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É justo reclamar, eu realmente diminuí bastante a frequência dos textos. Mas, antes de retomar o ciclo normal de postagens, eu queria tratar sobre a pessoa por de trás da maternidade de uma criança autista, e a necessidade de existirmos e pensarmos além do diagnóstico. Eu não encontrei outra forma verdadeira de falar sobre o tema senão por minha história, pelo que sinto. Vou ter que voltar um pouco no tempo e depois seguir, e voltar mais uma vez… Mas não teria como ser real se fosse diferente. Não entendeu? Sigamos em frente que você irá entender.

CARREGANDO :)

Não sou do tipo saudosista, acho que sequer tenho idade para tanto (ou pelo menos gosto de pensar assim). No entanto, há uma época da minha vida que constantemente lembro com um particular afeto: o tempo de faculdade foi realmente especial. Cursar Direito na Universidade Federal do Paraná foi um grande presente. Sem dúvida, foi importante poder estudar sob a orientação de grandes nomes do Direito,

professores muito bem preparados, que me “esfolaram viva” (eu realmente estudei bastante), mas, na verdade, esse não foi o único, e talvez nem o principal ponto.

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Não preciso fechar os olhos para ver nitidamente cenas que passam como um filme e me fazem esboçar, mesmo que sem querer, um sorriso. Os ensinamentos vão além do âmbito jurídico. O prof. Gediel demonstrava em entrelinhas que ainda é possível ver esse mundo, inegavelmente cruel, com alguma doçura; o prof. Elimar ensinou que não é preciso se enquadrar no estereótipo esperado para ser advogado (e quem pode esquecer sua gravata do Frajola?); o prof. Serbena me ensinou que estamos em constante evolução; o prof. Kanayama, que era tão jovem e tão maduro, provando que idade não é argumento para comportamento.

Depois de um tempo, passado e presente se misturaram. Muitas vezes eu assistia às aulas do prof. Fachin como ouvinte no período da manhã, sem nunca imaginar que ele seria relator da Lava Jato. Quando vejo-o falando no plenário do Supremo tenho, por vezes, a sensação de que ainda estou em sala de aula. E quem diria que meu prof. Moro seria celebridade nacional? Eu nunca imaginei ver um boneco de Olinda do prof. Moro, e confesso que fiquei meio em choque com a cena. Quando vejo carros com adesivos dele, sem querer faço uma expressão de “que bizarro!”. Isso porque, para mim, ele ainda é meu professor. Todos os meus professores serão sempre meus professores.

Amigos com quem dividi momentos incríveis são hoje ótimos advogados(as), juízes(as), promotores(as), pais/mães. A Larissa, com quem passei tantas noite na AOCA, hoje advoga em Portugal. A Vanessa, com quem eu tomei tantos cafés (está aí a razão da minha gastrite) e com quem me abri tantas e tantas vezes, está lecionando em uma grande Universidade fora do Brasil (pelo que sei, já que perdemos contato). Luiz, o melhor aluno da turma, bom… Continua sendo incrível, pelo que ouvi falar. Nana, Bastos, Xivas, Foltran, Dandara, Frank, Flávinha… e tantos tantos nomes e histórias que não cabem num texto, mas cabem em mim. Hoje Doutores e Doutoras, donos de suas histórias. Se a saudade aperta, me consolo que ainda levo comigo duas preciosidades, a Cassi e Guigo, que deixaram de ser apenas amigos para se tornarem comadre e compadre, ela madrinha da Gabriela e ele padrinho da Débora.

No entanto, falando de faculdade, dois professores me marcaram de forma mais consistente. O primeiro deles foi o prof. Carlos Pianovski, que, em suma, foi o responsável por eu ser civilista (e por não ter desistido do Direito) e foi um mestre que me inspirou e impulsionou inclusive nos momentos mais difíceis. Não tenho nem palavras para descrevê-lo (sério, eu não tenho; mesmo). O segundo, (olha o clichê chegando) e não menos importante, o prof. Egon, que, apesar de eu não ter uma relação tão próxima, sempre foi como um herói para mim, alguém por quem eu nutro uma profunda admiração. Além da admiração, preciso ressaltar, sempre gostei de seu humor meio britânico, embora eu mesma tivesse sempre uma linha de comicidade mais nonsense (à la Monty Python). Essa informação é importante porque vou retomá-la em breve – não… não a informação sobre humor (que é informação irrelevante), mas sim sobre a importância desse professor.

Após o diagnóstico da Gabriela, eu decidi que não iria mais atuar no Direito, e como que em uma peça grega, proclamei que a ação de pedido de tratamentos dela seria minha última ação judicial. Fechei o escritório, passei a me dedicar exclusivamente à Gabriela. A vida me chamou de volta para a atuação e, desta vez, completamente focada na defesa de crianças autistas (e com transtorno global de desenvolvimento). Assim, percebi que essa era minha vida: as minhas filhas, minha família e minha luta pelos direitos de crianças com transtorno de desenvolvimento. E talvez aí esteja a grande confusão: o que fazemos por quem amamos não define a completude do que nós somos.

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Recentemente, fui ao escritório do prof. Egon para conversar, e eu não o via há muito tempo. Durante a conversa, por um minuto eu me senti como que em uma cena de filme: eu o via falando, sua boca movia-se, mas eu não escutava o som, pois não era o conteúdo da conversa que me paralisava naquele instante. E como se o tempo quase parasse, e tudo se movesse em câmera lenta, eu fui, nesse minuto, me dando conta que ele não estava falando com “a advogada que defende crianças com autismo”, “com a mãe de uma criança com autismo”, “com uma militante dos direitos das crianças com autismo”. Ele estava falando com “a Hanna” porque, de fato, ele sabia que a Hanna existia antes da “Hanna, mãe de autista”, “Hanna, militante dos direitos dos autistas”. Uma Hanna mais madura que a da época de faculdade, sem dúvidas; mas, ainda assim, a Hanna. A situação me deu um alívio e um conforto, seguidos de uma sensação de emoção sufocante ao relembrar meu passado de forma involuntária.  Revivi, como num filme, cada aula, cada momento com meus colegas de faculdade, provas, caneta estourando na mão, risadas, medos, pessoas… E o pensamento acelera, sobe um pranto desesperado, o qual cravo no dente, travando meu maxilar e olhando para aos livros. Dissipo comentando sobre a biblioteca e literalmente engulo a catarse, dando um play naquela cena que, para mim, somente para mim, estava em slow motion.

Eu saí do escritório dele como se eu tivesse dado de cara comigo mesma na rua, uma sensação boa, mas estranha, de reencontro. Não comentei com ele na ocasião, porque acho que não tinha como dizer: “então, sabe, eu estou tendo uma catarse aqui bem doida!”. Também não comentei com ninguém de minha família, pois não se chega de um dia de trabalho e diz: eu encontrei meu professor e percebi que eu, Hanna, sou a Hanna. Mas aquilo tudo ficou pulsando. Alguns dias depois, eu fui à minha faculdade, em um horário onde ela estava vazia. A maioria das salas estava fechada, mas, por uma sorte do destino, minha sala favorita estava aberta (o “poleiro”, como a chamávamos). Eu sentei em uma carteira e não tenho vergonha de dizer que não pude conter as lágrimas que naturalmente surgiram. Não prendi nos dentes. Era a saudade de ser vista apenas por quem eu realmente sou, o que me confundia, pois eu amo fazer o que eu faço e, de alguma forma, sinto que sou o que faço. Os sentimentos se misturaram e, após chorar um pouco e desabafar comigo mesma, passei a entender melhor algo que muitas mães de autistas dizem sentir.

Eu amo ser mãe da Gabriela, eu amo trabalhar militando pelos direitos das crianças com autismo e não consigo ver outra coisa que pudesse fazer com tanto amor. Mas isso não resume quem sou. Nós, mãe de crianças autistas, lutamos tanto para que nossos filhos não sejam definidos por um diagnóstico, que não sejam resumidos à palavra autista, todavia, nos esquecemos que também não podemos nos resumir a isso. Lutar por um filho com todas as suas forças e com todo seu amor não significa ser resumida a “mãe da criança autista”. É preciso, por vezes, olhar para si e se enxergar independente de questões que envolvam o autismo de nossos filhos.

Definindo-nos como pessoas que não se resumem à patologia de nosso filhos, também estaremos não os resumindo a seus diagnósticos. Muitas mães, como eu, relatam a dificuldade de existir para além da causa autista, como também relatam as dores de não conseguirem mais existir para além da causa autista. E ter essa catarse a partir de uma conversa, que nada tinha a ver com autismo, com o prof. Egon, foi especialmente esclarecedora, pois ele foi um dos professores mais geniais que eu conheci e que recentemente contou em sua coluna (aqui da Gazeta) seu trajeto quando tinha epilepsia (hoje superada). E mesmo após eu ler a história dele, ele continua sendo o mesmo herói, e nunca um “cara que teve epilepsia”. Ele se define pela sua própria complexidade e natureza, pelo seu esforço e capacidade, pelo que ele é – muito além de qualquer diagnóstico. Doença pode fazer parte da história de alguém, mas nunca fará parte de quem a pessoa é. E vendo esse meu professor, a admiração que devoto a ele, fica tudo tão claro.

Não somos uma doença, nem a doença de nossos filhos. Não nos resumimos a nossas militâncias. Somos pessoas com histórias. E, talvez, quando nos esquecemos disso, permitimos que os outros também se esqueçam. Vejo vários relatos de pais sobre como foram tratados de forma insensível em escolas, por médicos e até por terapeutas de seus filhos; vejo ainda mais relatos de pais que reclamam da insensibilidade dos próprios familiares. Talvez essa insensibilidade venha do fato de que muitas pessoas colocaram mães de autistas no estados de uma “entidade”, como que um “algo” e  não um “alguém”. É como se não fôssemos mais propriamente pessoas, mas como se nossa existência fosse ser “mãe de autista”. É como se não percebessem que, no fundo, somos apenas pessoas, que somos mães, e que o autismo é um diagnóstico e não uma definição de “ser”.

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As pessoas são sensíveis com outras pessoas, mas, se nos olham como uma entidade, ou como uma função e não como alguém que “é”, de fato, um ser humano que existe antes e à parte do diagnóstico, então, não há empatia. É preciso que não nos esqueçamos de quem somos para que não deixemos que os outros se esqueçam.

Durante um longo período eu não conseguia arranjar tempo para postar no blog. Mas, hoje me pergunto. Era tempo? Não. Não havia inspiração. E, de repente, naquela carteira de faculdade, depois de limpar um pouco meu rosto, me veio um bilhão de textos, prontos e acabados em minha cabeça. A questão basilar era: como poderia escrever se eu, aos poucos, estava me esquecendo de quem era a escritora? Voltarei a escrever e, sim, sobre autismo. Mas tendo a ciência de que EU estou escrevendo cada linha, e que nem eu e nem minha filha nos resumimos a este autismo. Esta era a inspiração que faltava e a verdade que precisava.

Apesar de eu sempre imprimir um certo humor na maioria dos textos, confesso que choro quando escrevo certas partes (acontece em todo os textos). Esse foi um texto que eu escrevi todo o tempo meio que sorrindo e chorando, porque eu sei a confusão que é sentir isso, e porque eu vejo essa confusão no discurso de muitas mães com filhos autistas. Não existe resposta simples para questões complexas. E lidar com o autismo é uma questão complexa da vida. Mas, com certeza, se resumir pelo autismo não fará bem a você ou ao seu filho. Eu não quero parecer o Mufasa, do Rei Leão, mas com duas filhas, é a primeira referência que me vem à cabeça citar: “Lembre-se de quem você é!”  Volte no tempo, para uma época da qual você sente algum tipo de afeto, e tente se lembrar da sua essência, de seus gostos.

A gente muda, amadurece (graças a Deus, porque eu não suportaria viver com a Hanna de dez anos atrás), mas há uma essência que permanece, e ela não pode ser esquecida. Talvez no seu caso não seja a época de faculdade, talvez seja a época de colégio, uma viagem, um momento. E, nessa lembrança, busque lembrar de como te olhavam antes do autismo entrar em sua vida. Não procure que te olhem igual, mas não se contente que te enxerguem só pelo autismo – e, principalmente, não se enxergue só pelas lentes do autismo.

Vivemos um momento no qual as redes sociais vendem as vidas dos outros como produtos; no qual defender o politicamente correto é um vício, no entanto exercer a ética é uma exceção; no qual as pessoas fazer afirmações categóricas sobre tantos assuntos que sequer procuraram estudar a fundo; no qual conversamos por mensagens com várias pessoas ao mesmo tempo, porém, nunca as pessoas tiveram tanta depressão oriunda da solidão; no qual crescem o número de crianças autistas com dificuldade de socializar e, ao mesmo tempo, propagam-se redes sociais que alienam pessoas neurotípicas da socialização por meio da conversa pessoal. Nesse contexto, demonstra-se muito o que se quer mostrar sobre o que se pretende demonstrar que se é. Por isso, não para os outros, para você mesmo, eu recomendo que todo dia ao menos tente responder à seguinte pergunta: Quem você é?  E não… Eu não perguntei o que você faz! Eu perguntei: quem você é?

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