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OMS
OMS virou palco de uma disputa de poder entre EUA e China| Foto: Fabrice COFFRINI/AFP

Nessa segunda-feira, dia 18 de maio, começou a assembleia anual da Organização Mundial da Saúde (OMS). A assembleia, habitualmente realizada na neutra Suíça, é realizada em 2020 de maneira online, excepcionalmente. O motivo é a pandemia do novo coronavírus, o próprio cerne da questão discutida na assembleia dos 194 países integrantes da OMS junto da administração da organização, eleita pelos mesmos 194 países. Esta coluna é escrita enquanto os fatos se desenrolam, o que recomenda cautela, do autor e dos leitores. Independente disso, a atual assembleia é um dos mais importantes ringues da disputa em curso entre Washington e Pequim.

A questão é dividida em diversos aspectos. Um deles já foi explicado aqui nesse espaço, a ausência de Taiwan da OMS, queixa do governo dos EUA. Um problema decorrente do próprio reconhecimento internacional da República Popular da China. Não seria prático estender novamente o assunto, então, registre-se a recomendação de leitura do texto anterior, caso ainda não tenha feito.

Outras facetas são a avaliação do papel da OMS na gestão da atual crise; a eventual responsabilidade chinesa, e o tamanho dessa responsabilidade, na origem dessa pandemia; finalmente, a coordenação e liderança de esforços na busca por uma vacina que represente uma superação da pandemia.

Tudo isso pode soar meramente técnico, restrito aos prismas da biologia, da medicina, da farmacologia e outros campos similares do conhecimento. Essa é uma visão que transformaria essas questões em coisas mais simples, entretanto, é uma visão longe da realidade. Estamos falando de economia, de dinheiro, de cultura, de questões sociais e de política, muita política. De relações internacionais em uma ordem mundial em progressiva mudança desde o fim da chamada Guerra Fria, em 1991. Nesse sentido, estão envolvidos também a influência dos países, suas imagens e capacidade de articulação política.

Em termos práticos, foram produzidas três fontes que, caso seja de interesse do leitor, ele pode consultar; infelizmente, restritas aos que compreendem o idioma inglês. A primeira delas é uma proposta de resolução da União Europeia, copatrocinada pela Austrália e que já conta com o apoio de 116 países, inclusive o Brasil. Se dois terços da assembleia aprovar, ela passa, ou seja, faltam catorze países, no momento em que essa coluna é escrita. A resolução propõe a criação de uma missão com amplos poderes para “analisar e avaliar” as “origens e difusão do novo coronavírus”, de forma “imparcial, independente e ampla”, no “momento conveniente assim que possível”.

O texto não faz menção explícita à China, ao governo chinês ou à região de Wuhan, tentando ser o mais técnico possível. Por exemplo, coloca que a missão teria mandato para que "identifique a fonte zoonótica do vírus e a via de introdução à população humana, incluindo o possível papel de hospedeiros intermediários, inclusive através de esforços como missões de campo científicas e colaborativas". Bem longe de uma eventual grafia que diga “queremos descobrir se a culpa é dos chineses e o que o governo deles aprontou”, qualquer coisa do tipo.

A segunda fonte é o discurso de Xi Jinping na abertura da assembleia, em que ele defendeu a conduta de seu país embora tenha admitido que "lições podem ser aprendidas" e que "a China apoia a ideia de uma revisão abrangente da resposta global à Covid-19 depois que a doença for controlada, para coletar experiências e deficiências". Ele também mencionou a oferta de dois bilhões de dólares pelos próximos dois anos para o orçamento da OMS. Finalmente, o que teve mais destaque na imprensa internacional, o anúncio de que, com um eventual desenvolvimento de uma vacina pelos chineses, ela seria de propriedade livre para ser usada pelo mundo, sem necessidade de pagamentos ou royalties.

Finalmente, a terceira fonte é a carta de quatro páginas do governo dos EUA, assinada por Donald Trump, para o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. A carta aponta contradições no comportamento do cientista etíope, denuncia o que Washington vê como interferências chinesas na OMS e critica Pequim por falta de transparência. Essa opacidade teria custado milhares de vidas e imensuráveis prejuízos econômicos ao mundo. A carta também defende que Taiwan possa participar da assembleia da OMS, embora, repita-se, essa não é uma decisão que esteja ao alcance da caneta de um diretor-geral da OMS. A carta encerra com um ultimato. Caso não ocorra uma “reforma da OMS”, o governo Trump pode tornar permanente o corte de fundos dos EUA para a OMS e até mesmo reconsiderar a participação do país na organização. A carta não especifica quais tipos de reformas.

Feita essa contextualização factual, o que essas atitudes podem significar e implicar? Primeiro, e talvez mais óbvio, uma disputa entre EUA e China pelo protagonismo nesse momento. O que talvez não seja óbvio é a maneira que travam essa disputa, especialmente pela mudança de comportamento chinês. A China passou meses com um comportamento defensivo, classificando toda e qualquer crítica ao modo como lidou com o novo coronavírus como ataques ao povo chinês ou até mesmo racismo. Claro, isso não exclui o fato de que existiram condutas racistas pontuais em relação aos chineses, a questão aqui foi o comportamento irredutível em relação à toda e qualquer crítica.

A China começa, então, uma “charm offensive”, uma “ofensiva de simpatia”, em tradução livre da expressão. O cúmulo disso é Xi Jinping falar, perante uma assembleia mundial, que a conduta perante o vírus deve ser analisada em um momento posterior, que aprendizados podem ser absorvidos, abrindo a carteira para o orçamento da OMS. A mensagem que ele deseja transmitir fica clara: enquanto eles em Washington cortam o financiamento em 400 milhões de dólares por ano, nós da China dobramos a aposta com dois bilhões em dois anos. Finalmente, uma eventual vacina de presente para o mundo.

Por sua vez, o governo dos EUA abre mão, ao menos de forma momentânea, de um papel de coordenação e parte para o ataque. A ideia é apontar, sempre que possível, que a pandemia, na visão de Washington, é decorrente da inação, da opacidade ou da incompetência chinesa. E que Pequim deve ser cobrada por isso.

Uma coisa que sempre busca-se frisar aqui: nada disso se trata de um julgamento moral. São interesses envolvidos e, na defesa desse interesse, existem várias ferramentas. Uma delas é o ataque. No caso presente, também serve para amenizar ou nublar os erros do governo Trump ao lidar com o novo coronavírus em seu território.

Isso já foi abordado no texto chamado Os verdadeiros motivos do uso do termo “vírus chinês” pelos EUA. Não é desejo de precisão, ou imprecisão, técnica. É um termo que faz parte de um ringue político. A carta de Trump deixa isso bem claro em suas acusações, incluindo a defesa de Taiwan, afirmando que “democracias vibrantes” vão apresentar resultados melhores do que regimes autoritários como o chinês. Essa é uma postura arriscada, já que colocar os EUA na ofensiva pode criar também um vácuo na governança global em relação à pandemia. Por exemplo, retirar os EUA da OMS seria um desastre, deixando a cautela de lado.

O motivo de escrever isso? Oras, estamos falando de uma pandemia como não se via desde cem anos atrás. Na mente de um idealista, se há um momento em que a cooperação é necessária, é agora. E, se deixarmos de lado utopias ou ideias de cooperação liberal, mantendo o raciocínio restrito à interpretação realista, como é salutar em relações internacionais, também seria um desastre. Se existe um momento importante para um país exercer o máximo possível de sua influência na agenda de saúde e segurança sanitária global, é agora. Em ambos os cenários, retirar o país da OMS ou reduzir o papel ao apontar de dedos contra a China pode ser prejudicial no médio e longo prazo.

Por mais paradoxal que seja, isso pode prejudicar até mesmo uma conclusão científica honesta. A China, mesmo com a mudança de postura na sua imagem, mantém diversas resistências. O fato da Austrália ter sido uma das principais articuladoras da nova resolução pedindo por uma investigação causou uma escalada retórica e uma nova guerra comercial, com os chineses suspendendo compras de carne bovina e de cevada. Xi Jinping também deixou claro que apoia uma investigação “após a pandemia”. Enquanto Washington apenas bradar que é culpa dos chineses, Pequim vai ganhar tempo e até mesmo cooptar o próprio processo de investigação.

Qual a proposta dessa coluna então? Que as acusações de Washington sejam acompanhadas da cooperação. Um não exclui o outro. Ameaçar sair da OMS não é produtivo. Outra postura não muito produtiva foi a de Washington não fornecer um efusivo apoio à resolução europeia, justamente por ela não ser explícita e não mencionar a China ou Wuhan. Oras, os países europeus, a Austrália, esse colunista e qualquer pessoa sabe que uma proposta de investigação que explicite a China ou Wuhan não seria aprovada. É talvez o melhor exemplo de como é necessário um equilíbrio entre o antagonismo e a cooperação nas relações internacionais.

Uma nota importante é que Trump “cedeu o palco” para Xi Jinping. A OMS convidou ambos para discursarem, e Trump recusou. Foi substituído pelo seu secretário da Saúde, Alex Azar, que não anda falando a mesma língua que o médico Anthony Fauci. O imunologista é uma das principais figuras da força tarefa da Casa Branca contra o novo coronavírus, e os ruídos entre os dois seriam decorrentes da desconfiança de Fauci em relação aos laços de Azar com a indústria farmacêutica. Azar anunciou um pacote de nove bilhões de dólares em assistência aos países mais pobres afetados pelo novo coronavírus, mas seria a repercussão desse anúncio caso viesse da boca de Trump perante a OMS? Certamente muito maior.

Goste-se ou não, os países europeus que estão tendo mais sucesso em alcançar esse equilíbrio entre a demanda por investigações e a cooperação. O ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, por exemplo, disse que a OMS deve se tornar "mais independente da interferência externa", num recado mirando a China. Ao mesmo tempo, defendeu que o papel da OMS na "liderança e coordenação" deve ser fortalecido. Foi a inteligência alemã que teria descoberto que Xi Jinping teria pressionado o diretor da OMS em adiar o anúncio de emergência global; os tempos verbais se explicam por ainda se tratar de material vazado, nada confirmado oficialmente ainda, mas os laços entre a China e Tedros Ghebreyesus são bem documentados.

A própria escolha de um diretor-geral da OMS nasce do diálogo e do lobby das principais potências. Sair da OMS significa garantir que o ocupante do cargo será alguém cujo nome você sequer foi consultado. Peguemos de exemplo talvez o cargo internacional de mais visibilidade, o de secretário-geral da ONU. Nenhuma pessoa pode ocupar esse cargo se não for aprovada pelos cinco países do Conselho de Segurança da ONU, que possuem poder de veto. É absolutamente impossível um país impor um nome à revelia dos outros quatro e, depois disso, sem a maioria dos votos da Assembleia Geral da ONU.

Retornando ao exemplo europeu, a chanceler alemã Angela Merkel, em conjunto com o presidente francês Emmanuel Macron, tanto cobraram para mais transparência da China quanto estão capitaneando um pacote de meio trilhão de euros em auxílio econômico dentro da EU e também uma iniciativa global para a descoberta de uma potencial vacina. Os quatro pilares do plano são: estratégia de saúde, fundo de reconstrução para a solidariedade e o crescimento, aceleração da transição ecológica e digital e fortalecimento da capacidade e soberania industrial europeia. O último item soa saído de um projeto desenvolvimentista da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), mas trata-se diretamente de diminuir a dependência dos laços econômicos com a China, incluindo a produção de insumos de saúde.

No fim das contas, existe um componente que explica em parte a postura do governo Trump, mas que torna sua atuação ainda mais complicada. Uma encruzilhada ideológica, uma potencial contradição em seu discurso. O leitor precisa se lembrar de algo importante: não existe “a” OMS, como uma entidade supranacional “globalista”, com poderes para solapar a soberania nacional de cada Estado individualmente. E essa crise deixa isso cristalino. Por exemplo, em seu discurso, o secretário Azar afirmou: "Vimos que a OMS fracassou em sua missão central de compartilhamento de informações e transparência quando os Estados membros não agem de boa fé”. Sem boa fé, sem colaboração e transparência dos países soberanos, não é possível um trabalho efetivo da OMS, seja quem estiver no cargo.

Na carta de Trump, ele se queixa do fato de dois integrantes cidadãos dos EUA, em missão da OMS, terem sido barrados em Wuhan. Novamente, um país soberano pode barrar pessoas de outro por razões de segurança. E não precisamos nos ater aos países poderosos. Na coluna anterior, o leitor pôde ver como o pequeno Burundi expulsou a missão da OMS de seu país, desgostoso com a recomendação de não realizar eleições no momento. Para facilitar, traçamos um exemplo brasileiro. No início do século, a Agência Internacional de Energia Atômica designou uma missão para inspecionar as instalações nucleares brasileiras de ARAMAR.

Não havia obrigação brasileira específica naquele caso, e a AIEA teve que pedir autorização e negociar com o governo do Brasil. Nenhuma organização internacional tem autoridade para "entrar entrando", violando as soberanias nacionais. Não é "a" OMS que está em todo lugar coletando informações. Ela recebe as informações dos Estados-membro e as compartilha entre eles. Se necessário, e com autorização, realiza missões de investigação ou de cooperação, como nos episódios de ebola no continente africano. A diferença é que um país como Ruanda ou como o Congo não vai ter razões para ser opaco, já que contam com menos recursos para lidarem sozinhos com o ebola.

Nesse exemplo, então, assim que tem o primeiro caso, eles avisam a OMS, que já tem missões na região para lidar e, principalmente, conter a epidemia. Não é possível falar "a China está adulterando os números e não está sendo transparente, vamos entrar aí sem autorização e checar as informações por nós mesmos". O diretor geral da OMS, seja quem for, tem que coordenar uma cooperação, mas ela só funciona na medida que os outros cooperem ou não com ele. E qual o motivo de falar em encruzilhada ideológica? O meio de comprovar negligência ou até mesmo dolo nas ações chinesas é dar mais poderes para a OMS, uma organização internacional, possível de ser chamada de “globalista”.

Ou seja, algo que não apetece, para dizer o mínimo, o governo Trump. Daí a cartada de cogitar sair da organização. Não necessariamente precisa ser assim. O governo australiano, também de direita no espectro político, não está comprometido com essa questão. Desejam ao menos uma missão pontual da OMS que tenha muito mais autoridade e poder de investigação. Se ao ponto de violar uma soberania nacional? Difícil dizer agora. A esperança é que a pandemia sirva para melhor e maior cooperação internacional, já que vírus, bactérias e germes não respeitam fronteiras e não possuem preconceitos, podendo afetar qualquer ser humano. Muitas vezes se compara a atual pandemia com o acidente de Chernobyl, de 1986. Efeitos globais e um governo socialista tratando o evento como questão de segurança, não de saúde ou de cooperação.

O fato é que muito do que aprendemos sobre Chernobyl foi descoberto apenas posteriormente. Não no calor dos eventos. Ainda assim, a comparação pode ser um alento. Como consequência direta do acidente nuclear foi criada a Associação Mundial de Operadores Nucleares, em 1989, focada no intercâmbio de informações sobre segurança nuclear. No contexto da AIEA, foram assinados dois acordos como resposta direta, a Convenção sobre assistência em caso de acidente nuclear ou emergência radiológica e a Convenção sobre alerta antecipado de um Acidente Nuclear. Naquela ocasião, o mundo aprendeu com a dor e entendeu a necessidade de cooperação. Veremos se o mesmo ocorrerá dessa vez.

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