Presidente alemão Frank-Walter Steinmeier e o presidente polonês Andrzej Duda acendem velas em um memorial como parte das comemorações dos 80 anos desde o início da Segunda Guerra Mundial, em 1º de setembro, em Wielun, Polônia| Foto: Krzysztof SITKOWSKI/POOL/AFP

“Essa guerra foi um crime alemão”. Com essas palavras, o presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, abriu um pedido de desculpas, em nome de seu país, na Polônia. O chefe de Estado alemão participou de uma série de eventos em memória dos oitenta anos do dia Primeiro de Setembro de 1939, o início da guerra mais letal da humanidade. Os eventos foram em Varsóvia, a capital, e em Wielun e em Gdansk, as cidades onde as hostilidades começaram. A oportunidade é interessante para compreendermos mais alguns desses eventos, que influenciam o mundo de 2019 muito mais do que pensamos.

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É importante a palavra “compreender”. Isso implica não numa aceitação, numa aprovação, mas no entendimento das razões, das origens e dos eventos, justamente para que não se repitam. E, para evitar essa repetição de erros, é necessário ir além da superfície, dos chavões e do que foi criado posteriormente. É imergir na mentalidade das pessoas no último dia de Agosto de 1939. Uma dessas questões é a falta de fronteiras naturais históricas da nação polonesa. Os poloneses possuem uma identidade nacional de mais de mil e quinhentos de rica História, em uma trajetória bastante atribulada.

Fronteiras naturais

Quando o leitor pensa na França, por exemplo, é fácil delimitar seus limites. O rio Reno à leste, os Pirineus ao sul, os Alpes no sudeste, aproximadamente. O que está dentro desses limites, em um longo e violento processo histórico, se configurou no que conhecemos como França hoje. Rios, montanhas, florestas, diversos acidentes geográficos servem de fronteira no mundo inteiro. Não no caso polonês. A própria origem do nome está na palavra eslávica para “planície”. Isso quer dizer que, por séculos, não existiam fronteiras naturais entre poloneses e seus vizinhos.

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Isso implica que, em momentos de declínio do poderio militar polonês, seu território era alvo fácil de invasões. Os poloneses são, em geral, eslavos e católicos. Ao sul estavam seus vizinhos austríacos, germânicos católicos. No leste, os russos, também eslavos, mas ortodoxos. No oeste, germânicos que eram católicos na chamada Idade Média e progressivamente adotaram o protestantismo nos séculos XVI e XVII. O enunciado de características étnicas e religiosas é para lembrar que, por séculos, na Polônia e nos Estados Bálticos, que esses mundos se cruzaram.

Guerras religiosas, conversões pela força, dinastias com variadas lealdades. Tudo isso fez parte da região por séculos. As cruzadas não foram apenas contra muçulmanos em Jerusalém, mas também no norte. A pouco conhecida Cruzada da Lituânia compreendeu mais de duzentos anos de combates entre católicos de um lado e “pagãos” e ortodoxos do outro. Para resumir séculos de História, a consolidação de potências vizinhas da Polônia levou às chamadas Partições da Polônia. Áustria, Rússia e Prússia fizeram o que o nome implica: retalharam a Polônia em diferentes pedaços para cada um dos impérios.

Por mais de cem anos, do final do século XVIII até 1918, não existiu uma Polônia independente. Revoltas locais foram esmagadas, como em 1848, na Primeira dos Povos, para protestos do Papa. Os poloneses foram usados como combatentes em variadas agendas políticas, como por Napoleão, que criou o satélite Ducado de Varsóvia. Na Primeira Guerra Mundial, cerca de dois milhões de poloneses lutaram em exércitos opostos. A principal tropa polonesa combateu pelos exércitos austro-húngaros, com o objetivo de derrotar a Rússia do Czar e recriar seu país.

Terras com dois nomes

O líder essa legião era Józef Piłsudski, militar considerado o pai da Polônia moderna e teórico de geopolítica, além de virtual ditador de seu país por uma década. O Estado polonês foi restaurado do mundo pós-Primeira Guerra Mundial, com territórios perdidos pela Alemanha em Versalhes e territórios conquistados na guerra Polonesa-soviética de 1919, simultânea à guerra civil russa entre czaristas e bolcheviques. Ainda assim, o problema da ausência de fronteiras naturais permanecia na Polônia do entreguerras. Agora, agravado com o fato do ressentimento de uma Alemanha derrotada logo ao lado.

Essa tensão fronteiriça era agravada pela “solução” adotada em Versalhes. Para manter a Prússia histórica com os alemães e, ao mesmo tempo, possibilitar acesso marítimo ao novo Estado polonês, foi criado o infame Corredor Polonês. Uma faixa de território em que a maioria da população era alemã, sob governo polonês, culminando em um importante porto que foi declarado uma “Cidade Livre”. Uma receita para tensão. Não à toa a expressão “corredor polonês” foi usada para nomear uma “brincadeira” em que alguém sofre trotes ao passar por uma fileira de pessoas.

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No entreguerras, cerca de um milhão de alemães abandonaram ou foram expulsos da região do corredor. O governo polonês realizou políticas de colonização da região. Um território que os poloneses diziam ser historicamente seus, enquanto alemães diziam o mesmo, sob a ótica prussiana. Diversos lugares da região possuem dois nomes, um alemão e um polonês. A cidade de nascimento de Manfred von Richthofen, o famoso Barão Vermelho, se chamava Breslau em 1892, quando de seu nascimento; agora se chamava Wrocław. O importante porto era Danzig para os alemães; a Gdansk dos poloneses.

A invasão da Alemanha nazista era vista pelos nacionalistas de então como uma mera retomada do que “era seu”. Um novo round de uma disputa de centenas de anos. Inclusive, uma continuação do round anterior. Os primeiros disparos da Segunda Guerra Mundial não foram realizados por um novo e moderno equipamento militar, não foram no contexto da nascente guerra relâmpago, a blitzkrieg. Foram realizados pelo velho encouraçado Schleswig-Holstein, lançado ao mar em 1906, remanescente da Marinha Imperial da guerra mundial anterior, que “retornava” ao porto de Danzig.

Os anos que se seguiram foram de violência, destruição e o extermínio sistemático de determinados grupos de pessoas, como judeus e povos roma. A parte ocidental polonesa, antiga posse prussiana, foi anexada diretamente ao III Reich; o restante do país foi organizado no Governo Geral, uma dominação imperial do território. Parte considerável da população polonesa do Governo Geral foi reduzida à escravidão no esforço de guerra alemão. Tudo isso é inegável e extremamente documentado. Negar o Holocausto em 2019 é de extrema desonestidade intelectual.

Uma nova partição da Polônia

O ponto aqui é entender um tensão que durava séculos, uma disputa por territórios que duas nações enxergam como seu, e exclusivamente seu. Algo que motivou o apoio de milhões de pessoas à uma guerra destrutiva, e baseou a solidariedade de outros milhões de pessoas. O mesmo sentimento que baseou um pacto até hoje debatido. No dia 17 de Setembro de 1939, após a queda do governo soberano polonês, tropas soviéticas invadiram a Polônia e os três Estados Bálticos. A invasão pela fronteira oriental tornou os esforços de resistência poloneses em um mero adiar do inevitável, acelerando a rendição do país.

A racionalização do pacto, entretanto, possui mais relação com as partições do século XVIII do que com um pacto ideológico entre os governos de Hitler e de Stálin; superficialização movida por emoção que têm se tornado comum. Os soviéticos pretendiam retomar os territórios perdidos ou cedidos no esfacelamento do antigo império czarista. Além disso, no mês anterior colapsaram as conversas entre França, Reino Unido e URSS para uma aliança defensiva contra uma eventual agressão alemã. Essa negativa foi decisiva para que o governo de Stálin aceitasse a oferta alemã de acordo.

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O principal encontro ocorreu em Doze de Agosto de 1939, em Moscou, entre o almirante britânico Sir Reginald Drax, o general francês Aimé Doumenc e o comissário soviético da defesa, Kliment Voroshilov. O governo britânico protelou as conversas, influenciado pelas alas de seu governo que acreditavam que o alvo alemão seria justamente os soviéticos, o principal alvo ideológico do nazismo. No dia 23 do mesmo mês, a delegação alemã pousou em Moscou. O governo de Stálin sabia que não podia se comprometer com um conflito em larga escala naquele momento, e necessitava de alguma garantia, de algum lado.

Novas fronteiras

Essa é uma abordagem resumida, já que as relações militares entre soviéticos e alemães vinha desde o início dos anos 1920, com Weimar, já que ambos os países eram excluídos do sistema internacional estabelecido em Versalhes. Hoje, os territórios então poloneses que foram ocupados pelo Exército Vermelho são parte da Lituânia, da Belarus e da Ucrânia. A cidade ucraniana de Lviv é, para os poloneses, Lwów. Para os alemães, Lemberg. Para os nacionalistas poloneses mais radicais, que possuem voz no governo atual, a partição da Polônia ainda não foi remediada.

A questão das fronteiras naturais foi remediada ao final da Segunda Guerra Mundial, primeiro propostas na conferência de Ialta e ratificadas em Potsdam. Agora, a separação entre Alemanha e Polônia está na linha Oder-Neisse, nomes de dois rios que agora servem de fronteira natural. Mais de 20% do território alemão do pré-Segunda Guerra foi anexado pela Polônia, com a exceção do enclave de Kaliningrado, a antiga Königsberg, histórica capital prussiana, ainda hoje posse russa. Cerca de dez milhões de alemães que ali habitavam se tornaram refugiados.

No leste, a fronteira polonesa é a linha Curzon, proposta pelo secretário de relações exteriores britânico George Curzon, em 1919, como fronteira original polonesa, antes da guerra com os bolcheviques. Milhões de ucranianos e russos foram expulsos da Polônia do entreguerras, assim como milhões de poloneses foram expulsos de repúblicas soviéticas após 1945. Hoje, cerca de 6% da população lituana é etnicamente polonesa, assim como 2% da população alemã e 3% da população de Belarus. Na Polônia, cerca de 1% da população possui origem alemã, com minorias de bielorrussos e ucranianos.

Esses números são importantes pois, embora seja fácil abstrair e falar de linhas no mapa como mera divisão burocrática, no fundo, trata-se de pessoas. Milhões que tiveram suas vidas afetadas, até destruídas. Uma disputa que durou gerações e uma série de conflitos, mais ou menos conhecidos. Cidades com nomes e importâncias culturais diferentes, mas não menos importantes. Fronteiras que finalmente foram estabilizadas. A Alemanha e seu povo, via seu presidente, sabem o preço que aquelas tentações autoritárias e nacionalistas impuseram. Uma lição que não pode ser deixada de lado.

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