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Nureyev chegando ao TM do Rio em 1971 Foto de Evandro Teixeira (Arquivos Globo)
Nureyev chegando ao TM do Rio em 1971 Foto de Evandro Teixeira (Arquivos Globo)| Foto:

Ao assistir o recente documentário “Nureyev” dos diretores Jacqui e David Morris, que conta de maneira detalhada a vida do bailarino russo Rudolf Nureyev (1938-1993), me lembrei de um fato que ocorreu em 1971 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, mais precisamente na noite do dia 26 de abril daquele ano. Nureyev, o mais notável e carismático bailarino de sua época, que desde sua espetaculosa fuga da União Soviética em 1961 (num aeroporto parisiense) tornou-se um personagem onipresente na mídia mundial, depois de muitas idas e vindas, apresentou-se no Rio de Janeiro junto com o Corpo de Baile do Teatro Municipal da cidade, com três estrelas da companhia do Teatro Colón de Buenos Aires: Olga Ferri, Violeta Janeiro e Lidia Segui. Na época o Diretor do Ballet do Municipal era o argentino Hector Zaraspe. O espetáculo teve a participação da Orquestra Sinfônica Brasileira regida por Isaac Karabtchevsky. No programa trechos dos ballets “Les Sylphides” (com música de Chopin em arranjos orquestrais) e “A bela adormecida” (música de Tchaikovsky) e o ballet Apollon Musagète com música de Igor Stravinsky e coreografia (realizada junto com o compositor) de George Balanchine. Curiosamente esta obra, completamente desconhecida no Brasil na época, foi executada naquela noite apenas 20 dias depois da morte do compositor. Se a música de Chopin e Tchaikovsky não ofereciam nenhuma grande dificuldade, a de Stravinsky, coreografada em cima de cada nota para apenas 4 bailarinos (três mulheres e um homem), fez com que os ânimos se esquentassem já nos (poucos) ensaios. Pesquisando o assunto tenho documentado que Nureyev interrompeu a obra no ensaio geral 14 vezes.

Na noite do espetáculo, o público que lotava o teatro foi surpreendido, quando em meio a um solo do bailarino na obra de Stravinsky, ele, depois de tentar se ajustar aos ritmos instáveis que vinham do fosso, parou de dançar, foi até perto da orquestra e “solfejou” uma certa passagem da maneira correta. Com extrema calma, elegância e segurança voltou ao meio do palco e ficou aguardando o reinício da música. Não há dúvida de que o susto e o constrangimento foram enormes.

Bastidores

Anos depois do ocorrido conversei sobre o assunto com o maestro Mário Tavares (1928-2003), que foi o Maestro Titular da orquestra do Municipal carioca na época. Ele me contou que a princípio quem deveria tocar no espetáculo era a orquestra do Theatro Municipal, que tinha uma enorme tarimba em acompanhar espetáculos de Ballet, mas ao perceber o quanto de dinheiro poderia reverter desta empreitada, a Orquestra Sinfônica Brasileira, que vinha de uma temporada deficitária no ano anterior, lançou-se a cumprir a tarefa, mesmo não sendo uma orquestra acostumada a espetáculos de dança. Apesar de toda a enorme capacidade do maestro Isaac Karabtchevsky, ele nunca tinha regido um espetáculo como este, e, posso afirmar de cátedra, reger ballet não é a coisa mais fácil do mundo. Como a orquestra teve pouquíssimos ensaios (dois dias antes tocou o Oratório “O Messias” de Händel) uma coisa que parecia banal escondia, na obra de Stravinsky, um enorme desafio. Como já disse, a coreografia de Balanchine é feita em cima de cada nota. Tanto Balanchine quanto Nureyev vinham da escola russa de Ballet, que disponibiliza inclusive uma completa formação musical. Nureyev era capaz de ler até uma grade orquestral, e conhecia o que dançava em todos os detalhes. Percebeu de cara que, na obra de Stravinsky, teria dificuldades.

A volta ao Brasil: sons gravados

12 anos depois Nureyev voltou ao Brasil com o Ballet de Nancy, e fez questão de dançar Apollon Musagette de novo. Mas condicionou que não o faria com nenhuma orquestra ou maestro brasileiros. Preferiu dançar com uma gravação (a regida pelo próprio compositor). Assisti este espetáculo em 1983 no Municipal de São Paulo, e pude constatar que Nureyev, já com 45 anos, não dispunha mais de sua técnica exuberante, mas o carisma, esse sim, estava intacto. Além da coreografia de Balanchine ele dançou uma linda coreografia de Béjart sobre canções de Mahler. Foi o melhor espetáculo de dança que assisti.

Para finalizar, um detalhe que redime o Maestro Isaac Karabtchevsky do “imbróglio”. A extinta TV Tupi gravou o espetáculo, e o transmitiu alguns dias depois. Assisti esta transmissão e fiquei admirado com a arte do bailarino e, entre outras coisas, com o fato do Maestro não ter pedido para que houvesse edição do vídeo. De maneira honesta e corajosa Isaac Karabtchevsky disse publicamente que achava importante todos verem o que se passou. Atitude corajosa e ética.

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