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Dias atrás publiquei aqui uma entrevista com Marcelo Sandmann. E hoje aproveito para publicar um poema dele de que gosto muito. É uma mistura de temas ousados mesmo para um poeta moderno (é altamente erótico) com um linguajar e uma forma totalmente clássicos.

É bem longo, mas acho que vale a pena ver. Pelo menos para ter uma ideia de como é possível brincar com formas barrocas ou antigas em dias atuais.

Mas há bem mais do que isso. O poema é tremendamente engraçado. Com direito a rir de si mesmo, principalmente, tirando sarro de rimas mais forçadas, ou de acentos colocados à força.

Coisa de gente que sabe o que faz. E faz com grande estilo.

PATO AO TUCUPI

(uma breve digressão herói-cômica)

“Well, she was just seventeen,
You know what I mean”

(“I saw her standing there” – Lennon & McCartney)

“A soma dos quadrados dos catetos
É igual ao quadrado da hipotenusa”.
Assim foi me dizendo, em tom faceto,
Enquanto desabotoava a blusa.
Eu, de natural um tanto obsoleto,
Com medo de encarar ali Medusa,
Os olhos para o teto desviei.
Mas em vão, que um espelho vislumbrei!

Ela, que rubor algum maculava,
Fitando em minhas faces forte pejo,
Já larga gargalhada desatava,
Finda a qual, sapecou-me honesto beijo.
Se do amplexo fatal eu me esquivava,
Nas gingas imitando o caranguejo,
Mais e mais ela a mim arremetia,
Decidida a pôr fim à carestia.

Como leoa esfaimada que deixa
Seus cachorrinhos todo um dia ao léu;
Léguas e léguas percorre, sem queixa,
Sob sol rigoroso no ancho do céu;
Té que manada cerque, que desleixa
Tenra rês em meio ao grosso escarcéu;
Da pobre no dorso as garras cravando
E na garganta as presas incrustando:

Tal e qual ela ali me acarinhou.
Ou das vodcas com limão que libamos,
Que Diônisus Polaco prostrou;
Ou do vidro de rollmops que emborcamos,
Quitute que Tiestes desdenhou;
Sobre estar eu há muito entrado em anos:
Quanto mais junto a mim já se inclinara,
Tanto mais do escrutínio eu declinara.

Canta-me a cólera, ó Musa, daquela
Pequena, dir-se-ia vera Circe,
Que ao artelho premia jóia bela,
À língua perfurava fero pierci’,
Tatuada do cachaço às canelas
(Quem pudera dali, então, partir-se?),
Logo a mim metamorfo me querendo
Em pato ao tucupi, ó caso horrendo!

“Ora sus!”, trovejou, a cavaleiro.
Mas por mais que eu vibrasse na rabeca,
O som saía cavo e não brejeiro.
Levar prevendo eu cá uma fubeca
E a fama conquistar de potoqueiro,
Palpar-lhe ofereci por ceca e meca,
E quando já adentrava Santarém:
Ai-meu-Jesus-José-Maria-amém!

(Em lendo, acaso, o derradeiro dístico,
Julgar, leitor, que um tanto já me excedo,
Eu juro: meu intuito é cabalístico,
Que prezo de ser sublimado aedo.
Pesar pois do pendor folhetinístico,
Deveras, qu’ele-o-há, isso eu concedo,
Matéria assaz subida e meritória
Subjaz lá nos desvãos da nossa história.)

No couro, enfim, convindo que eu não dava,
No couro, sim, quis dar-me, por desplante.
Co’a meia com que os pés agasalhava,
Meus pulsos preste atava, ó terna amante!
Saca da saia a cinta, fibra brava.
Zurze já o frigobar, febricitante.
Mas antes que lambasse por detrás:
“Cruz-credo! Te arrenego, Satanás!”

Ó, que não sei de nojo como o conte!
Agora que me vi predestinado
Ao carro, só, tirar de Automedonte,
Ai!, crendo-me mui firme e bem picado,
Ei-la: faz-se de serpe aglifodonte.
Maldito o malo dia em que fui nado!
Que a ver se recobrava a robustez,
Nas artes confiava do Marquês.

Pois ela, no nariz já me afagando,
“Benzinho”, disse assim, “deixa pra lá!”
E a crua tessitura desatando,
Bem certa de não ver-me ao deus-dará,
Ao colo, muito casto e muito brando
(Menina que aninhasse o seu preá),
A mim de modo terno recebeu,
E ao prélio descanso breve ora deu.

Juntinhos, bem juntinhos sobre o tálamo
(A tudo, enfim, supera a pura estima!),
As unhas, deslizando como cálamo
(A quanto não obriga o amor da rima!),
Furunc’lo lacerou. Reclamo: “Ai, amor!”
(E nova vez maculo est’obra-prima.
Pois onde lá me falham consoantes,
Eu meto, sem piscar, tonitruantes.)

Passada esta propícia moratória,
Havendo dos trabalhos repousado,
Cioso de evitar objurgatória,
À pugna, pois, me fiz reconvocado.
Às artes recorrendo da oratória,
Expus algum receio bem fundado.
Da bolsa ela boceta retirou,
Que tal a de Pandora se mostrou.

Grânulos brancos de pequena ampola
Sobre caco de cristal esparzia,
Em que a pintura, a fim de recompô-la,
Do rosto ali mirar lesta soía.
“Pões-te logo a arrulhar, pequena rola,
Ufana de ciscar fina iguaria!”
Com lâmina, que penugem estirpava,
Estreitos, seis carreiros perfilava.

Qual hexagrama ch’ien, o criativo,
Que ao próprio céu semelha tem a imagem;
Que àquele a quem, em lance consultivo,
Tirar coube da sorte na triagem
Já favorece, pois, por forte e ativo,
Perseverante e inflo de coragem:
O esquisso tal ali foi debuxando,
Eflúvios positivos instilando.

Cédula de cem mangos requestou,
Que um tanto a contragosto forneci.
Nos dedos, já bem hábeis, enrolou,
Canudo muito fino obtendo aqui.
Um extremo à fossa destra achegou
Do nariz; o outro depôs bem ali
Onde o primeiro carreiro se via.
Num relance, por inteiro o sorvia.

Tais passos segui, de fio a pavio,
Fiado, ao fim, de alcançar salvação.
Varado fui por súbito arrepio,
A que seguiu-se forte comichão.
Privado assim de qualquer alvedrio
(Toldado se via o sol da razão),
Presto, terceira trilha palmilhei:
Piparote prestíssmo tomei.

Co’as mentes afiladas a estilete,
Convictos de rasgar todo o ilusório,
Sentamo-nos em lótus no tapete,
Início dando logo ao parlatório.
Idéias vêm e vão em ricochete,
Imagens de fulgor fulminatório,
Conceitos entre si tão concertados,
Que cá ficamos nós desconcertados.

Paroxismos de intelectivo gozo
Coroavam a festa dos sentidos.
Iluminações em fluxo assombroso,
Transubstanciações de toda a libido.
Mas quando, enfim, o Verbo portentoso
Já nada ocultava a nossos ouvidos,
Ouvimos algures um forte rataplã,
Pancadas abruptas: pam! pam! pam! pam!

Fora dos gonzos, a porta esboroa.
“Parado todo mundo, documento!”
Quatro gorilas pós uma elefoa
Congestionavam nosso apartamento.
“Uchoa, junta as roupa’ do coroa”,
Disse aquela, de um modo virulento.
Este, recém-fardado cabo-mor:
“A mina, capitão, é de-menor.”

(A menos que enganado muito esteja,
À estrofe acima cabe revisão,
Já pelo emaranhado que sobeja,
Já pelo mistifório em profusão.
Ai de quem na gramática manqueja!
Por mais que brote o estro em borbotão,
Se num lapso mero acento esquecesse,
Logo excluso de Parnaso vivesse.)

Três lanços nós descemos, manietados,
Vestidos só c’orvalho madrugueiro,
Contritos, cabisbaixos, mui vexados,
Cercados por aqueles perdigueiros.
De minha amiga vi-me separado;
Trancado fui em camburão coiceiro.
Dispor propus a todos grana preta:
Alguém cascou-me o cabo da escopeta.

Memória inda metida em torvelim,
A nuca dolorida e latejando,
Aos poucos, de mansim, assim-assim,
Do transe atroz me fui recuperando.
A tudo explicar, tintim por tintim,
Em torpe distrito foram-me instando.
Jurando haver ali crocodilagem,
Incluso já me vi na carceragem.

Quiçá tivesse ao fim eu boa xênia!
Já séc’lo e meio empós a escravidão,
Mesclada sempre mais nossa progênia,
Conceitos, preconceitos em questão,
Aos afro-descendentes peço vênia:
A cela estava cheia de negão!!!
Quem vai orar por mim, ó alma minha?
Acaso, minha mãe, eu sou neguinha?

O que ali dentro depois sucedeu
É segredo que guardo cá comigo.
Por que bramar que Deus nos esqueceu,
Que foi o Demo quem nos deu abrigo?
Ao fim e ao cabo, sim, tudo valeu,
Mormente quando safos do perigo.
Em breve, pois, aqui, segunda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

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