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Democracia como máquina moderadora
| Foto: Alan Santos/PR

Ainda na transição, sugeri que o governo Bolsonaro traria dois movimentos. De um lado, muito barulho por conta de sua personalidade, da guerra cultural e da polarização política; de outro, a dinâmica moderadora das instituições e a vigilância difusa na sociedade.

Foi o que aconteceu. Temos um presidente com simpatias autoritárias, cuja propalada agenda conservadora, da qual constavam coisas como a ampla liberação do porte de armas, redução da maioridade penal e escola sem partido, naufragou solenemente.

Em seu lugar, emerge um país em claro processo de recuperação econômica. Menor taxa de juros, menor risco-país em uma década, inflação estabilizada e a perspectiva de um crescimento acima de 2% em 2020.

Este governo se move a partir de um dualismo: estridência retórica e algum pragmatismo na tomada de decisões

No plano institucional, temos um Congresso com inédito protagonismo. Ainda esta semana aprovamos o novo marco legal do saneamento básico. Pequena revolução que o Congresso tomou para si, num exemplo quase perfeito do modelo de corresponsabilidade institucional. Há quem fique nervoso vendo estas coisas. Gente que fica horrorizada quando o governo não tem o comando do Congresso. De minha parte, acho isso ótimo para a democracia.

Há ainda os que analisam o país a partir das confusões semanais do presidente. Dias atrás escutei um analista aborrecido com o fato de ninguém da “elite” dar muita bola para os bate-bocas de Bolsonaro com Greta Thunberg, Leo DiCaprio e setores da mídia. Coisas que nos fazem “passar vergonha”. O analista tem razão, mas desconfio que isso não se resolveria mesmo que toda a elite gastasse algumas horas do dia chorando em algum cantinho da Faria Lima.

Este governo se move a partir de um dualismo: estridência retórica e algum pragmatismo na tomada de decisões. O modo como começamos e terminamos o ano é sintomático. No início, muita conversa sobre a transferência da embaixada em Israel. Logo depois, o recuo. Nas relações com a Argentina, o palavrório de guerra no inicio. Logo após, a reaproximação.

Nos dois casos, o mesmo movimento. Início retórico, alguma agitação nas redes sociais e o recuo no dia seguinte. Há muito de despreparo nisso, mas há também um método. Ao radicalizar, Bolsonaro mira sua rede de ativistas digitais; ao recuar, segue demandas de Estado e alguma racionalidade. Seu exército militante entende o recuo (militantes sempre entendem o chefe, não?) e o mercado acha graça na conversa fiada. E a vida segue.

O efeito de contenção das instituições se fez presente o ano inteiro. Na reforma da Previdência, retirou-se a capitalização; na Lei da Liberdade Econômica, saiu a minirreforma trabalhista que o projeto do governo continha; no pacote anticrime, de Sergio Moro, o Congresso deixou para trás temas insustentáveis, como a excludente de ilicitude, sendo sua versão moderada aprovada por líderes da oposição, como Marcelo Freixo.

O governo cometeu erros importantes em 2019. O maior deles, não há dúvidas, é no terreno da educação. O ministro Weintraub se dedicou a uma inútil guerrilha ideológica com a esquerda educacional. Além de não ser esta a sua função, é inócuo. Sua aposta prossegue sendo em nossa falida estrutura estatal de ensino. Um centímetro abaixo da conversa ideológica, sua política, em particular no ensino básico, é a mesma que nos levou à tragédia nacional que surge no Pisa a cada três anos. Com isso, curiosamente, ninguém parece muito envergonhado.

O governo cometeu erros importantes em 2019. O maior deles, não há dúvidas, é no terreno da educação

Não poucos verão como acertos o que chamo de erros. Não sou dos que exigirão, na ceia de Natal, que o tio ou a cunhada peçam desculpas pelas ideias que apoiaram ao longo do ano. A beleza da democracia é exatamente tomar como legítima a visão dos outros. O resto é soberba.

Nossa democracia mostrou, neste ano difícil, uma imensa máquina moderadora de posições. Não da retórica (que não tem conserto), mas da decisão pública. A quem não entendeu isso, sugiro aproveitar o final de ano para pensar. E esqueça um pouco a política. 2020 com um pouco menos de toxina ideológica fará bem para todo mundo.

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