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Arte: Felipe Lima
Arte: Felipe Lima| Foto:

Quem não gosta de um bom café? Mais do que o sabor, há um quê de afeto nisso aí. Sei lá… Talvez o aroma nos lembre da infância; da mãe passando o café de todas as manhãs. É também ao redor de um cafezinho que damos aquela providencial pausa na correria do dia a dia para bater papo com os colegas. A bebida é um gatilho da descontração. E da amizade. “Vamos tomar um café?”: muito mais do que um convite para um simples café, é um jeito de dizer “Quero te ver. Quero falar contigo”.

Aproveitando essa deixa, eu lhe convido: quer prosear sobre o café? Asseguro: há mais segredos numa simples xícara do que sonha nossa vã filosofia. Muito além do sabor, aroma e afeto. A curiosa história desse grão traz uma lição de tolerância. E até de democracia.

Começando pelo começo. Conta a lenda que, num tempo imemorial, um pastor etíope observou que seus carneiros ficavam mais “ligados” quando comiam os frutos de um arbusto que crescia naquelas terras altas da África. Ele os experimentou e sentiu mais energia. Era o café.

Um monge da região ficou sabendo da novidade e resolveu fazer uma infusão com aqueles frutinhos para não sentir sono enquanto rezava. Humm… não sei se o monge tinha vocação religiosa. Dormir durante a oração?! É como um motorista de ônibus cochilar ao volante. Mas vá lá… Pelo menos ele começou a inventar o café.

Digo “começou” porque foi só no mundo islâmico, para onde o café se espalhou a partir da Etiópia, que os grãos começaram a ser torrados e que a bebida assumiu o seu jeitão clássico. Isso já na Idade Média.

E aqui vai a primeira lição de tolerância: o café que tanto nos agrada é obra e arte de negros e muçulmanos – ambos alvos de preconceito corriqueiro. Algo a se refletir num momento em que um certo general da República diz que a grande herança legada pelos africanos ao Brasil foi a “malandragem”.

Mas, ainda que haja quem insista em dizer o contrário, seja qual for a cor e o credo do sujeito em questão, o ser humano é igual em qualquer canto. O café é um exemplo disso. Ele é bom. E as pessoas gostam do que é bom. Ponto! Isso é universal.

Os europeus da época eram cristãos. Mas não bobos. E logo importaram aquela novidade energética nos fins dos 1500. Acontece que a bebida, de início, não decolou por ser “islâmica”. Para mudar isso, foi preciso que um papa, Clemente VIII, desse uma bicadinha numa xícara, gostasse do que provou e abençoasse o café: “Deixa de bobagem! Podem beber. É só uma bebida. Uma bebida boa”.

Santa lição: os preconceitos costumam nascer dessas pequenas bobagens: a cor da pele, para quem e como se reza, a roupa, os costumes, a bebida que se bebe.

Mas essa bebida rompeu barreiras. E virou sinônimo de status numa Europa que buscava se modernizar. Elegantes cafés se espalharam pelas cidades. Roubaram a freguesia das decadentes tavernas, símbolos da era medieval que se pretendia enterrar. E reuniram ao redor de suas mesas, ao longo dos últimos séculos, alguns dos homens que iam mudar a história. Entre um gole e outro, animados pela energia que o cafezinho lhes dava, intelectuais, artistas e filósofos discutiram o mundo. Tiveram inspirações e ideias. Conceberam teorias de tudo.

A lista dos frequentadores ilustres e influentes dos cafés é extensa demais. Só para exemplificar: os iluministas Voltaire, Rousseau, Benjamin Franklin; o dramaturgo Moilère; os escritores Alexandre Dumas e Hemingway; os pintores Renoir e Picasso; o pai da psicanálise, Freud; o poeta Fernando Pessoa; os filósofos Sartre e Simone de Beauvoir. Teve carniceiros também: Hitler e Lênin – só para ficar nos dois construtores dos maiores totalitarismos do século 20.

Fazer o quê? A vida não é perfeita e quase tudo pode ter duas faces. Tal qual o café: recém-passado, quentinho, fica ótimo; mas é horrível se estiver frio.

Então, é preciso dar o braço a torcer: nos cafés foram debatidas ideias ruins. Mas também as boas. E o fato é que dentro dos cafés, por causa daquela bebida quente, construiu-se uma das principais arenas de discussão pública. Uma ágora modernizada e movida a doses generosas de cafeína. Não é ousado demais especular que os cafés, com sua vocação para o livre encontro de ideias, ajudaram a consolidar a democracia na Europa.

E talvez isso não ocorresse (ou demorasse mais para ocorrer) não fosse um certo país tropical abençoado por Deus. Foi por essas bandas ao sul do Equador que o cafeeiro africano deu seus melhores frutos. Com o Brasil, no século 19 a produção mundial do grão sofreu um boom. Bom para o mundo. Os brasileiros inundaram os mercados com seu ouro verde. O preço caiu. E o café, antes um produto dos ricos, se democratizou.

Também foi bom para o Brasil. O país ganhou muito dinheiro. Mas nada disso teria ocorrido sem a mão de obra escrava. Negra. Alô, general: cadê a malandragem?! O perverso é que talvez tenha sido nosso regime escravocrata que, indiretamente, ajudou a fomentar as ideias democráticas que se espalharam nos cafés europeus como folhas ao vento.

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Muita gente nega haver uma dívida de gratidão histórica com os negros. Há quem diga que seus ancestrais nem mesmo estavam aqui no Brasil quando as senzalas foram postas abaixo. Mas pode ser que a história não seja bem assim. A abolição da escravidão forçou os barões do café a contratarem mão de obra estrangeira, de imigrantes, para trabalhar nas plantações. Portanto, sem a libertação dos escravos, muitos brasileiros brancos que ostentam orgulhosos seu sobrenome europeu (alguns deles preconceituosos contra os negros) possivelmente nem mesmo seriam brasileiros hoje. Esse foi o evento histórico que escancarou as portas do país para a imigração europeia.

É mais uma das muitas lições de tolerância escondidas dentro de uma simples xícara de café. Muito mais do que poderia ter sonhado aquele monge sonolento do início dessa prosa.

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