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Adoção da Declaração de Direitos da Virgínia, de Jack Clifton.
Adoção da Declaração de Direitos da Virgínia, de Jack Clifton.| Foto: Reprodução/Domínio público

Os direitos fundamentais são a pedra de toque do constitucionalismo pós-Segunda Guerra e dão o tom de todas as constituições promulgadas posteriormente, pelo menos naqueles países que se dizem democráticos.

No Brasil, vivemos uma grande confusão conceitual em que grupos se digladiam na esfera pública sob o argumento da eficácia dos direitos fundamentais. Para exemplificar, podemos pensar no aborto: quem é favorável tem como argumento os direitos fundamentais da genitora; quem é contrário invoca os mesmos direitos fundamentais da criança no ventre – e, também, da genitora. Mas, afinal de contas, quem tem razão?

Pensando nisso, vamos (à medida que as notícias nos permitam) escrever uma pequena série sobre direitos fundamentais, com a intenção de trazer luzes a tão importante temática. Comecemos pelo começo: as fontes. Evidentemente que muitas são as fontes dos direitos fundamentais. Encontramos, por exemplo, o rei sumério Urukagina desenvolvendo ações legais de combate a opressão de seu povo em Lagash, dispostos no Código de Urukagina, de 2650 a.C. Muitos outros códigos se passaram, inclusive o de Hamurabi, para se chegar às leis sinaíticas: os Dez Mandamentos, entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai, como nos conta o capítulo 20 do livro de Êxodo. No Decálogo encontramos direitos como proteção à vida, à propriedade, à honra e até mesmo o repouso semanal; mas o mais importante ali é que todos os seres humanos são iguais, apenas Deus está acima da pessoa humana. É a primeira vez na história que existe uma lei escrita em que os governados estão no mesmo patamar de igualdade dos governantes.

O Direito Natural decorre da natureza humana, tendo como fontes a razão e a moral. Por ser inerente à natureza humana, o Direito Natural está acima do chamado “direito positivado”

Mil e trezentos anos depois, na plenitude dos tempos, nasce Jesus Cristo, que resume todos os mandamentos sinaíticos no amor a Deus e ao próximo como a si mesmo. Existe algo mais humano?

Outra fonte importante, que possui relação íntima com as anteriores, é o Direito Natural. Depois de alguns séculos em que se tentou suprimi-lo, a partir da Revolução Francesa, ele voltou com força no pós-Segunda Guerra Mundial. Mas o que seria o Direito Natural? Este tem como fonte primária a razão, como diriam os gregos na Antiguidade clássica. E, para tentar entender um pouco melhor sem sermos prolixos, precisamos recorrer ao “Doutor Angélico”: Tomás de Aquino.

Em seu tratado da lei, a parte II do volume II da Suma Teológica, Tomás de Aquino nos traz uma hierarquia das leis. A Lei Eterna, que é a lei de Deus sendo perfeita e eterna, pode ser conhecida pelo homem de duas maneiras: a Lei Divina, manifesta na Bíblia; e a Lei Natural, descoberta pela razão e gravada na natureza humana. A Lei dos Homens deve ter, como objetivo último, a busca pelo bem comum, refletindo assim a Lei Eterna.

A partir de Hugo Grotius temos uma espécie de “laicização do Direito Natural” (na expressão de Manoel Gonçalves Ferreira Filho em Direitos Humanos Fundamentais), no sentido de afastar o fundamento do direito divino do direito natural, resultando em uma teoria dos direitos das gentes no direito internacional. Para Hugo Grotius, os direitos naturais “não são criados e muito menos outorgados pelo legislador. Tais direitos são identificados pela ‘reta razão’ que a eles chega, avaliando a sua ‘conveniência ou a inconveniência’ em face da natureza razoável e sociável do ser humano”.

Ou seja, o Direito Natural decorre da natureza humana, tendo como fontes a razão e a moral. Por ser inerente à natureza humana, o Direito Natural está acima do chamado “direito positivado”; inclusive, se este for contrário ao Direito Natural, perde seu fundamento de eficácia. Daí decorre que o Direito Natural é fonte dos direitos fundamentais, pois existe antes mesmo do Estado, visto que inerente ao homem, sendo prévio e antecedente à própria ideia de Constituição.

Quando compreendemos que o Direito Natural é a fonte primária dos direitos fundamentais, conseguimos entender melhor movimentos históricos jurídico-políticos. Como, por exemplo, a Carta Magna de 1215, outorgada por João sem Terra, que, na verdade, resultou de um pacto entre o rei, os barões e os burgueses. A carta enumera diversos direitos importantes, como o devido processo legal e o contraditório; o direito à gradação da pena conforme o delito; o direito à propriedade; o direito ao habeas corpus. Mais tarde, em 1689, o Bill of Rights confirma os direitos estabelecidos pela Carta Magna e garante a autonomia do Parlamento. Todos esses direitos que guardam total relação com os direitos naturais.

O Direito Natural é fonte dos direitos fundamentais, pois existe antes mesmo do Estado, visto que inerente ao homem, sendo prévio e antecedente à própria ideia de Constituição

Outro documento histórico de cunho jurídico político que possui íntima relação com o Direito Natural é a Declaração de Direitos de Virgínia, de junho de 1776, que já em seu artigo primeiro consagra:

Artigo 1.º – Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança.”

Apenas um mês depois, no mesmo processo político da Declaração de Direitos da Virgínia, nascia a Declaração de Independência dos Estados Unidos, que diz em seu preâmbulo:

Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade.”

Alguma relação com as leis sinaíticas? Deixamos que o leitor pense na resposta.

Mas e a Revolução Francesa e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789? O marquês de La Fayette é tido como o idealizador da Declaração francesa de 1789. Apesar do positivismo francês, percebe-se que os direitos previstos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão são declarados, ou seja, derivam da natureza humana, sendo, portanto, naturais, como observa Manoel Gonçalves Ferreira Filho em sua obra Direitos Humanos Fundamentais. Nem os positivistas e jacobinos franceses puderam ignorar a decorrência natural dos direitos humanos.

O texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem foi unanimidade entre os líderes de todo o globo, pouco importando origem, etnia ou religião, em mais uma demonstração clara de que tais direitos são comuns à humanidade

Por fim, alguns juristas tentarão trazer a Constituição Mexicana de 1917 como a primeira constituição a trazer em seu texto a ideia de direitos sociais (ou seja, de proteção ao trabalhador, tal como repouso remunerado, entre outras proteções). Por outro lado, ela também trouxe a hostilidade em relação ao poder econômico, o nacionalismo exacerbado e a reforma agrária, como ensina o Ferreira Filho. Na verdade, é a Constituição de Weimar que coloca definitivamente no “mundo” dos direitos fundamentais os direitos sociais, como verdadeiros “direitos de exigir”. Tudo isto em razão de uma Alemanha que vivia uma situação gravíssima após a Primeira Grande Guerra, ou seja, dos resultados positivistas de entender o homem sem uma base de valores morais ancorados em valores absolutos, maiores que ele próprio.

Mas é em 10 de dezembro de 1948 que a evolução dos direitos fundamentais encontra seu coroamento na Declaração Universal dos Direitos do Homem, estabelecendo os “direitos às liberdades” e os “direitos sociais”. Jacques Maritain conta, em sua obra O Homem e o Estado, que o texto foi unanimidade entre os líderes de todo o globo, pouco importando origem, etnia ou religião, em mais uma demonstração clara de que tais direitos são comuns à humanidade, anteriores ao Estado e oriundos do Direito Natural.

No segundo texto da série, investigaremos a importância da dignidade da pessoa humana e as classificações dos direitos fundamentais.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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