Semana com pouca novidade no campo religioso em meio à pandemia do novo coronavírus. Então, como diria a icônica personagem dos programas de televisão nas manhãs e tardes, a Aracy, “vamos falar de coisa boa”? E não é aquela câmera de fotos bem mais ou menos que ela vendia. Falemos, pois, da gênese do Direito Religioso, e sua relação com o modelo da laicidade brasileira, que é objeto desta nossa coluna semanal.
Um dos primeiros pontos que consideramos ao ministrar aulas sobre a natureza do Direito Religioso é a origem de uma organização religiosa. O primeiro passo não é ter um templo suntuoso – até porque há algo primário que constitui uma igreja: aquilo que está na mente e nos corações dos fiéis, um compromisso que está registrado em vários documentos da fé da Igreja, discernindo qual é o fim último do homem, como escrevemos em nosso livro Direito Religioso:
“Quando sabemos se uma organização realmente é religiosa no sentido constitucional do termo?” Respondi de pronto: “Pergunte aos fiéis. Ninguém pode responder melhor a essa pergunta do que os fiéis daquela determinada religião. Se eles responderem que se reúnem com o ânimo de cultuar uma divindade ou várias e que depositam sua confiança no transcendente, estamos diante de uma organização religiosa.”
Há algo primário que constitui uma igreja: aquilo que está na mente e nos corações dos fiéis
Aqui vale alertar que não defendemos a tese da Igreja orgânica, que despreza a reunião de fiéis no templo sob a justificativa de que “a Igreja é cada um de nós”. A Igreja primitiva valorizava a essência do templo, tendo em vista o caráter pedagógico que a liturgia tem na formação cultural dos membros. Conforme preleciona James W. Smith em Desejando o Reino:
[...] as liturgias [...] modelam e constituem nossa identidade, dando forma aos nossos desejos mais fundamentais e à nossa disposição mais elementar para com o mundo. [...] as liturgias fazem de nós um certo tipo de pessoa, e o que nos define é aquilo que amamos.
Uma coisa não exclui a outra; afinal, a liturgia é formadora de pensamento e influencia nossa cultura. A casa e o templo têm os seus valores: e é por isso que o exercício da fé não se limita exclusivamente a um dos dois: trata-se de algo extensivo e sempre presente, pois ambos fazem parte da “formação do coração e dos desejos”, ainda nas palavras de Smith.
Por isso a igreja primitiva não estava limitada e a igreja de hoje também não deve ficar. Conforme Atos 5,42 e 2,46, templo e casa estavam presentes na rotina dos fiéis, que sabiam fazer uso dos dois como reflexo da antropologia cristã. É exatamente por ser um conjunto de “regras objetivas de prática, crença, fé e conduta” que a igreja é “destinatária da proteção e das garantias estatais do sistema de Estado Laico brasileiro”, como dissemos em nosso livro, e isso inclui o exercício da fé dentro dos lares.
Em tempos de coronavírus, milhares de líderes eclesiásticos conscientes do papel de proteger e preservar a vida suspenderam as atividades da Igreja e incentivaram a realização dos cultos nos lares, para evitar aglomerações e o possível contágio. Nesse sentido, a proteção da liberdade religiosa permanece a mesma, mesmo que os cultos não aconteçam dentro dos templos. Aliás, a dimensão do culto comunitário é apenas uma das várias faces da liberdade religiosa. A liberdade em si é absoluta – jamais relativizada pela caneta de um prefeito emocionado com o repentino poder sobre a vida das pessoas que acha ter – e alguma dimensão sua pode ser diminuída. Mas esta diminuição é, muito antes de uma coerção estatal, um “abrir mão” por parte de quem tem a liberdade com responsabilidade.
É extremamente preocupante vermos o povo silente diante de atrocidades contra as liberdades individuais, conquistas que custaram o sangue de muitas gerações de nossos antepassados. A igreja funciona perfeitamente nas casas, onde nasceu, mas é um exercício de amor e misericórdia, jamais uma obediência subserviente aos desmandos do príncipe, jamais uma relação desigual. No Brasil, meus caros, Estado e Igreja são parceiros, colaboram junto pelo bem comum; e o Estado é obrigado a garantir o pleno funcionamento das liberdades religiosas e a proteção contra quaisquer vozes que a queiram calar: este é o modelo primus inter pares do mundo de laicidade.
A igreja funciona perfeitamente nas casas, onde nasceu, mas é um exercício de amor e misericórdia, jamais uma obediência subserviente aos desmandos do príncipe
Além de agir com responsabilidade, importa que fortaleçamos nossa fé com os instrumentos que Deus nos deu , entre os quais também incluímos a Carta Magna do Brasil. Além de remontar aos primeiros cristãos que cultuavam nos lares, podemos aprender onde nasce o verdadeiro conceito de sentimento religioso, que não habita em um local físico: e aqui compreende-se a natureza da transcendência, que é um dos componentes da cosmovisão cristã e um dos objetivos protegidos pelo constituinte.
Talvez seja esta a maior crítica que deveríamos ouvir de vários setores (estranhamente silentes) da sociedade ante as atitudes despóticas de alguns prefeitos e governadores: não somos crianças. Somos um povo de boa índole, gentil e que sabe o que quer para buscar o seu destino. Cada instituição da sociedade tem a responsabilidade de cuidar dos seus – vide o exemplo acima das igrejas. Mas também empresas, escolas e demais departamentos merecem participar ativamente deste momento.
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