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Considerar a própria religião melhor ou mais verdadeira que as outras não é preconceito, muito menos racismo.
Considerar a própria religião melhor ou mais verdadeira que as outras não é preconceito, muito menos racismo.| Foto: J F/Pixabay

A natureza humana é, como sabemos, complexa e multifacetada. As diversas religiões abordam este fascinante tema há milênios, e a filosofia também. Afinal, é o homem bom ou mau por natureza? A corrupção do coração é algo intrínseco à condição humana, sendo inata, ou é adquirida por estímulos externos, que, se fossem eliminados, fariam emergir um estado puro e desprovido do que conhecemos como “maldade”?

Neste cenário, uma chaga que assola a humanidade desde tempos imemoriais é o racismo. Sim, tema espinhoso, delicado e muito maquiavelicamente apropriado para construir plataformas políticas das mais diversas, fazendo do termo um conceito tão vago que, em breve, já não mais vai representar o que se quer e deve efetivamente combater: a torpe e distorcida de que alguns seres humanos são mais “gente” do que outros, baseados na cor da pele, na procedência étnica, ou outra característica marcante de um determinado povo.

Neste contexto, e, aproveitando as terríveis consequências sociais do evidente racismo vivido por séculos no Brasil, inclusive sendo o grande justificador das teorias que permitiam a escravidão (abolida pela Princesa Isabel não por pressão externa, mas em absoluto compasso com sua consciência cristã, e que, conscientemente, sabia, custar-lhe-ia o próprio trono), grupos políticos têm construído nomenclaturas e teorias absolutamente incompatíveis entre categorias distintas: o tal do “racismo religioso”.

Entender que a pessoa religiosa de grupo diverso é “menos gente” ou “menos digna” do que o agressor é crime. Mas hierarquizar ou valorar religiões diferentes em graus de “verdadeira” ou “falsa”, “santa” ou “pecaminosa”, “de Deus” ou “do diabo” é legítimo

Esta expressão tem circulado cada vez mais nas redes, e foi inclusive objeto de texto prévio nosso aqui na coluna, quando da repercussão de um “brother” do BBB que se viu discriminado por colegas em relação à sua religião, o Ifá. Já é, provavelmente, o segundo termo mais utilizado em relação ao racismo (como falácia), só perdendo para o tal “racismo estrutural”, um conceito absolutamente impessoal, que tira a responsabilidade de cada um e a coloca em “estruturas”, essa abstração que torna impossível o educar e chamar a responder pelos atos, porque mostra sermos todos “vítimas” das instituições que perpetuam e retroalimentam o racismo. Por uma “coincidência”, essas instituições são as mesmas que também se opõem à revolução socialista, entre elas, a propriedade privada, a família e a igreja.

Voltando ao tema, muito se fala de “racismo religioso”, e autoridades – em especial, o Ministério dos Direitos Humanos e o Ministério da Igualdade Racial – têm buscado, em sua narrativa, combatê-lo. Mas será que existe mesmo o “racismo religioso” na legislação brasileira?

A Lei 14.532/2023 fez a equiparação da injúria racial ao crime de racismo. Na prática, trouxe mais para perto de uma aplicação prática o “racismo” da Lei 7.716/1989, que, mesmo prevendo a figura, tem uma difícil aplicabilidade. Enquanto o racismo da lei de 1989 se enxerga em atos difusos lançados contra a etnia, cor, procedência (depois expandido para religião e, hoje, até para orientação sexual ou identidade de gênero), a injúria torna crime atos discriminatórios pessoais, diretos.

Mudanças muito importantes foram trazidas com esta equiparação, e para melhor, justamente porque dão mais seriedade a estes terríveis crimes contra a honra praticados de forma indiscriminada por aí. Uma delas foi a imprescritibilidade e o fato de não ser possível liberação mediante fiança. Ou seja, há de se pensar duas vezes antes de discriminar outra pessoa. E, obviamente, isto levanta também a necessária posição do termo “discriminação”.

Para a caracterização da atitude discriminatória que implica em injúria racial, há a necessidade de que o ato – sempre doloso – queira infligir dor moral e humilhação à vítima. A conduta lesiva é a mesma verificada nos crimes de ódio, onde são três as etapas para se chegar à conclusão do cometimento delitivo: a) primeiro, uma fala que posicione os diferentes grupos (fase cognitiva); b) segundo, um juízo valorativo e hierárquico entre os grupos (fase valorativa); c) e terceiro, a incitação à limitação ou negação de direitos justificada por sua visão deturpada a partir da primeira e segunda fase.

No caso da injúria religiosa, trata-se de entender que a pessoa religiosa de grupo diverso é “menos gente” ou “menos digna” do que o agressor, e isto é crime. É algo diferente de hierarquizar ou valorar religiões diferentes em graus de “verdadeira” ou “falsa”, “santa” ou “pecaminosa”, “de Deus” ou “do diabo”. Valorar a fé e ter a crença própria como verdade absoluta é nuclear do direito fundamental à crença; o proselitismo, ensino, pregação e apologética são nucleares do direito fundamental à religião. Ou seja, põem-se as crenças na mesa, e, com liberdade, vasculha-se pela verdade. Mas jamais ataque-se a dignidade humana da pessoa que escolhe esta ou aquela religião. Aqui os pingos estão nos is.

Querer forçar a barra com “racismo religioso” faz mal para as duas categorias. Para o racismo, porque diminui esta luta fundamental pela igual dignidade de todas as pessoas. E para a religião, porque a reduz a uma mera manifestação cultural

Este é o espírito da lei da injúria racial equiparada ao racismo, também na dimensão religiosa. Porém, diversas vozes querem sempre opor grupos, criar um eterno “nós contra eles” que não faz bem a ninguém. A lei fala, em sua ementa, em “racismo religioso”. Porém, no dispositivo, não há nenhuma remissão ao tema, mas apenas “raça, cor, etnia ou procedência nacional” (artigo 2.º-A). E aumenta a pena se a discriminação ocorrer no contexto de “atividades esportivas, religiosas, artísticas ou culturais”.

Querer forçar a barra com “racismo religioso” faz mal para as duas categorias. Para o racismo, porque diminui esta luta fundamental pela igual dignidade de todas as pessoas, especialmente nesta terra abençoada do Brasil, onde a miscigenação é o nosso grande legado às demais nações. E para a religião, porque a reduz a uma mera manifestação cultural que, teoricamente, seria identificada com determinada etnia ou grupo nacional. Temos de aprender a respeitar os direitos fundamentais e manter cada categoria em seu lugar, pelo bem da sociedade, do Estado Democrático de Direito, e das futuras gerações que aqui seguirão o bom combate.

Conteúdo editado por:Marcio Antonio Campos
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