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O Brasil vive um momento de profunda transformação institucional em que o poder do Judiciário, especialmente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cresce de forma acelerada e contínua. Esse fenômeno é conhecido como juristocracia, termo cunhado pelo cientista político Ran Hirschl, que define uma concentração do poder decisório no Judiciário em detrimento dos poderes Executivo e Legislativo e da própria soberania popular. Na juristocracia, juízes e tribunais passam a exercer papel central na formulação de políticas públicas e na gestão da vida política, o que ameaça o equilíbrio democrático e amplia o ativismo judicial.
Paralelamente, essa expansão do Poder Judiciário no Brasil está impregnada pela chamada mentalidade revolucionária, conceito desenvolvido por Olavo de Carvalho. Essa mentalidade pressupõe a existência de um ideal moral supremo e inquestionável, que autoriza, segundo seus seguidores, o uso de meios extraordinários – muitas vezes ilegítimos – para derrubar a ordem vigente em nome de uma transformação radical da sociedade. Uma característica central desta lógica é a justificação dos meios pelos fins: qualquer ação, mesmo contrária à lei ou à moralidade tradicional, torna-se aceitável se servir para alcançar o ideal revolucionário almejado. Em O Imbecil Coletivo, Olavo destacou que essa mentalidade está presente em todas as vertentes do marxismo clássico e moderno, que defendem a revolução como método necessário para a superação do sistema vigente.
O marxismo, enquanto sistema político e econômico, é profundamente revolucionário porque é contrário aos cânones ocidentais e quer substituí-los por uma nova ordem: rejeita a ordem natural, a moral tradicional e a dignidade individual como valor absoluto, propondo a luta de classes e a transformação violenta das estruturas sociais como responsáveis pela construção da justiça. Seu ideário enfrentou historicamente as igrejas cristãs, consideradas agentes conservadores e obstáculos à revolução, promovendo regimes ateus e a perseguição religiosa em larga escala. Essa incompatibilidade essencial entre marxismo e cristianismo nasce da divergência sobre a natureza do homem, do mundo e da verdade, o que alimenta a mentalidade revolucionária que impregna o ativismo judicial brasileiro contemporâneo.
O avanço da juristocracia cria barreiras arbitrárias e pretende sancionar, sob a alegação de abuso, condutas legítimas de líderes e parlamentares cristãos
Nesse sentido, o Judiciário ativista avança para destruir, ou, ao menos, enfraquecer a representação da fé cristã na esfera pública porque ela se mostra resistente à revolução. A fé cristã – enraizada em princípios morais e éticos que se refletem nos direitos naturais, na estrutura da sociedade e que estão positivados na Constituição Federal e em diversas leis – representa um contrapeso essencial à agenda revolucionária que busca remodelar a sociedade conforme seus ideais.
A fé cristã sustenta valores fundamentais, como o respeito à vida, à dignidade da pessoa humana, à família formada inicialmente por homem e mulher, à justiça baseada em direitos naturais e à liberdade de crença. Esses princípios são pilares da ordem jurídica e social e são protegidos pela Constituição no Brasil. Contudo, o ativismo judicial, inspirado pela mentalidade revolucionária, mostra que essa influência cristã é um obstáculo à transformação radical desejada e, por isso, passou a utilizar instrumentos como o conceito judicial de “abuso de poder religioso”, embora inexistente na legislação, com o objetivo de restringir a ação política e social dos cristãos conservadores.
A liberdade religiosa é um direito constitucionalmente garantido, assegurando que ninguém seja impedido de professar sua fé ou de expressá-la publicamente, inclusive por meio da atuação política. No entanto, o avanço da juristocracia cria barreiras arbitrárias que limitam essa liberdade, pretendendo sancionar, sob a alegação de abuso, condutas legítimas de líderes e parlamentares cristãos. Esta postura judicial tende a alimentar uma “cristofobia institucional” velada, que penaliza a fé cristã pela sua resistência à mudança radical.
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Exemplos emblemáticos desse ativismo incluem processos contra políticos cristãos conservadores, como o suplente de deputado João Antonio Holanda Caldas e o deputado estadual Fábio Francisco da Silva, que foram alvos de investigações e cassação associadas ao alegado abuso de poder religioso, mesmo sem previsão legal específica para tal acusação, evidenciando o uso político-judicial deste conceito para cercear a representação cristã.
É possível destacar o voto do ministro Edson Fachin no TSE sobre o tema, no Recurso Especial Eleitoral (Respe) 8852/GO, em que ele defendeu a inclusão do “abuso de poder religioso” nas ações de investigação judicial eleitoral. Em seu voto, Fachin reconheceu a legítima influência das religiões na vida política, mas argumentou que as igrejas e seus dirigentes possuem um poder capaz de enfraquecer a liberdade do voto e desequilibrar a disputa eleitoral, justificando assim a intervenção judicial para tutelar a legitimidade do processo eleitoral. Embora ele tenha afirmado que essa intervenção teria, à época, um caráter tutelar, não punitivo, seu posicionamento revela um avanço do Judiciário ao impor restrições amplas à atuação legítima de lideranças religiosas. Essa fundamentação expressa claramente a mentalidade revolucionária ao justificar meios extraordinários para fins percebidos como superiores, e, no caso, a “normalidade” eleitoral entendida sob um padrão rígido judicial, acima da autonomia política e da liberdade religiosa.
O julgamento em si rejeitou a institucionalização autônoma do abuso de poder religioso por maioria, mas o voto de Fachin se tornou um marco dessa interpretação judicial, refletindo o caráter juristocrático da expansão do ativismo. Essa construção jurídica, que mistura moralismo com poder decisório ampliado, é sintomática da jurisdição ativista que atua para restringir a representação cristã, visto que ela resiste à transformação imposta pela mentalidade revolucionária.
A noção de “abuso de poder religioso” mistura moralismo com poder decisório ampliado, e é sintomática da jurisdição ativista que atua para restringir a representação cristã
Essa situação ganha ainda mais relevância no contexto atual da política brasileira. A ascensão popular de parlamentares evangélicos como Nikolas Ferreira, Damares Alves, André Fernandes e até a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro mostra a expressiva representação dos cristãos conservadores no cenário político. Com as eleições de 2026 se aproximando, cresce a preocupação diante das tentativas da esquerda de promover regulações eleitorais que possam limitar a participação e a influência dessas lideranças. A reação cristã conservadora tem sido ostensiva e, muitas vezes, liderada por figuras como o pastor Silas Malafaia, que denuncia o ativismo judicial em seu aspecto político como uma possível ameaça à liberdade religiosa e política desses grupos e, em especial, sua livre influência política.
Nesse pano de fundo, há um risco concreto de que a juristocracia aprofunde ainda mais o conceito de abuso de poder religioso, utilizando-o como instrumento para restringir o voto e a representação política dos cristãos conservadores nas eleições de 2026. Esse avanço ampliaria a judicialização da política com um viés ideológico de perseguição, reforçando uma cristofobia institucional velada e limitando um segmento significativo da sociedade que busca expressar suas convicções dentro do Estado democrático.
Há um risco concreto de que a juristocracia aprofunde ainda mais o conceito de abuso de poder religioso para restringir o voto e a representação política dos cristãos conservadores nas eleições de 2026
O risco desse fenômeno, confirmado pela analogia com regimes autoritários inspirados na mentalidade revolucionária, reside na progressiva institucionalização de uma ditadura judicial que, sob o manto da defesa da democracia, pulveriza as garantias constitucionais, restringe a liberdade religiosa e anula a soberania popular.
Por isso, torna-se urgente conter o ativismo judicial que legitima meios ilegítimos para fins políticos, preservando a liberdade religiosa como direito fundamental e garantindo o respeito à legislação e à Constituição. O Brasil precisa reafirmar que os fins não justificam os meios, sobretudo quando atentam contra os direitos naturais presentes em sua ordem jurídica, para evitar a cristalização da juristocracia como instrumento de perseguição política e religiosa.
Zizi Martins, advogada e procuradora do Estado da Bahia, é membro do IBDR, diretora e membro fundadora da Lexum, vice-presidente da Aned, especialista em Direito Administrativo (UFBA) e em Direito Religioso (Unievangélica), mestre em Direito (UFPE), doutora em Educação(UFBA) e pós-doutora em Política, Comportamento e Mídia (PUC/SP). Atua também como consultora e pesquisadora na área de liderança e gestão pública, além de comentarista política.






