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“O Estado é laico, mas igreja tem é que pagar imposto!”
| Foto: Unsplash

Esta foi a indignada expressão de muitos que comentaram nosso texto da última semana. Das 27 opiniões registradas até o momento em que redigimos esta coluna, a maioria criticava a imunidade das igrejas.

Como esse tema é muito importante para a laicidade estatal e, por conseguinte, para o florescimento humano, resolvemos responder as principais críticas a partir desse texto. Algumas perguntas eram semelhantes, então nos atemos aos principais argumentos.

“Nunca vi tanta bobagem em tão pouco espaço. Se o Estado é laico, não pode dar privilégios a picaretas que viraram multinacional, com o dinheiro suado dos crentes. Igreja tem de pagar imposto como qualquer empresa.”

Aqui vai já um detalhe fundamental: é justamente porque o Estado é laico que as igrejas não devem pagar impostos! Simples assim. As organizações religiosas lidam, cada qual conforme seus próprios dogmas, com o sagrado. É uma ordem distinta, um caminho separado. As igrejas e demais instituições religiosas (não importa o credo) possuem um objetivo comum de auxiliar o ser humano em sua caminhada sobrenatural, enquanto o Estado faz (ou deveria fazer) o mesmo caminho, mas na ordem material, natural.

Não é o Estado que concede privilégio às igrejas, mas é a Constituição que limita o poder do Estado perante as instituições que administram o sagrado

Quando a Constituição, documento fundante de qualquer Estado moderno, limita o poder de tributar – por meio de impostos – as organizações religiosas, a sociedade política está assegurando que tais caminhos não se cruzarão. Ou melhor: está garantindo que ambos os caminhos não se tornem o mesmo, em que um suprime o outro.

Aqui é importante destacar: não é o Estado que concede privilégio às igrejas, mas é a Constituição que limita o poder do Estado perante as instituições que administram o sagrado.

“Igreja ter isenção de tributos é coisa do diabo! uma vergonha!”

Nenhuma igreja no Brasil é isenta de impostos. Em Direito todas as palavras importam, pois elas carregam sentido técnico. E é um absoluto desconhecimento do básico em Direito Tributário não entender a diferença entre isenção e imunidade.

A isenção, sim, é uma concessão do Estado. Não se trata de uma limitação estatal imposta pela Constituição, mas um benefício concedido pelo Estado (leia-se aqui os três entes da Federação) para quem ele quiser, claro que devidamente aprovado por lei, segundo os necessários trâmites legislativos. Reiteramos: isenção é uma benesse do Estado, concedida por lei e, geralmente, nas outras espécies de tributos: contribuições parafiscais e sociais, taxas etc.

Já a imunidade tributária é uma limitação constitucional do Estado, imposta pela Constituição, apenas para a espécie tributária na forma de impostos. Dito de outra forma: O Estado não pode tributar por meio de imposto as instituições previstas no artigo 150, VI da Constituição. Era isso.

“E o Macedo agradece...”

Que Macedo? O bispo Edir? Se é esse, quem tem de agradecer somos nós. Pesquise o quanto ele e a igreja fundada por ele ajudam e ajudaram pessoas em condições de vulnerabilidade no Brasil e fora dele. Antes de termos “pré-conceito” sobre alguém, seria honesto e respeitoso investigarmos antes. Atualmente está tão fácil, basta dar uma zapeada no Google. Caro leitor, vai, zapeie e não peques mais.

“As religiões deixaram há muito tempo a essência dos ensinamentos sacros, e passaram para o lado da política e da arrecadação. Todas são conduzidas por homens e mulheres que na vaidade, estrelismo, dinheiro e prepotência pecam muito. Porém, como se intitulam emissários de Deus, se acham acima de qualquer pessoa. As arrecadações vão para os cofres e o trabalho beneficente em muitas vezes é relegado. Na Igreja Católica as portas ficam fechadas, perderam seguidores para outras religiões que enriqueceram igual à católica. Não tem por que ficarem isentas de impostos. Têm de pagar os impostos e ser fiscalizadas pela Receita Federal. Se o país é laico, por que feriados religiosos?”

“As religiões deixaram há muito tempo a essência dos ensinamentos sacros...”. Pois bem, parece um censo das religiões, uma verdadeira fiscalização da ortodoxia doutrinária. Mas não estamos em um Estado laico??

Um Estado laico se rege por dois princípios básicos (é assim em qualquer laicidade no mundo; se o leitor quiser aprender mais, leia: a laicidade colaborativa brasileira): não interferência e liberdade religiosa. A crítica do leitor parece-nos uma clara afronta a estes dois princípios. Caso ele seja um entendido de ensinamentos sacros, pode (talvez deva) criticar e tentar reformar a igreja em que ele congrega e participa, mas não a dos outros. Isto cheira a teocracia ou ao modelo chinês de secularismo. No fim de sua crítica, cai no erro do outro leitor, confundindo isenção com imunidade e pedindo para a Receita Federal fiscalizar as igrejas. Como se a Receita entendesse algo de sacralidade e transcendência. A fiscalização que o leitor reclama é típica de um Estado não laico.

Como dito, o início da frase parece mostrar um tom avesso à laicidade e à liberdade religiosa. Quanto a feriados religiosos, bem, aqui a história nos ajuda a entender que o Brasil foi descoberto por uma missão católica e foi construído a partir desses valores; nada mais natural e comum que tenha feriados com alusão religiosa, fruto da tradição, pois os feriados são para as pessoas, não para o Estado... e as pessoas (ou ao menos sua maioria esmagadora) não são “laicas”.

Caso o patrimônio de uma igreja seja utilizado com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, sua personalidade de organização religiosa será desconstituída e ela terá de pagar impostos

“Se o patrimônio auferido fosse utilizado exclusivamente para com a comunidade, sociedade, seguidores... seja quem for... não vejo problemas. Mas infelizmente o que se observa são conglomerados de riquezas e nesse ponto PARA MIM há desvio de finalidade.”

Esse leitor começa bem, mas termina mal. E aqui vai uma informação importante. Olhemos o artigo 50 do Código Civil:

“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
§ 1.º  Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.”

Então, fiquemos tranquilos. Caso o patrimônio de uma igreja seja utilizado com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza, sua personalidade de organização religiosa será desconstituída e ela terá de pagar impostos e tudo o mais!

“Muitos pastores de igrejas evangélicas usam desse artifício para sonegação de impostos. Declaram ganhos incompatíveis com a vida que levam. Utilizam a instituição religiosa para sonegação dos seus impostos. Isso é crime! Iniquidade! Mentira! Pecado! Hipócritas!”

Remetemos à resposta anterior também. Quanto aos pastores referidos (não entendemos por que ele não mencionou padres, pais de santo, anciãos, apóstolos, seria preconceito? Com certeza não, apenas esquecimento...), trazemos novas “de grande alegria”: os líderes religiosos, todos, sem exceção, devem pagar impostos. Eles não são imunes. Não existe limitação constitucional para o Estado tributá-los. Logo, fique tranquilo, pastor paga Imposto de Renda e tudo o mais.

Fazer uma lei ou uma norma constitucional conforme a “cara” do freguês é inviável em qualquer Estado, ainda mais em um com dimensões continentais como o Brasil

“Se é para criar um império religioso com templos suntuosos e pastores e padres vivendo nababescamente, digo que a imunidade tributária deve acabar. A história registra que a igreja cristã se tornou refém de falácias e atitudes hipócritas. As indulgências foram o estopim para a Reforma religiosa. Mesmo os franciscanos foram uma reação ao esquecimento do que havia de belo no cristianismo. Deve haver um meio termo. Um simples templo não deve ser punido com impostos, mas uma catedral de 20 mil lugares com mármores e heliporto não é adequada ao entendimento da humildade e perdão do pensamento cristão. Espremer a Bíblia para embasar teorias de prosperidade é um acinte.”

Bonita a fala desse leitor, mas lembremos: aqui não é Atenas, uma cidade-Estado com poucas dezenas de milhares de pessoas. A democracia moderna requer leis abstratas, ainda mais quando se trata de normas constitucionais. Fazer uma lei ou uma norma constitucional conforme a “cara” do freguês é inviável em qualquer Estado, ainda mais em um com dimensões continentais como o Brasil. Um conselho: leia Sobre a Democracia e Poliarquia, de Dahl, e A Lei, de Bastiat.

Encerramos por aqui. O ser humano é um cidadão de duas cidades, Roma e Jerusalém. E, para a cidade de Deus, o caminho é guardado pelas organizações religiosas. Assim como estas não devem interferir na gestão (caminho) do Estado, este não deve interferir em sua gestão. Cobrar impostos implica quebra da laicidade, razão pela qual o Estado é limitado por seu documento fundante de fazê-lo. É assim no Brasil, na Alemanha, na Itália, na Espanha, em Portugal, nos EUA e em muitos outros Estados laicos.

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