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politização
O plenário do STF| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Em 2016, em um obituário de Antonin Scalia publicado na revista The Atlantic, o jurista Jeffrey Roson recordou um episódio em que pediu uma entrevista àquele que é considerado um dos mais influentes juizes conservadores que a Suprema Corte americana já teve. Roson relatou que Scalia recusou a solicitação com uma mensagem que, a meu ver, de maneira muito simples, serve como lição para os dilemas da tão falada politização do nosso Supremo Tribunal Federal (STF).

Escreveu Scalia: "Desde que me tornei um juiz [da Suprema Corte], tenho adotado a conduta uniforme de recusar entrevistas para artigos sobre mim. Essa conduta certamente tem seus custos, mas está de acordo com a nossa tradição jurídica de evitar exposição pública. (Como você sabe, sou um grande adepto da tradição.) É tentador abrir uma exceção para um artigo de rara natureza como o que você descreve, mas regra é regra. (Também sou grande adepto de regras.) Perdão por desapontá-lo — e desejo a nós dois boa sorte no artigo."

Nos últimos anos, cresceu entre muitos brasileiros a percepção de que os ministros do STF — se não todos, um número significativo deles — julgam conforme suas convicções pessoais.

A mensagem, observou Roson, resume a atuação de Scalia, marcada pela defesa da separação de preferências pessoais de conclusões jurídicas e pela necessidade de recorrer à tradição e às regras para resistir à tentação de seguir no caminho contrário. Roson afirma que, na prática, ao longo dos anos Scalia contradisse algumas vezes sua promessa de não deixar sua visão política interferir na interpretação da constituição. Mas também ocorreu o contrário: em outros tantos de seus votos em julgamentos na Suprema Corte, Scalia acabou tendo um entendimento constitucional com resultado contrário à sua opinião pessoal. Por exemplo, quando acompanhou a maioria atestando o direito de manifestantes queimarem a bandeira americana. "Por mim, colocava na cadeia todo esquisitão barbudo de sandália que queima a bandeira", disse Scalia depois. Mas ele precisava seguir a letra fria da Constituição — e o que os seus autores tinham em mente quando a escreveram.

Sobre as eventuais contradições entre os princípios que o norteavam e o seu voto nos julgamentos, Scalia afirmava que nem toda teoria é perfeita. Mas o fato é que ele perseguia a separação entre visão pessoal e a interpretação do texto constitucional como um ideal.

Há várias formas de lidar com a politização do STF. A mais eficiente delas seria que ocorresse por iniciativa dos próprios ministros da corte um esforço de autocontenção.

Nos últimos anos, cresceu entre muitos brasileiros a percepção de que os ministros do STF — se não todos, um número significativo deles — julgam conforme suas convicções pessoais, extrapolando ou até mesmo contradizendo o texto constitucional. Mais do que isso, existe a suspeita de que por vezes os integrantes da Corte julgam ao sabor de conveniências pessoais (por exemplo, pelo fato de alguns ministros serem casados com advogadas com ações no Supremo, como revelou a revista Crusoé) ou de mudanças na conjuntura política (recentemente, alguns ministros mudaram seus votos de forma a favorecer interesses do governo Lula, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo).

Obviamente, tampouco contribui para a imagem do STF a frequência com que alguns de seus ministros participam de eventos públicos, expondo suas ideias e visões pessoais, muito além da discussão teórica de cunho jurídico, em palestras, debates e entrevistas. No mais recente deles, o ministro Luís Roberto Barroso, em reação a manifestantes estudantis, afirmou que "derrotamos o bolsonarismo", no que foi interpretado como uma confissão de que a corte atuou contra o movimento político associado ao ex-presidente Jair Bolsonaro (o STF divulgou nota explicando que o sujeito da frase era "o voto popular" e o próprio Barroso afirmou depois que se referia ao "extremismo golpista" e que não pretendia ofender os eleitores de Bolsonaro).

O que sobra mesmo, de mais imediato, para combater a politização do STF é a crítica serena, bem embasada, que a sociedade pode fazer à atuação dos ministros.

Barroso vai assumir a presidência do Tribunal em outubro deste ano, depois da aposentadoria de Rosa Weber, o que significa a substituição de uma ministra de perfil discreto por outro que não se contém em expressar sua opinião sobre temas diversos, inclusive sobre a conjuntura política.

Há várias formas de lidar com a politização do STF. A mais eficiente delas seria que ocorresse por iniciativa dos próprios ministros da corte um esforço de autocontenção, para usar uma expressão do ex-ministro Marco Aurélio Mello. Mas a possibilidade de os ministros deixarem de avançar em atribuições de outros Poderes ou de expor suas preferências políticas espontaneamente é próxima de zero porque a sensação de poder, para qualquer pessoa que as alcança, é inebriante e porque a vaidade, quando deixa de ser alimentada, provoca síndrome de abstinência.

Os guardiões da Constituição precisam retirar-se do debate político e deixar claro que estão aí para defender os direitos também dos bolsonaristas, não para derrotá-los ou persegui-los.

Um segundo caminho para reduzir a politização do STF seria a troca gradual de seus ministros por outros menos conectados com o mundo político e mais dispostos a seguir os princípios de Scalia descritos acima. Mas isso levaria muito tempo e, ademais, definitivamente não é algo do interesse do atual presidente, que já nomeou um novo ministro, Cristiano Zanin, que foi seu advogado pessoal — o que por si, independente das qualidades jurídicas e da reputação profissional do indicado, já aponta para uma tentativa de influenciar a corte a seu favor. Lula terá a chance de indicar mais um nome para o STF e os sinais são de que o critério será o mesmo.

A terceira maneira de despolitizar o STF, segundo defendem alguns juristas e políticos, seria limitar os mandatos dos ministros, fixando-os em oito ou dez anos (atualmente, precisam se aposentar aos 75 anos), ou transferir para o Legislativo a prerrogativa de indicar os substitutos. Porém, dificilmente isso teria o efeito desejado. Primeiro, porque a regra dos mandatos fixos só passaria a valer para os novos indicados. Segundo, porque não há nenhum motivo para acreditar que ministros com mandato fixo serão menos afeitos ao ativismo judicial ou à politização de sua atuação. Ao contrário, eles podem se ver na tentação de usar seus mandatos como trampolim para uma carreira política ou para o setor público. Podem acabar julgando de olho nos frutos profissionais que podem colher depois de terminado o mandato, e não apenas após a aposentaria compulsória, e isso pode estimular o jogo político.

Há, sim, algumas medidas, por meio de Proposta de Emenda à Constituição, que podem restringir o poder solitário de um ministro do STF, por exemplo reduzindo as decisões monocráticas, e aumentar a moralidade na Corte, coibindo situações de conflito de interesse na atuação de seus integrantes.

Mas o que sobra mesmo, de mais imediato, para combater a politização do STF é a crítica serena, bem embasada, que a sociedade pode fazer à atuação dos ministros. Não o tipo de enfrentamento que Bolsonaro promoveu nos últimos anos, chegando ao ponto de afirmar que não obedeceria a decisões do STF ou fazendo ofensas pessoais aos ministros. Isso só agravou e estimulou a politização da Corte. Ataques de cidadãos comuns a integrantes da Corte, como os que sofreram os ministros em evento em Nova York no ano passado ou como os que foram feitos pelo ex-deputado federal Daniel Silveira, que o levaram à condenação pela própria Corte, tampouco ajudam.

Em vez disso, são necessárias críticas embasadas, serenas e claras a situações específicas em que os ministros deixam em dúvida sua imparcialidade e sua capacidade de deixar de lado preferências pessoais e políticas na interpretação da Constituição. É preciso coragem para engajar-se nessas críticas, pois há um temor de que qualquer contestação à politização e às atitudes dos ministros possa ser interpretada como golpismo ou ofensa pessoal.

Os excelentíssimos ministros e ministras do STF precisam compreender, com essas críticas, que o tempo de enfrentamento entre os Poderes passou. Que existem responsabilidades a serem apuradas e punidas pelos atos golpistas de 8 de janeiro, mas que de resto é chegado o momento de recuperar a imagem da Corte — inclusive junto àqueles que chegaram a acreditar que o país estaria melhor com seu fechamento. Para isso, os guardiões da Constituição precisam retirar-se do debate político e deixar claro que estão aí para defender os direitos também dos bolsonaristas, não para derrotá-los ou persegui-los.

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