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A escritora Clara Becker, na Revista Piauí, nº 74, escreveu o artigo “Taquígrafos em Polvorosa”, que narra a aventura do blog Contas Abertas para descobrir a remuneração dos taquígrafos do Senado Federal.

No Poder Executivo da União, basta acessar o site www.transparencia.gov.br. No Legislativo, como conta Becker, “os servidores têm acesso aos dados de quem consultou seus salários. Quando o pesquisador preenche um cadastro com nome, e-mail, endereço, CPF e até o número de IP do computador de onde acessa o serviço, não sabe que o pesquisado terá acesso às suas informações”. Em outras palavras, o fiscalizado sabe mais que o fiscalizador e, assim, a transparência existe, mas não a plena transparência, pois as exigências formais para acessar dados sobre servidores inibe a tentativa.

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A transparência é termo inserto no conceito de accountability, cuja tradução exata, no Brasil, é inexistente. Aproxima-se da obrigação de os entes públicos fornecerem dados sobre as condutas governamentais para permitir o controle social (accountability vertical) ou para permitir controle por outros órgãos do Estado (accountability horizontal). O acesso deve ser amplo e livre. Essa é a regra; o sigilo é a exceção. Democrático é o Estado transparente, que é accountable. Deve ser assim o espaço público.

Do outro lado, há o espaço privado, a ser preservado. Os Estados Unidos, há tempos vêm enfrentando violação de privacidade. Conforme Stefano Rodotà, em sua obra A vida na sociedade da vigilância, “[d]epois do 11 de setembro, ‘a privacidade na era do terror’ parece estar condenada. A privacidade, além de não ser mais vista como um direito fundamental, é, de fato, frequentemente considerada um obstáculo à segurança, sendo superada por legislações de emergência” (p. 14). Enfatiza o autor que o direito à privacidade é fundamental para o “livre desenvolvimento da personalidade” (p. 17).

Warren e Brandeis, em artigo clássico do final do século XIX, The right to privacy, foram os primeiros a defender a privacidade como um direito. Ressalvaram em seu texto, contudo, que matérias de interesse geral e público não estão sujeitas à limitações.

A transparência é requerida no Estado brasileiro. Erigida como princípio da administração pública (a publicidade), vem em muitos diplomas legislativos, como: a) Lei 10.257/2001 (o Estatuto da Cidade, no tocante à necessária participação, mediante audiências públicas); b) a Lei Complementar 101/2000 (LRF – Art. 1º, § 1o; Art. 48; Art. 48-A); c) Decreto 7185/2010; d) Lei 12.527/2011 – Lei de Acesso à Informação; e) Decreto 7.724/2012 – regulamenta a Lei de Acesso; f) Lei Estadual (PR) 16.595/2010.

Tais documentos legislativos utilizam meios eletrônicos para permitir o acesso ao uso do dinheiro público – a tal ponto que o SISTEMA deve ser alimentado em tempo real (art. 2º, §2º, II, Dec. 7.185/2010).

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Entre os dispositivos normativos que exigem transparência do Estado, a Lei de Acesso à informação, regulamentada pelo Decreto 7724/2010, autorizou e determinou que a administração pública divulgue dados remuneratórios dos servidores públicos (art. 7º, §2º). Passaram a estar em jogo dois direitos: da transparência e da privacidade (do servidor). No âmbito privado, como visto acima, sem dúvida prevalecerá o direito à privacidade. Mas será assim no espaço público?

Entende o Supremo Tribunal Federal que no espaço público, especificamente à remuneração, não há direito à privacidade:

“1.Caso em que a situação específica dos servidores públicos é regida pela 1ª parte do inciso XXXIII do art. 5º da Constituição. Sua remuneração bruta, cargos e funções por eles titularizados, órgãos de sua formal lotação, tudo é constitutivo de informação de interesse coletivo ou geral. Expondo-se, portanto, a divulgação oficial. Sem que a intimidade deles, vida privada e segurança pessoal e familiar se encaixem nas exceções de que trata a parte derradeira do mesmo dispositivo constitucional (inciso XXXIII do art. 5º), pois o fato é que não estão em jogo nem a segurança do Estado nem do conjunto da sociedade. 2. Não cabe, no caso, falar de intimidade ou de vida privada, pois os dados objeto da divulgação em causa dizem respeito a agentes públicos enquanto agentes públicos mesmos; ou, na linguagem da própria Constituição, agentes estatais agindo ‘nessa qualidade’ (§6º do art. 37). E quanto à segurança física ou corporal dos servidores, seja pessoal, seja familiarmente, claro que ela resultará um tanto ou quanto fragilizada com a divulgação nominalizada dos dados em debate, mas é um tipo de risco pessoal e familiar que se atenua com a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. No mais, é o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. 3. A prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado. O ‘como’ se administra a coisa pública a preponderar sobre o ‘quem’ administra – falaria Norberto Bobbio -, e o fato é que esse modo público de gerir a máquina estatal é elemento conceitual da nossa República. O olho e a pálpebra da nossa fisionomia constitucional republicana. 4. A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública. 5. Agravos Regimentais desprovidos. (STF – Segundo Agravo Regimental na Suspensão da Segurança 3902/SP – SS 3902 AgR-segundo / SP – Rel. Min. Ayres Britto – Julgamento em 09/06/2011)

O entendimento do STF é adequado e tende a permanecer – observa-se na Repercussão Geral no Recursos Extraordinário com Agravo 652.777/SP.

O Estado deve ser transparente. Somos os contribuintes (incluindo os próprios servidores) e, por esse motivo, queremos e podemos saber como nossa contribuição é aplicada. Quem os servidores públicos e quanto recebem (é direito de todos ter ciência do valor que recebo como professor universitário). Há o direito e dever de verificar como a res publica é utilizada.

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A vida privada do servidor público deve ser preservada, sem dúvida. Não se permite a publicação dos dados pessoais, como endereço, documentos, patrimônio, situação fiscal. Essas informações fazem parte da esfera privada e familiar. Não está abrangida, no entanto, por essa garantia a remuneração que percebe do Estado.

Assuntos de interesse geral, portanto, sensíveis aos sujeitos que sustentam o aparato estatal (os contribuintes), como a remuneração dos servidores, não estão sujeitos aos limites à violação da privacidade.