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Gabriel Jesus (à esquerda) e Neymar (à direita), com faixa de cunho religioso, após a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.
Gabriel Jesus (à esquerda) e Neymar (à direita), com faixa de cunho religioso, após a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do Rio, em 2016.| Foto: Marcelo Sayão/EFE

A liberdade religiosa continua sendo desprezada por alguns setores no Brasil. Dessa vez, por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) – aliás, de novo. Vamos ao caso: a Nike fez um acordo com o MPF para vetar a personalização das camisas da seleção brasileira com nomes ou expressões cristãs (a customização no site da empresa já vetava expressões de outras religiões, como as de matriz africana).

A personalização de camisas não é de hoje. Começou com os próprios jogadores escolhendo números aleatórios em vez dos clássicos 2 para lateral direito, 3 para zagueiro, 9 para centroavante etc. Atualmente os jogadores usam o número que quiserem, tudo acertado com o técnico e demais colegas. Gabriel Jesus, por exemplo, joga com a 33 no Manchester City, em alusão à idade com que Jesus de Nazaré foi crucificado. Inclusive, seu próprio nome leva “Jesus”. A partir da Copa do Mundo de 1994, as camisas também passaram a trazer os nomes dos jogadores nas costas, além do número.

Com isso, abriu-se a porteira para que os próprios torcedores personalizassem a camisa do seu time do coração com seu nome ou qualquer outra expressão. Em Porto Alegre, há muitos anos, basta ir à lojinha dentro do próprio Estádio do Beira-Rio e pedir sua camisa oficial personalizada (nós temos várias) mediante uma pequena taxa complementar.

Em um país livre, se você quiser personalizar sua camisa – pois pagou por ela –, personaliza e fim. Contudo, no Brasil, o significado de liberdade não é mais o mesmo

É assim em um país livre: se você quiser personalizar sua camisa – pois pagou por ela –, personaliza e fim. Contudo, no Brasil, o significado de liberdade não é mais o mesmo, especialmente depois da pandemia. Então, uma prática comum vira caso para o Ministério Público Federal. O motivo: podia colocar “Jesus” na camisa, mas “Exu” não.

As liberdades de crença e religiosa são liberdades fundamentais em um democracia, como temos explicado aqui e aqui, e para o próprio sistema de liberdades civis fundamentais. O âmbito de proteção de ambas inclui o direito de ter, não ter, mudar e manter sua religião, além da exteriorização da crença na vida civil, por meio da afirmação pública da crença escolhida (liberdade de crença) e sua defesa, expressão, culto, assistência, ensino e organização (liberdade religiosa).

Por outro lado, tais liberdades são mais bem exercidas quando praticadas em um Estado laico, pois não existe a pressão estatal a favor de determinada religião em detrimento de outras ou da pressão de expurgo de uma, várias ou todas as religiões do espaço público. Na primeira hipótese, identificamos as teocracias e os Estados confessionais; a segunda se conforma com os Estados que praticam o laicismo e o secularismo.

O laicismo, como já explicamos, tem como núcleo o expurgo da religião do espaço público. A religião ou as religiões são males existentes na sociedade e que devem se ater ao espaço privado de seus fiéis. O fenômeno religioso faz mal ao Estado, por isso deve ser abatido. O laicismo é um movimento de expurgo da religião da vida pública, enquanto o secularismo é o golpe final na transcendência para que a religião seja vista, no máximo, como algo cultural. Mas isso é papo para França ou China; aqui no Brasil é diferente.

A Constituição brasileira de 1988, documento fundante de nossa nação, criou um ambiente colaborativo entre os poderes político (civil) e religioso. No Brasil, o fenômeno religioso, organizado ou não, goza, em relação ao Estado, de separação, liberdade e autonomia, benevolência, colaboração e igual consideração, como explicamos em nossa obra A laicidade colaborativa brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988.

Já as liberdades de crença e religiosa possuem no Brasil um enquadramento constitucional único no mundo, usufruindo de um status que corresponde aos seus  conteúdos, âmbitos de proteção, dimensões e destinatários, como ensina a melhor doutrina europeia sobre o tema e conforme tivemos a oportunidade de constatar em nossa pesquisa de mestrado na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O óbvio seria o MPF pressionar a Nike para que fosse garantido o uso de qualquer expressão religiosa. Em vez disso, o MPF pressionou para excluir todas as religiões da possibilidade de personalização, em típica ação laicista

Dito isso, qual seria o papel do MPF frente à denúncia de que “pode colocar Jesus na camisa, mas Exu não”? Se considerarmos que o MPF tem legitimidade para dizer como uma empresa multinacional (ou não) deve fazer ou deixar de fazer seu marketing, devemos partir da premissa brasileira para obtermos a resposta, isto é, responder a partir do sistema brasileiro de liberdades e de seu Estado constitucional.

O fenômeno religioso no Brasil goza de especial proteção constitucional e legal, como percebemos facilmente em diversos artigos constitucionais e leis esparsas. Por outro lado, este sistema tem como destinatários todas as religiões, credos e pessoas religiosas. Por mais que o Brasil tenha uma forte identificação cultural com o cristianismo e ele seja a maior expressão religiosa dos brasileiros, religiões minoritárias possuem os mesmos direitos e garantias, o que comprova a característica da igual consideração de nossa laicidade.

E qual seria o papel do MPF? O óbvio, em caso de atuação por suposta discriminação religiosa, seria pressionar a Nike para que fosse garantido o uso de qualquer expressão religiosa, pois, afinal de contas, a expressão religiosa é importantíssima para o povo brasileiro e por isso existem tantas garantias legais e constitucionais nesse sentido. Em vez disso, o que o MPF fez? Pressionou para excluir todas as religiões da possibilidade de personalização em típica ação laicista, bem comum no MPF ultimamente. Será que o MPF sabe a diferença entre laicismo e laicidade? Será que o MPF conhece os âmbitos de proteção da liberdade religiosa no Brasil? Parece-nos que não. Voltar aos bancos escolares seria uma boa alternativa. Mas fica a dica: bancos escolares brasileiros que ensinem a laicidade e as liberdades de crença e religiosa que existem no Brasil, não a francesa, belga, canadense, chinesa, norte-coreana...

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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