Ilustração: Marcos Tavares| Foto:
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Admito: o título é chamativo – uma técnica para atrair a atenção. Pode haver quem ache que é forçado. Mas não está errado, dependendo da forma como se interpreta a Bíblia.

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Vamos lá... Não há nas Sagradas Escrituras nenhuma recomendação para usar máscara e manter o isolamento social por causa da pandemia de coronavírus. Nem poderia haver, já que se trata de um livro com milênios de existência.

Mas, dentre os 613 mandamentos do Antigo Testamento (sim, são muito mais do que dez!), há uma série de surpreendentes regras sanitárias e de higiene que ainda hoje são atuais. Por exemplo: a Bíblia estabelece quarentena para pessoas com doenças infecciosas. Manda que todos tomem banho e lavem as mãos e as roupas com frequência. E fixa até mesmo o princípio dos modernos sistemas de esgoto sanitário.

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Então não é nenhum despropósito adaptar o espírito do texto bíblico aos desafios impostos pela Covid-19. Para aqueles que creem que a Bíblia é a palavra de Deus, preservar a si e a sua comunidade de contaminações é uma determinação divina. E quem não acredita nas Escrituras pode ao menos se envergonhar por estar mais “atrasado” do que um povo tão antigo – isso para o caso de já estar cansado e quase desistindo de cuidar de si e dos outros nesses tempos de coronavírus.

Tradicionalmente, atribui-se a Moisés a autoria dos cinco primeiros livros da Bíblia, que teriam sido redigidos após a fuga do Egito, no período em que os hebreus vagaram no deserto – não se sabe exatamente quando ocorreram esses acontecimentos, e as estimativas são bem imprecisas: algo entre 1.600 a.C. e 1.200 a.C.

Nesses livros, estão mandamentos que regem não apenas a relação dos homens com Deus, mas também a vida em comunidade, incluindo normas sanitárias e de higiene.

Há pelo menos duas hipóteses para essas regras de higiene terem entrado na Bíblia. A teológica: Deus as ensinou para que seu povo tivesse saúde. E há a tese histórica: Moisés, filho adotivo da filha do faraó, teria tido acesso ao conhecimento dos sábios do Egito, a maior civilização que a humanidade já havia conhecido até então. E, ao colocar simples regras sanitárias como ordens de Deus, garantiu que elas fossem cumpridas sem questionamentos por um povo inculto.

Um dos mandamentos de Moisés prevê quarentena de pelo menos 14 dias – tal como a do coronavírus – para quem apresentasse manchas ou feridas que eventualmente pudessem ser de lepra, a doença infecciosa mais temida da Antiguidade. Caso a pessoa desenvolvesse sintomas, teria de deixar o convívio comunitário para se isolar, podendo retornar à vida social apenas quando estivesse curada.

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As leis de Moisés também trazem, com milênios de antecedência, o princípio do sistema de esgoto contemporâneo – que é tirar os dejetos de dentro e das imediações das residências para levá-los a um lugar onde não causem contaminação. No livro bíblico Deuteronômio, há a determinação expressa para que cada pessoa se afaste do acampamento para fazer suas necessidades. E que leve consigo uma pá para cavar um buraco e enterrar suas fezes. Sim, por mais estranho que possa parecer, a Bíblia fala sobre o que fazer com o cocô.

Duas das práticas dos judeus mais conhecidas por quem é de outra religião – a circuncisão e a proibição de comer carne de porco – também são determinações bíblicas desse mesmo período. E ambas têm relação direta com a saúde. A circuncisão facilita a higiene íntima masculina. E a carne de porco, comparada com a de outros animais, potencialmente tem mais risco de conter microrganismos nocivos. Como o próprio nome sugere, o porco é um animal que costuma ser sujo. Hoje, com os modernos sistemas de controle sanitário, isso não é um problema. Mas era no segundo milênio antes de Cristo.

Na questão da alimentação, por sinal, os judeus contemporâneos também herdaram dos mandamentos bíblicos o hábito de não comer crustáceos, ostras e mexilhões. Quem aprecia esses frutos do mar sabe que eles trazem um risco maior de intoxicação alimentar do que outros alimentos, caso haja descuido no preparo.

O Antigo Testamento contém ainda determinações para que os hebreus tomassem banho e lavassem as mãos e as roupas com relativa frequência. Hoje, isso pode parecer banal. Mas, nos tempos bíblicos, não havia o conhecimento da existência de microrganismos causadores de doenças e da importância do asseio. E tinha outro complicador: os hebreus vagaram 40 anos pelo deserto, onde a água é rara. Não seria surpreendente se eles achassem que seria um desperdício não guardá-la apenas para matar a sede. De qualquer forma, quando a orientação virou um mandamento de Deus, isso foi resolvido.

Curiosamente, o arraigado hábito judaico de lavar as mãos antes das refeições está no centro de um dos episódios que marcam o cisma entre o judaísmo e o nascente cristianismo – e que ajuda a explicar por que os cristãos abandonaram boa parte dos mandamentos de Moisés, inclusive algumas das regras sanitárias.

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O Evangelho de Mateus narra que Jesus, que era perseguido pelas altas autoridades religiosas do judaísmo, foi vítima de uma tentativa de “pegadinha” quando estava numa refeição com seus seguidores. Os mestres das leis judaicas questionaram por que alguns de seus discípulos não haviam lavado as mãos, o que seria um desrespeito às normas divinas. Cristo então respondeu: “O que contamina o homem não é o que entra, mas o que sai da boca”.

Jesus obviamente estava questionando o apego à tradição vazia e tratando da maldade expressa em palavras – e não de etiqueta de saúde. Mas ensinamentos como esse contribuíram para os primeiros cristãos sentirem-se liberados de cumprir muitos dos mandamentos do Velho Testamento. Se o que contamina não é o que entra na boca, então não haveria problema em comer carne de porco. Não é?

Teoricamente isso não deveria ter promovido um liberou geral em matéria de cuidados de higiene. Afinal, o  cristianismo considera que o corpo é sagrado por ser a morada da alma. Por isso, deve ser preservado. O problema é que, por quase dois milênios, os cristãos não tiveram a menor ideia de que os antigos mandamentos de Moisés tinham relação com a saúde. Imaginaram ser apenas uma tradição judaica arcaica. Não relacionavam comportamentos anti-higiênicos com as doenças que contraíam. E tampouco achavam que isso era uma agressão ao próprio corpo e que poderia representar um risco a sua comunidade.

Mas hoje, especialmente em meio à pandemia, não há mais essa desculpa. Afinal, está na Bíblia: cuide de si e dos outros.