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Pode haver “liberdades” sem a liberdade religiosa?
| Foto: S. Hermann e F. Richter/Pixabay

As liberdades

A liberdade é um dos elementos constitutivos do Direito natural e da própria democracia. Ela é ramo da grande árvore da dignidade da pessoa humana e o resultado de um Estado que é regido por princípios inspirados ou derivados da lei natural. Se o Estado é formado sobre bases de valor da pessoa, deve fornecer os meios para alcançar o fim último que é [ou deve ser] o bem comum. As liberdades civis fundamentais são um dos meios para se chegar na concretização do plano moral. Diz Javier Hervada em Escritos de Derecho Natural:

O homem é livre, o que é um sinal de que ele é uma pessoa (assim como sua finitude, pois somente uma pessoa finita é capaz do mal); mas não é a coisa mais radical e decisiva. O que é radical e decisivo é que o homem é realmente livre, que no plano ontológico sua atividade domina e que no plano moral a lei natural é uma lei que é cumprida através da liberdade (o ato não livre automaticamente deixa de ser moral)”

“[...] a verdadeira liberdade consiste de modo radical em assumir conscientemente o próprio ser, tal como nos é dado. Consiste simplesmente em amá-lo; é então que a lei natural é assumida espontaneamente, sem violência, com liberdade.” (p. 701, tradução nossa)

A liberdade é um indicativo daquilo que é essencial para a pessoa humana. É a consequência dos princípios que fundam a Constituição brasileira, cujo artigo 5.º, em seus incisos, expressa diferentes modalidades de liberdade, indo desde o “é livre” até o “é plena a liberdade”. É uma expressão do reconhecimento do valor que a pessoa tem em si mesma e o reconhecimento da inteligência humana. Diz, ainda, Hervada:

“Ser pessoa é ter inteligência e com ela liberdade. O decisivo é que a condição da pessoa é uma participação mais plena no ser (a inteligência não é uma mera faculdade adicionada, é uma perfeição do ato de ser). É uma maneira superior de ser, a mais alta nos graus de participação no ser.” (p. 257, tradução nossa)

A liberdade é ramo da grande árvore da dignidade da pessoa humana e o resultado de um Estado que é regido por princípios inspirados ou derivados da lei natural

Trata-se de um componente indispensável em uma democracia. A partir do momento em que a escolha do governante é feita de forma direta e secreta, com valor igual para todos, outros ramos da vida humana também haverão de ser guiados pela liberdade. Trata-se de uma condição sine qua non para o Estado democrático. Continuamos com Javier Hervada:

Sem liberdades pessoais e, fundamentalmente, sem liberdade de ser pessoa – no sentido próprio desta palavra – não há democracia, mesmo que haja votos. Apenas votando não se é uma pessoa, nem as eleições são uma democracia; ambas as coisas são instrumentos para a liberdade e a democracia, mas não são democracia ou liberdade.” (p. 365-6, tradução nossa)

A vida humana encontra sentido em suas decisões políticas, culturais, religiosas, familiares e assim por diante. Não é função do Estado interferir nessas escolhas, cabendo ao indivíduo ter o seu direito de optar desimpedido, e cabendo ao Estado, exclusivamente, proteger tal fluidez, impedindo qualquer embaraço. A liberdade está expressa na democracia brasileira em compasso com o pensamento de Hervada e com os tratados internacionais:

“É por isso que o respeito à liberdade de pensamento filosófico, científico e cultural e, com ela, a liberdade de comunicação, é uma regra elementar de uma verdadeira democracia. Não sem razão, as Nações Unidas receberam como peças-chave da Declaração dos Direitos Humanos as quatro liberdades com as quais a declaração de Roosevelt resumiu a ideologia dos aliados em sua luta contra o totalitarismo: liberdade de palavra e expressão, liberdade religiosa, liberdade de viver sem medo e liberdade de viver conforme a sua necessidade.” (p. 365, tradução nossa)

Em seu tratado Sobre a liberdade, John Stuart Mill critica o Estado que não respeita a individualidade e a autonomia dos indivíduos. Mill trata dos tipos de liberdade mais importantes nas relações humanas, e como é danoso que as esferas da autoridade e da liberdade não saibam qual é o seu devido lugar. Aqui, mais uma vez, há um apelo à lei natural na forma tomista (chama-se à sindérese lei do nosso intelecto, por ser um hábito que contém os preceitos da lei natural, que são os princípios primeiros das obras humanas, diz Tomás de Aquino na Suma Teológica), ao reconhecer a qualidade da mente humana como fundamento para a liberdade de expressão:

“Como é que há, então, uma predominância de opiniões e condutas racionais na humanidade? Se realmente existir essa predominância – e ela deve existir a menos que os assuntos humanos estejam, e sempre tenham estado, num estado quase desesperador –, ela se deve a uma qualidade da mente humana, a fonte de tudo que é respeitável no homem como um ser intelectual e moral, a saber, que os erros são corrigíveis. O homem é capaz de retificar seus enganos através da discussão e da experiência.” (p. 56)

Por ser a consciência humana a fonte original das ideias, a liberdade de expressão é um dos frutos, uma das categorias do conjunto de liberdades fundamentais que são reconhecidos internacionalmente e no ordenamento jurídico pátrio. É pela expressão que o indivíduo transparece suas escolhas, emite suas opiniões, aponta para o grau ao qual é influenciado por determinada cultura, dá voz às suas escolhas políticas, joga luz sobre a sua crença e assim por diante. Mill trata a liberdade de expressão de maneira profunda, ao lembrar das consequências de uma sociedade que não a tem em seus fundamentos. Observando a linha indicada, percebe-se que silenciar tal liberdade equivale a ferir a dignidade da pessoa humana:

“Mas o prejuízo característico de silenciar a expressão de uma opinião reside no fato de que isto é roubar a raça humana, tanto a posteridade quanto a geração atual, aqueles que discordam da opinião quanto aqueles que a sustentam, e esses ainda mais que os primeiros. Pois, se a opinião está certa, eles são privados da oportunidade de trocar o erro pela verdade e, se ela está errada, eles perdem a percepção mais clara e vívida da verdade, produzida pela colisão desta com o erro, um benefício tão grande quanto o primeiro.” (p. 51).

Dissertar sobre as liberdades também requer que o ato de crer seja detalhado, afinal, a liberdade religiosa é a fonte de todas as liberdades

Este pensamento tem seus contrapesos por outros caminhos. Mesmo aquilatando o valor da liberdade individual, e o respeito inerente como consentâneo da dignidade humana pelas escolhas de expressão de cada pessoa, vale assinalar que as liberdades fundamentais, em uma democracia, não são ilimitadas. Assim como a liberdade de expressão é resultado da dignidade da pessoa humana, essa mesma dignidade, que é primária, serve como parâmetro para o desfrute de qualquer liberdade. Aqui está outro aspecto importante da liberdade: ela anda de mãos dadas com a valorização humana. Se, no uso de uma liberdade como a de expressão, o indivíduo comete uma afronta ao sentimento da coletividade, ataca algo importante para alguém, põe risco a segurança e expõe de forma desnecessária, a liberdade será limitada pelo mesmo princípio que regula todo o conteúdo normativo de uma democracia, que é a dignidade da pessoa humana.

Dissemos em nossa obra Direito Religioso: questões práticas e teóricas que “em razão da liberdade de expressão posso falar e fazer qualquer coisa? Entendemos que não e, aqui, damos nossa singela contribuição ao debate. A liberdade de expressão encontra um limite: a dignidade da pessoa humana. Todas as liberdades emanam da Dignidade da Pessoa Humana, inclusive a de expressão”.

Dissertar sobre as liberdades também requer que o ato de crer seja detalhado, afinal, a liberdade religiosa é a fonte de todas as liberdades. É a religião que inspira o homem a agir conforme um dever moral e compõe o seu ser, em menor ou maior intensidade, muitas vezes de forma inconsciente ao receber a influência do ethos em que vive – familiar, sociedade, nacionalidade e cultura. É a partir desse ser que o homem exterioriza aquilo que ele é e o que acredita. Por isso, a liberdade religiosa é primária, e a liberdade de expressão e as demais são consequência. Voltemos a Javier Hervada:

“Existem, de fato, deveres morais que, por seu objeto (geralmente porque pertencem radicalmente à privacidade da pessoa, mesmo que ele tenha uma projeção social), o que eles originam antes da ordem é um direito e não um dever. É o caso, conhecido, da liberdade religiosa. O dever moral do homem de adorar a Deus corresponde ao direito natural à liberdade religiosa dentro da sociedade civil por sua natureza (pela natureza do ato de fé).” (p. 256).

Libertatem credere (liberdade para crer) é o estado de uma pessoa livre de qualquer restrição externa ou coação física ou moral para ter algo como verdade, e essa verdade é proveniente de uma regra de fé. Indo mais além, é a liberdade para alguém externar aquilo que acredita e agir conforme sua confissão de fé lhe direciona a ação, como uma bússola. E o mais importante: liberdade para crer e obedecer a uma divindade, cultuá-la e espalhar a notícia de sua fé para quem quiser ouvir.

O ato de adotar uma confissão de fé também faz parte do ciclo das liberdades, além de ser um direito natural, por constituir algo essencial no corpo da índole humana, e que pode ser considerado pelo indivíduo como um dever moral – não uma coação, mas um dever moral que o indivíduo escolhe seguir espontaneamente, pelo uso de sua consciência. Trata-se de algo “metafísico [que] vai além de qualquer medida humana”, como dissemos em nosso livro. E o motivo para tal valoração é que “aquele que adora o faz com todo o seu âmago e sem limites”. Nesse sentido, explica John Finnis em Natural Law & Natural Rights:

Dada a devida permissão para expressar diretamente a preocupação religiosa (digamos, como diz Platão, por ‘sacrifício, canto e dança’), a maneira da pessoa humana de realizar a proposta de amizade com Deus se baseia em todos os requisitos de razoabilidade prática na busca e respeito a todas as formas básicas do bem humano.” (p. 410, tradução nossa).

Em consonância com a liberdade de consciência, a autodeterminação para escolher qual crença religiosa seguir é um direito inalienável, pelos motivos ora aduzidos e para refrear atos de intolerância que porventura venham a partir de alguém ou de algum grupo. Mill arremata:

“Os grandes escritores, aos quais o mundo deve a liberdade religiosa que ora possui, declararam a liberdade de consciência como um direito inalienável, e negaram, de forma absoluta, que um ser humano deva dar conta de suas crenças religiosas para os outros.” (p. 39)

Libertatem credere (liberdade para crer) é o estado de uma pessoa livre de qualquer restrição externa ou coação física ou moral para ter algo como verdade, e essa verdade é proveniente de uma regra de fé

A liberdade religiosa num Estado Democrático de Direito não implica um Estado neutro, bem como em um Estado laicista, além de conferir uma boa relação entre a sociedade e o Estado, conforme bem explica o professor Javier Hervada:

“A verdadeira estrutura democrática rejeita a neutralidade secular do Estado; Isso não deve ser constituído – quando tem a forma democrática –, nem de forma neutra ou sob qualquer outra forma de ‘confessionalismo’ cultural, moral ou religioso que impeça a correlação Estado-Sociedade. O que a democracia pede é o Estado que possibilita a liberdade e o Estado aberto à realidade social. E isso é ainda mais necessário em uma sociedade plural, onde é possível que diferentes grupos ideológicos ganhem poder. Algumas pessoas pensam que pluralidade social significa um Estado moldado de acordo com uma espécie de sincretismo intermediário. Mas isso não é democrático, porque a democracia é uma forma de organização do Estado em que a sociedade se desenvolve livre e plenamente; Portanto, o mais democrático é que sua organização permita o acesso ao poder pelas correntes majoritárias, que desenvolvem seu programa governamental: quanto mais ampla for a maioria, respeitando sempre a liberdade das minorias.” (p. 369-370).

Tem-se, assim, que a liberdade religiosa é tanto decorrência necessária da dignidade humana, de onde bebe a seiva vital – posto que o ser humano se expressa complexamente através das manifestações e inclinações de seu espírito na busca pela resposta a questões transcendentes – quanto será vital para a concretização do ideário de cidadania reconhecido também na dimensão de direitos sociais, que devem ser levados em conta no ambiente democrático. Por fim, o pluralismo político somente será resguardado como fundamento de nossa Constituição enquanto houver espaço para o posicionamento baseado nos valores informados pela crença espiritual, que possam contribuir para o bem comum, o bem da cidade.

A liberdade religiosa: matriz de todas as liberdades

Ao entendemos valor e a natureza da liberdade, o próximo passo é demonstrar a importância da liberdade religiosa no sistema de liberdades. O primeiro ponto (muitas vezes esquecido por quem é atividade da liberdade) é que a religião é um instrumento que confere dignidade àquele que crê, é um norte para os seus conflitos, um consolo para os tempos de aflição. O processo de religação do homem para com a divindade implica o recebimento de orientação para lidar com as diferentes situações da vida.

Em situações que envolvem a pobreza, a religião fornece consolo. Não é em vão que, em lutas como as pelo fim do racismo, as comunidades negras se apegaram ao fato de que Deus criou a todos com o mesmo valor, independentemente da cor, e conferiu a todos o preceito da dignidade da pessoa humana. Afirma Martin Luther King Jr.:

“Nós, como cristãos, somos ordenados a viver de maneira diferente. Somos chamados a ser pessoas de convicção e não conformidade... Todo cristão verdadeiro é um cidadão de dois mundos: o mundo do tempo e o mundo da eternidade. Nós nos encontramos na situação paradoxal de ter que estar no mundo, mas não no mundo. Como Paulo disse em outra carta: ‘Somos uma colônia do Céu’. [...] Somos enviados como pioneiros para imbuir um mundo não cristão com os ideais e modos de viver de uma ordem superior e um reino mais nobre.” (tradução nossa).

Martin Luther King Jr. utiliza o pensamento inspirado na religião cristã para instruir seus seguidores e fundamentar sua busca incansável pela promoção da dignidade da pessoa humana:

“Precisamos recuperar algo que os primeiros cristãos tinham. Eles saíram brilhando com um evangelho radical. Eles eram não conformistas no sentido mais verdadeiro da palavra. Eles nunca permitiram que suas ações fossem moldadas pelos padrões mundanos deste mundo. Eles estavam dispostos a sacrificar a fama ou a fortuna ou a própria vida por uma causa que sabiam que estava certa. Eles eram quantitativamente pequenos, mas qualitativamente grandes. Naqueles dias, o cristianismo era poderoso. Parou males bárbaros como infanticídio e pôs fim aos sangrentos shows de gladiadores.”

A religião mostra ao homem que este tem dignidade. A partir do momento em que a pessoa humana tem uma compreensão acertada sobre si mesma e sobre seu valor, sua mente e suas produções voltam-se para efetivar um conjunto de valores que, juntos, montam o conceito de bem comum.

É por tal razão que, a partir da liberdade religiosa, nascem as outras liberdades, e, em sequência, entende-se aquela como a mais importante. Como afirmamos, “a liberdade religiosa é a pedra de toque dos direitos fundamentais e dela decorre a liberdade de consciência e de expressão”. O homem, cada dia mais, está ciente dessa realidade e daquilo que a religião oferece à humanidade. Por isso, a tendência de que o mundo tenha cada vez mais religiosos é um fato comprovado. Timothy J. Keller, pastor americano e treinador de pastores para ministério em cidades globais, aponta em seu livro Deus na era secular: como céticos podem encontrar sentido no cristianismo uma importante pesquisa do Pew Research Center, que foi publicada no Washington Post. A pesquisa aponta que “a religião como um todo passa por um crescimento constante e vigoroso no mundo”. Trata-se de um fato que apenas confirma o conteúdo desta seção: a religião é uma necessidade básica do homem, e, por isso, a tendência é que mais pessoas procurem ser adeptas de uma confissão de fé.

“Embora reconheça que nos Estados Unidos e na Europa a porcentagem de pessoas sem vínculo religioso crescerá por determinado tempo, [...] a religião como um todo passa por um crescimento constante e vigoroso no mundo. Cristãos e muçulmanos comporão um percentual crescente da população mundial, ao passo que a proporção secular encolherá.” (p. 26).

A partir do momento em que a pessoa humana tem uma compreensão acertada sobre si mesma e sobre seu valor, sua mente e suas produções voltam-se para efetivar um conjunto de valores que, juntos, montam o conceito de bem comum

Conforme aponta a reportagem do Washington Post, este fato chegou a surpreender intelectuais que estudam fenômenos sociais. Saram Pulliam Bailey, autora do texto do Post, escreve: “Os sociólogos se precipitaram quando disseram que o crescimento da modernização traria um crescimento de secularização e descrença, disse Goldstone. ‘Não é isso que estamos vendo’, disse ele. ‘As pessoas querem e precisam de religião’” (tradução nossa).

O senso de transcendência é o que mantém a sociedade viva, dando-lhe não apenas uma razão para viver, mas respostas às principais perguntas (primordiais) que o homem faz: quem eu sou? De onde vim e para onde vou? Ontologicamente, é da própria substância do ser humano e se estende para todas as áreas de sua vida. Alister McGrath escreve em Teologia Natural: Uma nova abordagem:

Os seres humanos parecem ter uma forte inclinação a fazer perguntas, a ir além, e não apenas em frente, buscando um eixo vertical de transcendência à medida que prosseguem ao longo do eixo horizontal da existência. Tanto a busca pela boa vida quanto a procura por significado parecem depender de um reconhecimento de uma dimensão transcendente para a existência. Ideais transcendentais, mesmo que irrealizáveis, têm a capacidade de desempenhar um papel decisivo na vida humana, especialmente na conduta moral, no ativismo religioso e na apreciação estética.” (p. 49).

A queda no número de adeptos da antirreligiosidade no período entre 2010-2050 apenas corrobora uma inclinação natural do ser humano. Não apenas pelos méritos que a conexão entre humanidade e religião possui, mas também pela reverberação que a religião traz para os pontos cruciais da população universal, quais sejam, a fixação de senso valorativo e propósito através da cultura, e a inclinação natural para a transcendência, que passa também a moldar a própria experiência civilizacional, conforme explicita McGrath:

“A religião parece ser um aspecto natural e inevitável da vida humana e da cultura, apesar dos experimentos modernistas em engenharia social visando à sua eliminação em determinadas regiões. A onipresença da religião desde as primeiras eras da história da civilização humana até o presente é notável, indicando, entre outras coisas, um interesse duradouro no transcendente [...] e seu potencial impacto sobre a vida e pensamento humano. A religião não apenas desempenhou um papel decisivo na criação da civilização humana, mas também está claro que ela continuará a fazê-lo.” (p. 47-8)

Se pensarmos sobre a existência humana e o sentido da vida como Sartre, o ser humano é o único responsável pela construção de valores que afirmem dignidade e empreguem algum sentido à existência. Afinal, diz ele em O Ser e o Nada:

“A realidade humana é sofredora em seu ser, porque surge no ser como perpetuamente impregnada por uma totalidade que ela é sem poder sê-la, já que, precisamente, não poderia alcançar o em-si sem perder-se como Para-si. A realidade humana, por natureza, é consciência infeliz, sem qualquer possibilidade de superar o estado de infelicidade.” (p. 141)

Já ao pensarmos a vida – e sua dignidade existencial – não como um construto moldado por relações desprovidas de um senso transcendente, mas como um verdadeiro presente, cheio de sentido em si, podemos ver com as lentes de Joseph Ratzinger, que assim reflete em Dios y El Mundo: Creer y vivir en nuestra epoca – una conversación con Peter Seewald:

Se o mundo não fizesse sentido, também não poderíamos criá-lo. Podemos realizar ações que significam algo dentro da estrutura de uma estrutura pragmática, mas nunca dão sentido a uma vida. O significado existe ou não existe. Não pode ser um mero produto nosso. O que produzimos pode nos dar um momento de satisfação, mas não justifica toda a nossa vida, nem lhe dá sentido. Naturalmente, pessoas de todos os tempos e lugares se perguntaram sobre o significado e continuarão a fazê-lo. Você sempre pode encontrar respostas fragmentárias. Mas neles só continuará valendo o que as pessoas não inventam, mas encontram, o que descobrem na criatura humana enquanto tal. E isso pode ajudá-los a se entenderem bem, a viver suas vidas com significado. […] O significado não é um produto humano, mas dado por Deus, deve ser entendido desta forma: o significado é algo que nos sustenta, que precede e transborda nossos próprios pensamentos e descobertas, e só assim tem a capacidade de sustentar nossa vida.” (p. 171)

O ponto importante é poder levar em consideração o ambiente de liberdade para que as ideias floresçam, e que, também no mesmo ambiente, possam as pessoas julgar o que se aproxima do que seja o bom, o belo e o verdadeiro nesta concepção.

Considerações finais

O professor John Finnis explica: “Certamente, existe um bem comum da humanidade, e o centro desse bem comum é a igual dignidade de todas as pessoas humanas e, consequentemente, os direitos humanos naturais antes de todas as convenções” (p. 458, tradução nossa). A partir dessa observação, é possível compreender o significado de dignidade da pessoa humana, e como esse fundamento dialoga e inspira a liberdade religiosa. A ideia de bem comum, segundo Finnis, “consiste no florescimento inclusivo e intrinsecamente desejável dessa comunidade” (p. 459). Trata-se de um reconhecimento da necessidade universal de valoração do ser humano, que anda ao lado do respeito às individualidades: tal fato nos remete à escolha religiosa e à liberdade de expressão, visto que ambas resultam no fornecimento desse pilar, a saber, a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, assinala Thadeu Weber em Ética e Filosofia do Direito: Autonomia e dignidade da pessoa humana, ao analisar a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, de Immanuel Kant:

Por que não posso usar o homem, na minha pessoa, simplesmente como meio, mas tão somente como fim em si mesmo? A resposta é categórica: porque ele tem dignidade. Ele não é uma coisa. As coisas têm um preço e por isso pode-se pôr outra como equivalente. O homem está acima de qualquer preço; ele tem dignidade. Esta é uma qualidade intrínseca da pessoa humana. [...] O que tem fim em si mesmo, isto é, a humanidade na minha pessoa e na pessoa de qualquer um, tem valor íntimo.” (p. 26)

A dignidade da pessoa humana é “o norte da aplicação do Direito em nossa nação, sendo ele um dos fundamentos do Estado Democrático e da República brasileira”. É a luz que revela a diferença entre seres humanos (ent) e coisas (res), e que corrobora a ideia de que o indivíduo constitui um fim em si mesmo, não podendo ser tratado meramente como meio. No mesmo sentido, é a noção que serve como parâmetro para o exercício de outras liberdades. Como afirmamos em nossa obra, “todos os princípios constitucionais devem se confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformarem-se com ela”.

O senso de transcendência é o que mantém a sociedade viva, dando-lhe não apenas uma razão para viver, mas respostas às principais perguntas (primordiais) que o homem faz

Destarte, a dignidade da pessoa humana também é um limitador para os excessos aos quais a ação humana pode declinar. Por isso, nenhuma liberdade é absoluta, nem mesmo a mais importante delas, que é a liberdade religiosa. Qualquer ato que, baseado em uma liberdade fundamental, afrontar a dignidade de alguém perde sua legitimidade e há de ser refreado em nome dessa dignidade. “Sem a dignidade não temos vida humana, voltamos ao status de res”, lembramos.

Em suma, a dignidade da pessoa humana é um axioma – o que o Dicionário da Língua Portuguesa – comentado pelo professor Pasquale define como “princípio evidente, que não precisa ser demonstrado”. Como elemento fundante, amálgama de outros princípios, também serve como substância das liberdades, que, todas e cada uma, lhe são tributárias. O conjunto de informações colhidas nesse artigo tem o objetivo de clarificar o seguinte silogismo: a) a pessoa humana constitui um fim em si mesma, e, dentre outras dimensões, também possui aquela que é litúrgica: procura, por meio de símbolos e ritos, aproximar-se com uma noção de transcendência que lhe atribua dignidade existencial; b) devido a tal fim, nascem os princípios para conduzir a aplicação da Constituição e das leis; c) os princípios se efetivam por meio da centralidade da dignidade da pessoa humana e das liberdades fundamentais, sobretudo a liberdade religiosa, que responde à natureza litúrgica do homem; d) é a essência da pessoa humana a principal razão da liberdade religiosa.

Dicas aos navegantes

A dica que deixamos aos navegantes das liberdades, isto é, aqueles que defendem as liberdades civis fundamentais (ir e vir, expressão, imprensa, econômica, entre outras), é que todas elas apenas existem para proporcionar dignidade aos viajantes nesta aventura que é ser humano. E a ideia de dignidade integral para todos, independentemente de sexo, etnia ou cor nasce na religião, bem como a própria ideia de liberdade: pensar em autonomia individual é lembrar das cartas paulinas, que perfazem mais 50% do Novo Testamento. Pensar em liberdade interior é lembrar do bispo de Hipona, Agostinho, e suas obras O Livre Arbítrio e A Cidade de Deus.  Pensar em liberdade de consciência e liberdade de imprensa em face do Estado e da Igreja é lembrar de Martinho Lutero e da Dieta de Worms. Pensar em liberdade econômica é lembrar de João Calvino, de Althusius e dos calvinistas ingleses, bem como da Escola de Salamanca, desenvolvida por monges.

Dito isto, falar em liberdade sem pensar e defender a liberdade religiosa, a primeira das liberdades, como dizem os norte-americanos, é como falar do calor esquecendo-se do sol.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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