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Deltan Dallagnol

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Justiça, política e fé

Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe” 

(Foto: EFE/ Andre Borges)

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Nesta terça-feira, a Polícia Federal (PF) deflagrou a operação “Contragolpe”, em que militares e antigos auxiliares do ex-presidente Jair Bolsonaro foram presos e sofreram busca e apreensão por, supostamente, terem planejado assassinar, logo após as eleições, o então presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, o então vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, com o objetivo de dar um golpe de Estado e, assim, garantir a permanência de Bolsonaro no poder. 

A análise da operação ressalta uma série de problemas, ilegalidades e abusos na condução das investigações, divulgadas de forma acrítica pela grande imprensa, que fecha os olhos quer por ter um viés de esquerda, quer pelos rios de dinheiro que recebe em patrocínio, quer para manter suas privilegiadas fontes supremas. Destacarei seis problemas. Antes disso: os fatos relatados são graves, condenáveis e merecem, sim, ser investigados criminalmente, mas não da forma como este caso e outros semelhantes têm sido conduzidos no STF pelo ministro Alexandre de Moraes, em uma atuação marcada por autoritarismo e abusos. O império da lei deve prevalecer, seja para punir quem eventualmente tenha cometido crimes, seja para garantir os direitos fundamentais e o devido processo legal.  

Além disso, eventuais planos de assassinatos devem ser duramente repudiados. Em nenhuma democracia do mundo é aceitável que conflitos políticos sejam resolvidos por meio da força ou da violência. Pelo contrário, a proteção aos direitos fundamentais, dentre eles a vida, está na base da democracia. Além disso, como cristão, acredito na santidade da vida (“não matarás”, Êxodo 20:13) e que devemos amar não só nossos amigos, mas também nossos inimigos e orar por eles, mesmo que nos persigam (Mateus 5:44). Amar o próximo significa ter comportamentos de respeito e consideração com as pessoas, ainda que os atos ou comportamentos delas possam ser duramente criticados. 

Vamos aos seis problemas centrais das investigações, com base nas informações que são públicas até este momento.

1) Moraes é vítima, e por isso, não é imparcial para julgar o caso 

O ministro relator da operação “Contragolpe”, Alexandre de Moraes, é apontado na investigação como uma das supostas vítimas do plano de sequestro e homicídio. Na decisão, Moraes cita ele mesmo pelo menos 44 vezes, o que mostra o quão absurda é a situação e como ele não tem a imparcialidade necessária para julgar o caso. Há um abuso e uma ilegalidade claros aqui, já que ninguém pode ser juiz de seu próprio caso em uma democracia. A atuação de Moraes neste caso e em outros em que também é vítima viola séculos de doutrina jurídica a respeito da imparcialidade judicial.

2) O STF não tem competência, pois não há investigados com foro privilegiado 

Nenhum dos investigados na operação “Contragolpe” tem foro privilegiado, o que, aliás, tem sido a regra na maioria dos procedimentos criminais mais recentes em curso no Supremo, como o inquérito das fake news, das milícias digitais e os julgamentos dos réus do 8 de janeiro. A Constituição autoriza o STF a julgar processos criminais apenas de réus com foro, e não existe qualquer previsão legal de foro por prerrogativa da vítima ou autorização para que o STF julgue crimes contra o Estado Democrático de Direito. Todos esses casos deveriam ser enviados a um juiz de 1ª instância, mas Moraes agarra-se a eles com uma voracidade insaciável. Isso também viola o princípio do juiz natural, já que nenhum dos investigados está sendo julgado pela autoridade competente.

3) Não há fundamentos para a prisão preventiva 

Hoje, o Código de Processo Penal exige que “a decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.” Contudo, as prisões decretadas na operação não estão embasadas em fatos novos ou contemporâneos. Os supostos planos de assassinato de autoridades seriam executados no dia 15 de dezembro de 2022, segundo o relatório da PF - há quase dois anos. Aliás tudo indica que os planos foram abandonados e nada indica que exista um perigo presente.  

Isso, por si só, revela que a prisão preventiva dos investigados foi ilegal. A decisão do ministro Alexandre de Moraes não foi capaz nem de convencer advogados notoriamente garantistas da esquerda progressista da necessidade da prisão preventiva, como alguns deles escreveram na rede social X. Se um juiz de 1ª instância mandasse prender um alvo dessa notoriedade sem observar a lei, a decisão não só seria reformada em 2ª instância por meio de um habeas corpus, como o juiz seria pendurado pelo pescoço pela Corregedoria do seu Tribunal e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

4) Golpe de Estado: a lei não pune atos preparatórios 

A lei penal brasileira prevê que um crime se desenvolve em dois momentos: a fase interna, que tem duas etapas, e a externa, que tem outras duas. Na fase interna, as etapas são a de cogitação, em que o agente imagina o crime, e a de preparação, em que o agente se prepara para cometer o crime, por exemplo, organizando quais armas ou venenos irá usar para neutralizar os alvos. Em regra, as duas fases são impuníveis, isto é, não são crime, exceto nos casos em que a preparação é prevista em lei como crime autônomo - por exemplo, se houvesse porte ilegal de arma de fogo. Na fase externa, as etapas da execução e da consumação são puníveis: na primeira, o agente tentou consumar o crime; na segunda, alcançou o resultado pretendido, de modo que deve ser punido. 

As provas apresentadas pela própria PF, pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e pelo ministro Alexandre de Moraes apontam que, em relação ao crime de tentativa de golpe de Estado, os suspeitos cogitaram e planejaram praticar os crimes. Contudo, não há atos executórios, que são os puníveis. De fato, a decisão cita, como atos preparatórios, a elaboração da chamada “minuta de golpe”, a divulgação de desinformação e “fake news” para desacreditar o processo eleitoral e as reuniões ministeriais em que o plano foi discutido, mas nada disso é punível pela nossa lei. 

Ainda que se cogitasse que em algum momento foi praticado algum ato de execução, não há dúvidas de que houve desistência voluntária da prática do crime pelos envolvidos. Nossa lei penal trata assim a desistência voluntária: “O agente que, voluntariamente, desiste de prosseguir na execução ou impede que o resultado se produza, só responde pelos atos já praticados.” Nesse caso da operação contragolpe, os atos praticados pelos militares não são por si só crimes. Assim, em princípio, não há comportamento punível criminalmente.  

Além disso, mensagens juntadas na própria decisão indicam que Bolsonaro não havia autorizado o plano de assassinato e golpe de Estado, o que é, inclusive, motivo de frustração e raiva entre os envolvidos. Na página 44 da decisão de Moraes, consta o seguinte:  

“Na parte final do mês de dezembro de 2022, os áudios demonstram que MARIO FERNANDES estava frustrado com as Forças Armadas, que estariam aguardando uma decisão política para atuar. Em dado momento de mensagem encaminhada para o Coronel REGINALDO VIEIRA DE ABREU, o general profere: ‘Cara, porra, o presidente tem que decidir e assinar esta merda, porra’. Na mensagem subsequente, REGINALDO VIEIRA DE ABREU diz: ‘Kid Preto, cinco não querem, três querem muito e os outros, zona de conforto. É isso. Infelizmente’. Em sequência, lamenta o fato de a decisão do golpe por parte do Alto Comando depender de uma atuação colegiada unânime.” 

Após essa troca de mensagens, os envolvidos abandonaram o plano de assassinato e golpe, caracterizando-se, portanto, a desistência voluntária que impede qualquer tipo de punição.

5) Houve tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito? 

Os militares envolvidos no plano de sequestro e assassinato teriam monitorado os passos do ministro Alexandre de Moraes, visando sequestrá-lo no dia 15 de dezembro de 2022 e, posteriormente, executá-lo. Segundo a decisão de Moraes, o crime não teria se consumado porque o ministro não utilizou a rota esperada pelos investigados. Quando a execução de um crime começa e só não se consuma por circunstâncias alheias à vontade dos criminosos, a lei determina que existe um crime tentado, sujeito a punição. É isso que Moraes considera que aconteceu em relação ao crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (EDD). Além disso, para ele, não se trataria de uma simples tentativa de homicídio, porque o sequestro e a execução de um ministro do STF restringiriam o exercício do Poder Judiciário. 

Essa interpretação só prevalece se o enquadramento dado aos fatos pelo STF for de que o sequestro e a execução de Moraes constituem fatos autônomos e independentes do plano de golpe e, assim, que não dependeriam da aprovação de Bolsonaro. Isso porque, se o assassinato de Moraes fizesse parte do plano de golpe e dependesse da aprovação de Bolsonaro, já sabemos que a aprovação não aconteceu e, por isso, os crimes não passaram da fase impunível da preparação. Quando muito, houve desistência voluntária, também não punível. Por outro lado, caso se entenda que o assassinato de Moraes era um objetivo autônomo, a possibilidade de punir os atos praticados depende, mais uma vez, de existirem atos executórios e não meramente preparatórios.  

Nesse caso, é preciso aprofundar a discussão sobre o que distingue atos preparatórios de atos executórios, isto é, em que momento do caminho do crime (“iter criminis”) se passa da fase da preparação para a execução. Há duas teorias principais que buscam definir isso: a teoria objetivo-individual, que é pouco adotada em nossos tribunais, e a teoria objetivo-formal. Resumidamente, a teoria objetivo-formal entende que o crime só começa a ocorrer, ou seja, os atos executórios só passam a existir, quando o criminoso começa a realizar o comportamento descrito na lei como crime.  

Vejamos como a lei define o crime de tentativa de abolição violenta do EDD: “Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Esse é um crime que só existe quando é praticado pela conjugação de dois métodos: 1) violência ou grave ameaça; e 2) impedimento ou restrição do exercício dos poderes constitucionais. Como nenhum desses métodos começou a ser executado pelos militares, não há como falar de atos executórios ou tentativa de crime, segundo a teoria objetivo-formal, que é a mais usada por nossos tribunais.  

A outra teoria é a objetivo-individual. Ela considera que há atos executórios e, portanto, pode haver tentativa punível de um crime, quando o autor do crime realiza o último ato antes do comportamento criminoso descrito na lei penal, ou seja, quando o criminoso pratica o ato imediatamente anterior àquele descrito na lei criminal como crime, segundo o que imaginou como seu plano de ação. Assim, ficar amoitado aguardando a vítima seria uma tentativa de homicídio punível, segundo essa teoria.   

Por isso, se o sequestro e a execução de Moraes forem considerados um plano independente, e aplicada a teoria objetiva individual, a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito poderia estar caracterizada, já que os militares fizeram todos os atos preparatórios possíveis, sendo frustrados apenas por razões alheias à sua vontade. No entanto, se o sequestro e a execução de Moraes forem vistos como parte de um plano maior, cujo objetivo final seria o golpe de Estado, a desistência voluntária dos envolvidos, ao constatarem a falta de apoio de Bolsonaro e das Forças Armadas, descaracterizaria a tentativa e, portanto, não haveria crime punível. 

E por que falo que “poderia estar caracterizada” a tentativa de abolição do EDD? Porque, dissociada do crime de golpe de Estado, é questionável que o homicídio de uma autoridade, por mais alta que seja, possa configurar um crime de abolição do EDD. Afinal de contas, nenhuma autoridade é o Estado e há uma cadeia de sucessão no poder para que não haja vácuos. Se o plano era de matar um ministro, sem realizar um golpe, faria mais sentido a punição da tentativa de homicídio. Isso, é claro, caso se comprove que os militares de fato prepararam a emboscada. 

Agora a questão final é: pode um juiz que é vítima decidir qual é a teoria aplicável ou como enquadrar o fato? Alguém acredita que haverá uma mínima chance de isenção para definir essas questões?

6) Moraes cita crimes que não podem ser imputados aos investigados 

O ministro Alexandre de Moraes também cita os crimes de associação criminosa e organização criminosa. Contudo, esses crimes são mutuamente excludentes e não podem ser aplicados simultaneamente ao mesmo réu: ou é um, ou é outro. Além disso, as provas apresentadas não são suficientes para comprovar a existência de uma organização criminosa, que exige estabilidade e permanência no tempo. Apesar de haver uma clara divisão de tarefas e hierarquia entre os investigados, isso não é suficiente para configurar o crime de organização criminosa. 

Moraes ainda menciona o crime de peculato de uso, mas esse comportamento não é crime no Brasil salvo quando praticado por prefeitos. Como não há prefeitos envolvidos no caso, essa imputação é absolutamente incabível. É difícil de entender por que foi feito um enquadramento que não tem qualquer relação com o caso. Isso reforça a leitura de que não haverá justiça para os suspeitos, mas a mão pesada retaliatória do STF.

Conclusão  

Feita essa análise jurídica, resta questionar: de que vale uma análise “jurídica”? Tudo aponta para um julgamento político e vingativo, como aconteceu com Daniel Silveira, com os réus do 8 de janeiro e aparentemente acontecerá com Bolsonaro.  

Basta ver que o ministro Alexandre de Moraes, relator do caso, apareceu na imprensa na semana passada tecendo comentários de teor político sobre as explosões em Brasília causadas por Tiu França, conectando o caso ao 8 de janeiro e aos inquéritos que investigam Bolsonaro, mesmo sem provas dessa relação. Ele fez ainda proselitismo político em defesa da regulamentação das redes sociais e contra a anistia dos réus do 8 de janeiro. O ministro atua mais como político do que como juiz. Além disso, atuar num julgamento quando está impedido ou suspeito por ser vítima do crime caracteriza crime de responsabilidade, mas o Direito pouco importa. A vontade suprema está acima da lei. 

O ministro Gilmar Mendes, colega de Moraes no STF, também antecipou seu julgamento em entrevista à GloboNews, afirmando que não se tratava de um plano de mera cogitação, mas de “execução”. Antecipar julgamentos é outra conduta proibida para juízes, mas, como disse, isso pouco importa quando o STF se coloca reiteradamente acima da lei. Para a corte, a lei é para os outros. Esse tipo de conduta reforça a percepção de que o STF já possui a condenação de Bolsonaro e dos demais réus pronta, faltando apenas a formalização. Um julgamento conduzido nessas condições reflete mais uma ditadura do que uma democracia. No final, é o STF quem está destruindo a democracia, tudo sob o pretexto de protegê-la de ameaças que não se concretizaram.

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