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Supremo Tribunal Federal: o problema do Brasil
| Foto: STF/Nelson Jr

“Também envolve uma luta da memória contra o esquecimento, e a gente passa a borracha muito rapidamente nestes fatos. Muitos dos personagens que hoje estão aqui, de todos os quadrantes políticos, só estão porque o Supremo enfrentou a Lava Jato. Do contrário eles não estariam aqui, inclusive o presidente da República. Portanto, é preciso compreender que papel o tribunal jogou. Respondendo à pergunta se o Supremo cometeu erros ou acertos, o Supremo mais acertou do que errou. E o Brasil muito deve ao Supremo.”

Essas foram as palavras do ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal, em vídeo que explodiu nas redes sociais no último sábado (25). O vídeo é de um mês atrás, mas viralizou agora em razão do embate acalorado que ocorreu entre o STF e o Senado após a aprovação, no último dia 22, da PEC 8/2021, que limita as decisões monocráticas de ministros do STF.

A PEC foi aprovada por 52 votos a 18 em dois turnos no plenário do Senado, como manda a Constituição. Ela prevê resumidamente que juízes e ministros dos tribunais superiores não poderão sozinhos suspender leis aprovadas por todo o Congresso e sancionadas pelo presidente. A proposta é muito razoável e alinhada com o princípio da colegialidade previsto no artigo 97 da Constituição para esse tipo de decisão.

A reação do Supremo à aprovação da PEC foi rápida e disparatada: no mesmo dia, uma jornalista da Globo News anunciou nas redes sociais que os ministros do STF viram o voto favorável do senador Jaques Wagner (PT/BA) como “traição rasteira” e deram um ultimato ao governo Lula: “Ou o Jaques Wagner sai, ou não tem mais papo do STF com o Planalto e o governo”.

Durante todo o dia seguinte, na quinta-feira (23), assistimos com incredulidade a comentários de teor semelhante de vários jornalistas. A mesma jornalista da Globo News revelou, com a mesma naturalidade com que deu a primeira notícia, que o ministro Gilmar Mendes teria ligado para o senador Jaques Wagner e tido com ele uma conversa duríssima, em que teria dito: “ou o senhor é um gênio ou é um idiota”. Outra jornalista, também da Globo News, afirmou que ministros do STF disseram que “acabou a lua de mel entre Supremo e o Planalto”. Mais uma jornalista, também da Globo News, publicou que ministros do Supremo relembraram ao governo que Lula só voltou ao poder após decisões do STF.

As supostas falas dos ministros do Supremo reproduzidas pela imprensa, se verdadeiras, deveriam causar um escândalo em qualquer país democrático e civilizado, por três razões. Primeiro, indicam que ministros do Supremo perderam qualquer vergonha de serem expostos por jornalistas fazendo algo que jamais deveriam fazer: política partidária, elegendo um presidente. É difícil entender diferente, porque se as decisões que favoreceram Lula tivessem sido emitidas por questão de justiça, de cumprimento puro e simples do papel do tribunal, não faria sentido a Corte estar “cobrando a conta” como fez.

Em segundo lugar, o fato de ministros do STF classificarem o voto de Wagner pela aprovação da PEC como “traição rasteira” é extremamente preocupante. Para que haja uma traição, é necessário primeiro existir algum tipo de compromisso, acordo ou promessa de fidelidade entre as partes. Havia então algum tipo de acordo ou compromisso entre o STF e o Planalto? Se sim, qual é esse compromisso e quais os seus termos? Quem o fez? O acordo tem direcionado julgamentos do tribunal? Um acordo como esse certamente não é republicano, já que foi feito às escuras, nos porões dos palácios de Brasília e sem nenhuma transparência.

... indicam que ministros do Supremo perderam qualquer vergonha de serem expostos por jornalistas fazendo algo que jamais deveriam fazer: política partidária.

Em terceiro lugar, se havia um acordo e ele foi quebrado por meio de uma traição, isso quer dizer que o STF, que antes estaria decidindo de maneira favorável ao governo, agora vai começar a decidir de modo contrário, como forma de retaliação e vingança pela quebra dos compromissos assumidos? Se a informação for verdadeira, isso coloca em xeque todas as decisões tomadas pelo Supremo nos últimos anos, porque restaria demonstrado que o STF decide não com base em fatos, provas ou na Constituição e nas leis, mas com base em acordos de bastidores com políticos, em que são trocadas vantagens e favores, numa subversão total do papel institucional da mais alta corte do país.

Mas os problemas não ficaram apenas nas falas das jornalistas, que serviram de garotas de recado para certos ministros do Supremo. Os próprios ministros, com destaque para Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, colocaram a boca no trombone na quinta-feira e se manifestaram de maneira histérica, soberba e desequilibrada sobre a aprovação da PEC, desnudando um tribunal totalmente descontrolado e fora de sintonia com suas atribuições constitucionais. Gilmar Mendes, num surto de clareza e compreensão, tentou ironizar: “Agora se descobre que o grande problema do Brasil é o Supremo Tribunal Federal. Que a grande ameaça à democracia é o Supremo Tribunal Federal.”

Bingo, ministro Gilmar! Como é que o ministro que declarou que os políticos corruptos seguem no poder graças ao STF não percebeu antes a ameaça que o tribunal se tornou para a democracia? Os alvos do STF foram se expandindo dos agentes da Lava Jato para a direita e os conservadores, perseguidos em discursos, decisões e investigações. E são justamente falas absurdas como as de Gilmar e de seus colegas, ditas pela boca de jornalistas ou pela boca dos próprios ministros, que colocam em risco o Estado Democrático de Direito. 

Como esquecer a notícia, dada apenas alguns dias atrás também por jornalista da Globo News, de que ministros do Supremo ameaçaram processar a PGR por prevaricação se os procuradores não denunciarem o ex-presidente Jair Bolsonaro por crimes que ainda nem foram comprovados? Como ignorar a ameaça de “fim de lua de mel” com o governo caso Jaques Wagner não fosse destituído da liderança do governo no Senado? Esse tem sido, recentemente, o modus operandi dos ministros do Supremo que se comportam como verdadeiros donos do poder: ou as instituições fazem o que os ministros querem ou sofrem as consequências. 

A confissão de que o Supremo elegeu Lula por si só deveria gerar uma investigação, mas nada acontece. Enquanto Gilmar fala de “bons serviços prestados por esta Suprema Corte”, o que constatamos na verdade foi a anulação das condenações e processos de Lula, o fim da prisão em segunda instância, maior trunfo de todos os corruptos do Brasil, os inquéritos ilegais das fake news e dos atos antidemocráticos e o linchamento dos réus do 8 de janeiro, que estão sendo esmagados feito insetos pelo STF. Já temos até mortes na conta dos abusos do Supremo, como aconteceu no caso do Clezão. Ah, tem também, é claro, a manutenção do poder dos políticos cuja corrupção foi revelada pela Lava Jato.

Se os ministros aplicassem a lei pura e simplesmente, doesse a quem doesse, não haveria acordos, traições, lua de mel e nem chantagens e ameaças públicas dos ministros às instituições. Eles nem teriam poder para isso, porque seguiriam apenas a lei. O poder estaria na lei, não neles. Os ministros que mais têm poder são aqueles que mais se dispõe a ultrapassar as linhas da lei para favorecer amigos e perseguir inimigos. Assim, os discursos dos ministros, em relação ao Senado, só tem relevância porque o STF, em vez de ser um tribunal de juristas que fazem justiça com base na Constituição e nas leis, se tornou um conselho de políticos com poder judicial. 

Uma pesquisa Genial/Quaest da semana passada mostrou que quase 70% dos brasileiros apoiam a PEC que limita as decisões monocráticas do STF. Além disso, no momento em que escrevo esse artigo, a pressão popular nas redes sociais e nas ruas alcançou um feito inédito: já foram alcançadas as 171 necessárias para dar início à CPI do abuso de autoridade do STF e do TSE, que quer colocar um freio no autoritarismo, nos abusos e nas ilegalidades praticados por nossos juízes supremos. Ao mesmo tempo, mais de 345 mil pessoas já assinaram o abaixo-assinado contra a indicação de Flávio Dino para o STF

Ainda que involuntariamente, o ministro Gilmar Mendes acertou nisto: o Supremo se tornou um problema no Brasil. Ao contrário do que disse o ministro, porém, não é o Brasil que deve muito ao Supremo. É o Supremo e seus ministros que devem tudo ao Brasil, inclusive o seu poder e legitimidade. Como ministros não são eleitos, seu poder e legitimidade decorrem da obediência à Constituição e às leis. Ao agir politicamente, ao ultrapassar todas as linhas e limites, os ministros usurpam poderes que exercitam de fato, mas não têm por direito. E agora o povo, de quem emana todo o poder, quer seu poder de volta.

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