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O cisne negro do conhecimento: como a força da ciência parece sua fraqueza
Ilustração: Marcos Tavares/Thapcom| Foto:

Para o bem e para o mal, a pandemia do coronavírus colocou os holofotes sobra a ciência. No médio ou longo prazo não há muita dúvida: será o trabalho dos cientistas que vai tirar a humanidade dessa crise de saúde pública, com a descoberta de uma vacina ou medicamentos eficazes contra a Covid-19. Mas os vaivéns das pesquisas – que ora defendem, ora desacreditam tratamentos e remédios – alimentam no curto prazo um certo tipo de discurso anticientífico: a ciência é cheia de falhas e os cientistas não são imparciais (muitas vezes têm motivações políticas e econômicas). Isso conduz à descrença no mundo científico.

Mas aquilo que num primeiro momento parece ser uma fraqueza – a possibilidade de as teorias científicas serem falsas – é na verdade a grande força da ciência. E aquilo que pode parecer sua fortaleza, a certeza, é seu calcanhar de aquiles.

Um dos maiores nomes da filosofia do século 20, o austro-britânico Karl Popper (1902-1994) foi quem definiu com clareza o que caracteriza a verdadeira ciência. E, para fazer isso, ele colocou o senso comum de ponta-cabeça.

Segundo Popper, não é a verificação de uma grande quantidade de vezes que um fato ou fenômeno se repete na natureza que delimita o que é ciência. Mas sim a possibilidade de que a teoria possa ser considerada falsa, nem que seja por uma única ocorrência.

Ou seja, o trabalho do cientista não deveria ser buscar a prova de que uma teoria é verdadeira colecionando fatos e acontecimentos que a corroborem. Para o filósofo, a preocupação deveria ser mostrar que aquela argumentação é falsa. Esse processo é mais frutífero, diz Popper. Quando a teoria resiste a variados testes que tentam desacreditá-la, ela então pode ser considerada comprovada. Tentar desmentir a própria crença é o melhor caminho para descobrir se seus pressupostos não passam disso, uma crença, ou se podem ser considerados um fato objetivo.

Popper usou um exemplo para mostrar como a simples “contagem” das ocorrências de um fato natural pode levar ao equívoco. Por muito tempo, o mundo só conhecia cisnes brancos. Então poderia ser considerada verdadeira a afirmação: “Todos os cisnes são brancos”. Mas existem cisnes negros. Isso foi constatado após a descoberta da Austrália, no século 18, onde vivem espécimes nativas desse tipo. Um único exemplar negro refutou toda a “teoria” anterior.

Outro exemplo: “O sol se põe todos os dias”. Quem duvida dessa verdade? Verdade para quase todos. Mas não para moradores ou visitantes de altas latitudes, próximas do Círculo Polar, que presenciam anualmente o fenômeno do sol da meia-noite, quando o astro não se recolhe atrás do horizonte ao fim dos dias.

Popper constatou que são os fatos que desmentem aquilo em que se acredita que fazem o conhecimento objetivo evoluir. E isso é válido mesmo para teorias de gigantes da ciência. O físico britânico Isaac Newton (1643-1727) formulou sua majestosa teoria da gravitação universal, que se transformou no cânone da ciência por mais de dois séculos. Foi um avanço inegável. Mas era apenas uma aproximação da verdade. Não traduzia “a verdade”. Havia alguns fenômenos que ela não explicava. E então veio o alemão Albert Einstein (1879-1955), com sua teoria da relatividade. Einstein preencheu essas lacunas, superou Newton e aproximou o conhecimento humano ainda mais da verdade.

Para Popper, a tentação de transformar determinado enunciado em dogma (uma certeza) só engessa a evolução da ciência. Por isso as controvérsias que cercam as teorias e descobertas – tão comuns nesses tempos de pandemia – não são um defeito, mas sim uma qualidade. O conhecimento científico caminha mais rápido por meio das críticas (muitas vezes pesadas) e pela tentativa de desacreditar as pesquisas.

A polêmica que envolveu o uso da cloroquina contra a Covid-19 exemplifica isso. Inicialmente, parecia ser o tratamento mais promissor. Mas foram surgindo mais e mais estudos que não corroboraram a sua eficácia.

O pensamento de Popper também joga luz sobre outra crítica que se faz à ciência: a de que os cientistas carregam crenças e convicções pessoais que contaminam a objetividade de seu trabalho.

E, novamente, a cloroquina é exemplo disso. A “guerra” entre defensores e detratores saiu do campo científico para adentrar a política. Em determinado momento, parecia haver cientistas de esquerda e de direita, cada qual forçando a mão para provar que a tese defendida por seu grupo ideológico sairia vencedora. Ou seja, fatores subjetivos – a tentação de cada pessoa de dizer que está certa; e até mesmo a ideologia de cada um – teriam levado cientistas a serem parciais na análise dos dados.

Mas Popper destaca que pressupostos baseados em equívocos não resistem por muito tempo ao choque com os fatos – o que vem ocorrendo com a cloroquina. Isso acontece não exatamente por causa do subjetivismo do cientista; mas porque esses pressupostos são inerentemente errados.

Aliás, mesmo as teorias nascidas de convicções subjetivas, quando resistem a sucessivas críticas públicas, tornam-se objetivas e resistem ao tempo. Então, uma teoria não pode ser desacreditada pelas crenças ou ideologia do cientista. Mas sim pela incapacidade de se manter de pé quando confrontada com a realidade.

Popper cita uma curiosa anedota histórica que mostra isso com clareza. O astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) partiu de uma crença subjetiva para propor o heliocentrismo, a teoria segundo a qual é a Terra que gira ao redor do Sol e não o contrário. Copérnico, que também era padre, se recusava a aceitar o geocentrismo não por uma convicção científica. Mas sim por acreditar numa concepção filosófico-religiosa neoplatônica que afirmava ser Deus a luz e o centro do universo. A natureza, sendo uma criação divina, teria de obedecer a esse princípio de harmonia cósmica. E, portanto, o Sol (fonte de luz e símbolo de Deus) não poderia girar em torno da Terra (o homem).

O subjetivismo de Copérnico levou-o a deflagrar uma das maiores revoluções científicas de todos os tempos. E o que se estuda hoje não é a motivação religiosa dele; mas sua refinada teoria – que resistiu a todo tipo de críticas e tentativas de desacreditá-la.

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