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Crônicas de um Estado laico

Crônicas de um Estado laico

Budismo

Reencarnar? Só com autorização do governo!

reencarnação dalai lama
O Dalai Lama, líder espiritual do budismo tibetano, em foto de 2008. (Foto: Christophe Petit Tesson/EFE/EPA)

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Em tempos de confusão entre fé e poder, a China nos oferece mais um exemplo de tudo o que a laicidade não deve ser. Recentemente, o governo chinês reafirmou que o processo de reencarnação do Dalai Lama – sim, reencarnação – deve “obedecer às leis do Estado”. Em outras palavras, o regime comunista pretende ditar não apenas o futuro político do Tibete, mas também o destino espiritual de seu principal líder religioso. Permitir que o Estado regule a sucessão espiritual de uma fé é o mesmo que aceitar que a burocracia determine o que Deus pode ou não fazer. É o totalitarismo aplicado ao invisível.

No Brasil, apesar de todas as tensões, temos um modelo constitucional de laicidade que caminha em outra direção. A laicidade colaborativa reconhece que o Estado é separado das religiões, mas não é seu adversário. Ele não impõe silêncio às igrejas, nem interfere em seus dogmas, liturgias ou crenças. Nossa Constituição entende que a fé não é um capricho individual, mas expressão legítima da dignidade da pessoa humana. Religião não é assunto privado. É realidade pública – e protegida.

Toda civilização livre nasce de um pacto implícito: o Estado não legisla sobre o sagrado, e o sagrado não tenta usurpar o poder do Estado

Não por acaso, imaginar por aqui que o governo teria algo a dizer sobre a escolha de um papa, o chamado de um pastor, a sucessão de um babalorixá ou – por que não? – a reencarnação de um líder espiritual seria uma ideia recebida como piada ou delírio autoritário. No entanto, quando olhamos para modelos de Estado como o chinês, percebemos que esse tipo de interferência é tudo menos uma caricatura. É projeto de poder, é controle total da subjetividade, é subjugação da consciência humana.

O que está em jogo, no fundo, é a pretensão de certos Estados modernos de se colocarem no lugar de Deus. A religião, em sua essência, afirma a existência de uma instância superior à autoridade do poder político. E é justamente essa transcendência que incomoda os regimes totalitários. Eles não temem a religião apenas porque ela mobiliza pessoas, mas porque ela nega ao Estado o monopólio do sentido. O tirano não tolera concorrência – nem mesmo metafísica.

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A lição que precisamos aprender é que a liberdade religiosa não se protege apenas com declarações constitucionais, mas com vigilância cultural. A teologia pode parecer inofensiva aos olhos dos céticos, mas é ela que delimita, silenciosamente, onde termina a mão do Estado. Quando o Estado começa a se interessar pelo destino eterno das almas, o cidadão precisa se preocupar com o destino imediato de sua liberdade. Não é coincidência que as piores ditaduras do século 20 tenham tentado domesticar ou eliminar a religião.

Por fim, a história nos ensina que toda civilização livre nasce de um pacto implícito: o Estado não legisla sobre o sagrado, e o sagrado não tenta usurpar o poder do Estado. Essa tensão – que exige maturidade institucional, compromisso democrático e respeito mútuo – é o que chamamos de laicidade. Quando bem compreendida, ela é menos uma separação hostil e mais um equilíbrio generoso. E é justamente por isso que, no Brasil, a reencarnação de um líder espiritual continuará sendo um mistério da fé – e não um processo administrativo.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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