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Olho para os prédios ao redor e tenho crises de insignificância e finitude. Penso em quantas pessoas vivem e trabalham em cada um dos prédios, em suas histórias, suas vidas incertas, suas mortes certas. Por instantes, observando a passagem de vidas alheias, emolduradas por janelas de metal, quase como grades de celas que aprisionam, percebo que a minha também passa, que eu também estou preso à “realidade”. Essas crises duram pouco, pois logo desvio o olhar para algo que faz com que eu volte a mim, como a foto da minha esposa ou a tela do computador em que insistentemente escrevo mais um texto, partes que dão sentido a um todo.

Fazia algum tempo que eu não contemplava os prédios e refletia sobre a existência. Voltei a isso depois de assistir recentemente aos registros dos dez anos dos ataques ao World Trade Center. Como todo mundo em todo o mundo, fiquei muito impressionado com os atentados. Oito anos antes, em 1993, eu havia visitado aquelas torres e almoçado em uma delas – até hoje meu pai me lembra das menores e mais caras pizzas que comeu em sua vida. Dois anos depois do atentado, estive novamente em Nova York, e as torres não estavam mais lá. Em seu lugar, uma cratera imensa – pequena, se comparada ao buraco aberto na humanidade.

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Pouco depois dessa segunda visita a Nova York, em 2003, escrevi um pequeno texto sobre minhas reflexões diante da janela, que reproduzo ao fim deste. Hoje, imerso no turbilhão cotidiano, paro pouco para contemplar a vida que passa do lado de fora da minha própria vida. Mas é importante recordar que sempre há alguém lá, do outro lado do vidro, no prédio ao lado, no carro que passa; alguém com as mesmas angústias, com os mesmos medos, na mesma busca por sentido. Quando todos compreenderem isso, não haverá mais aviões entrando pela janela.

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Talvez ela chore, talvez eu saiba

A moça que limpa os vidros parece triste. Ela está longe, no prédio ao lado, mas acho que chora. Acho que vejo lágrimas. Talvez causadas pelo produto químico usado na limpeza dos vidros – “antialérgico e biodegradável”, sei. Talvez causadas pela demissão recém-comunicada – “você é uma excelente colaboradora, conseguirá outra colocação”, sei. Talvez causadas pelo estranhamento da mãe com Alzheimer – “quem é você, eu não te conheço”, sei. Talvez causadas pelo desrespeito do filho – “não me enche, eu te odeio”, sei. Talvez causadas pelo próximo dia do pai, que sempre esteve longe – “está tudo muito corrido, mas um dia eu passo aí”, sei. Talvez causadas pelo caroço no seio, que o exame revelou – “acalme-se, você vai ficar bem”, sei. Talvez causadas pela corrupção estampada nos jornais – “as acusações são infundadas”, sei. Talvez causadas pelas palavras do ex-namorado – “o problema não é com você, a culpa é minha”, sei. Talvez causadas pela situação do rapaz drogado, que se arrasta na sujeira da calçada – “me dá um dinheiro, moça, não é pra droga, é pra comer”, sei. Sei? Talvez. Talvez eu veja um avião batendo no prédio ao lado. Talvez a moça que limpa os vidros veja um avião batendo no prédio em que estou. Talvez ela veja que eu também estou triste. Talvez ela não esteja triste. Talvez seja eu quem chora.

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