanto, a lição maior foi o “pra quê?”. Infelizmente a maior parte de nós, brasileiros, ainda não entendemos a importância basilar da liberdade religiosa. A liberdade religiosa e a liberdade de crença são, juntas, as “pedras de esquina” da construção de um ambiente democrático que preza pelas liberdades civis fundamentais. Afirmamos, em nossa obra Direito Religioso em tempos de Covid-19, que escrevemos para enfrentar as barbáries ocorridas nessa pandemia: “O Estado brasileiro entroniza a liberdade religiosa e a liberdade de crença como das mais importantes garantias constitucionais e reconhece o fenômeno religioso como imprescindível na busca do bem comum de nossa sociedade”. Sem as liberdades de crença e de pensamento, todas as demais liberdades ficam prejudicadas, pois são nossos pensamentos e crenças que moldam nosso caráter e nosso agir em sociedade.

Então, como conscientizar o povo brasileiro da importância destas liberdades? Educação e formação. Lembro que, na faculdade, se tivemos 20 minutos de aula dedicados a liberdade de crença e religiosa foi muito. Foi para mudar este cenário que surgiu, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Direito e Religião, o qual tenho a honra de presidir e do qual Jean é um dos vice-presidentes. Presidido honorificamente pelo dr. Ives Gandra da Silva Martins, o IBDR nasceu em 2018 com este escopo, promover a formação e a conscientização da importância da liberdade religiosa e do direito religioso para o Brasil.

Hoje, quase 200 anos depois da grave perseguição sofrida pelos mórmons, eles organizam um dos maiores eventos de liberdade religiosa do mundo

Outra iniciativa que chama muita atenção é o simpósio que ocorre anualmente na cidade de Provo, Utah, nos EUA. É promovido há 27 anos pela Faculdade de Direito J. Reuben Clark, da Universidade Brigham Young (BYU). Reúne mais de 50 países para discutir a situação da liberdade religiosa no mundo, avanços, retrocessos, casos de perseguição, entre outros. Em 2019, eu, Thiago, tive a honra de ser um dos delegados brasileiros no 26.º simpósio. Pude ver, ouvir e sentir o entronizar da liberdade religiosa como uma das principais de suas liberdades por muitos países, bem como de todos os envolvidos. Em dado momento, fomos convidados a assistir à história da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Esta comunidade de fiéis foi ferozmente perseguida no território norte-americano, fundado sob a égide das liberdades, por puritanos e católicos que fugiram da perseguição religiosa na Inglaterra. Depois de muitas mortes, conseguiram vencer a perseguição e estabelecer sua igreja no oeste americano, fundando o estado de Utah.

O fato é que hoje, quase 200 anos depois da grave perseguição sofrida pelos mórmons, eles organizam um dos maiores eventos de liberdade religiosa do mundo, oportunizando o debate e a formação com lideranças de todo o mundo. Temos uma lição aqui: mesmo em um país democrático e liberal como os Estados Unidos, é imprescindível que a liberdade religiosa esteja sempre em voga, sendo estudada, debatida e, consequentemente, garantida. Senão, sucede o que aconteceu no século 19, nos EUA, com os mórmons. Para falarmos um pouco mais sobre a perseguição sofrida pelos santos dos últimos dias (como os fiéis da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias se denominam) no século 19 e sobre como evitar sua repetição, vamos ouvir o membro do Comitê Internacional de Serviço e Divulgação da J. Reuben Clark Law Society, Fábio Nascimento.

Dr. Fábio, a formação histórica dos EUA perpassa por atos de perseguição religiosa vivenciada por puritanos e católicos na Inglaterra, no século 17. Pouco mais de 100 anos depois, o país torna-se independente e sua declaração de independência entra para a história com a frase, na língua inglesa, mais repetida no mundo: “Nós consideramos essas verdades autoevidentes: que todos os homens são criados em igualdade, e que receberam de seu Criador certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Percebe-se claramente o elemento da fé como central. Como que, aproximadamente 50 anos depois, este mesmo povo persegue cruelmente os fiéis da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias? Como enxergar este fenômeno contraditório?

A intolerância religiosa tem a sua raiz no preconceito, ou seja, ao ver uma crença diferente da minha, a vejo de forma negativa, como um mal a ser combatido. Os primeiros santos dos últimos dias (conhecidos como mórmons) cresceram rapidamente, o que despertou o preconceito das comunidades onde viviam. O ápice dessa perseguição foi a ordem de extermínio, um decreto assinado pelo governador do Missouri, Lilburn W. Bogs, em 27 de outubro de 1838, exigindo que os mórmons fossem “exterminados ou expulsos do estado se necessário”. A intenção de Boggs ao promulgar o decreto permanece incerta. Muitos supõem que ele autorizou um genocídio, associando o decreto ao massacre de 17 santos dos últimos dias, em Hawn’s Mill, três dias depois de ter sido promulgado. Mas foram justiceiros antimórmons, e não a milícia do estado, que cometeram o massacre, e não há nenhuma evidência que sugira que os justiceiros tivessem conhecimento do decreto do governador.

“A falta de informação sobre liberdade religiosa é um dos maiores desafios sobre o tema. Desde pessoas comuns até magistrados e líderes políticos, as pessoas pouco entendem sobre liberdade religiosa.”

Fábio Nascimento, membro do Comitê Internacional de Serviço e Divulgação da J. Reuben Clark Law Society

Em 1976, o governador do Missouri, Christopher S. Bond, rescindiu oficialmente o decreto de Boggs, afirmando que ele “claramente violava o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à liberdade religiosa” garantida tanto pela Constituição dos Estados Unidos quanto pela do estado do Missouri. Em nome dos cidadãos do Missouri, Bond expressou “profundo pesar pela injustiça e pelo sofrimento indevido” que a ordem tinha causado aos santos dos últimos dias. Toda essa perseguição no século 19 culminou com o êxodo dos mórmons para o meio-oeste dos EUA, sendo criado o estado de Utah (assim como os puritanos deixaram a Europa em busca de liberdade religiosa na América).

Porque a Universidade Brigham Young (BYU) investe em liberdade religiosa há mais de 50 anos?

A BYU é uma universidade afiliada à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. Devido ao histórico de perseguição e intolerância sofridos pelos santos dos últimos dias, há uma grande preocupação em defender e promover a liberdade religiosa para todos, para que ninguém tenha de passar pelo que os pioneiros mórmons passaram. O Centro Internacional de Estudos de Direito e Religião da BYU é conhecido e respeitado mundialmente pelos especialistas no tema.

Dezenas de países participam deste simpósio; qual a contribuição de debater liberdades de crença e religiosa com outros países?

O papa Bento XVI disse há alguns anos, enquanto ainda liderava a Igreja Católica, que a liberdade religiosa seria um dos grandes temas do século 21. Sua previsão estava correta. A liberdade de crença é um desafio mundial, com diferenças em cada continente e país. O debate com representantes de diferentes países amplia a visão do problema e agrega diferentes ideias sobre possíveis soluções.

Em 2020 percebemos diversas afrontas à liberdade religiosa, e até mesmo à de crença. Ao seu ver, isso se deu por falta de formação? Se sim, o que pode ser feito? Poderíamos ter uma BYU no Brasil?

A falta de informação sobre liberdade religiosa é um dos maiores desafios sobre o tema. Desde pessoas comuns até magistrados e líderes políticos, as pessoas pouco entendem sobre liberdade religiosa. A educação é o melhor remédio. O IBDR e outras entidades são essenciais para divulgar a importância da liberdade de crença em nosso país. A propósito, a BYU planeja organizar o 1.º Simpósio de Direito e Liberdade Religiosa no Brasil este ano. O conhecimento liberta. Que sejamos, todos, promotores e defensores da liberdade religiosa!

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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