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Kim Jong Un (C) participa do desfile militar durante uma cerimônia para marcar o 75º aniversário do Partido dos Trabalhadores da Coreia na Praça Kim Il-sung, em Pyongyang| Foto: KCNA VIA KNS / AFP

A Coreia do Norte realizou um grande desfile militar no último sábado, dia dez de outubro. O evento marcou o aniversário de 75 anos do partido comunista do país, fundado logo após a Segunda Guerra Mundial por Kim Yong-bom e por Kim Il-sung, ambos líderes das guerrilhas contra a ocupação japonesa. Il-sung tornaria-se o primeiro Líder Supremo até sua morte, em 1994, sucedido por seu filho e, posteriormente, seu neto, o atual Líder Supremo Kim Jong-un, presente no desfile militar. Não é novidade que paradas desse tipo servem não apenas para funções cerimoniais, mas também para dar recados para a comunidade internacional quando pertinentes. No caso dessa semana, quais recados poderiam ser do interesse de Kim Jong-un?

Quase exatamente um ano atrás tivemos uma coluna de temática similar aqui no nosso espaço, daquela vez abordando a relação entre a China e os EUA. Já o desfile norte-coreano foi realizado à meia-noite, algo que não é exatamente comum. Se essa decisão foi tomada por algum motivo além da estética para os fogos de artifício, não sabemos. Ela foi transmitida ao vivo e uma versão editada de “melhores momentos” também foi exibida na televisão local. Kim Jong-un, na tribuna de honra, estava usando paletó e gravata no estilo ocidental, não a túnica mais habitual. Curiosamente, o comportamento contrário de Xi Jinping no ano passado, já que Xi costuma usar terno, mas revisou a parada usando uma túnica ao estilo Mao.

Kim não estava usando máscara, apesar da pandemia do novo coronavírus. Na verdade, ninguém estava usando máscara. Esse é o âmbito do primeiro potencial recado, já que Kim fez um pronunciamento e, nele, falou da pandemia. Disse que o país a enfrentou com coragem, sofrendo com falta de recursos, acusando as sanções internacionais, e tendo que enfrentar um tufão ao mesmo tempo. Segundo Kim, foram as forças armadas do país que protagonizaram o sucesso norte-coreano na luta contra o novo coronavírus que, segundo ele, não vitimou ninguém na Coreia do Norte. Claro que essa é uma afirmação impossível de ser verificada de maneira independente.

Recados

Ao falar da pandemia, Kim derrubou algumas lágrimas. Emoção genuína? Fingimento? Um misto? Certamente existirão tantas opiniões quanto leitores sobre isso. O fato é que, independentemente de serem genuínas ou não, foi uma ação tomada em público, com câmeras registrando. Isso dá significado político ao pranto, mesmo que genuíno ou mesmo que sem intenção de significados. Talvez transmitir “humanidade”? Proximidade, seja aos norte-coreanos, seja para a comunidade internacional? Para alguns, especialmente se foi um ato genuíno, pode ser interpretado como fraqueza, um comportamento emotivo demais, talvez. Não deixa de ser interessante, entretanto.

O principal recado do desfile não veio de Kim, veio de um veículo lançador autônomo de onze eixos carregando um míssil balístico de longo alcance. Isso faz do foguete o maior do arsenal norte-coreano e o maior do seu tipo em todo o mundo. Essa segunda afirmação não é exatamente um elogio, já que mísseis balísticos intercontinentais costumam ser lançados de silos fixos, mais protegidos e pré-preparados para um disparo. Um veículo lançador dessa proporção demanda muito tempo de preparo e é um alvo extremamente atraente para potenciais inimigos. O fato é que a exibição do novo míssil já gerou preocupação e especulação pela bacia do Pacífico.

O novo míssil estaria pronto, seria uma maquete de um novo desenho ou um modelo ainda não finalizado? Embora isso possa mudar o nível de preocupação, é um sinal inequívoco de que, embora com seu programa nuclear paralisado desde as conversas entre as repúblicas coreanas, o desenvolvimento de novos mísseis e foguetes segue. Outra especulação é se o novo modelo teria maior capacidade de carregar múltiplas ogivas nucleares. Um míssil balístico intercontinental com capacidade de atingir a costa da Califórnia carregando oito ogivas nucleares é uma ameaça seríssima à San Diego, Los Angeles e San Francisco. “Seríssima” como eufemismo para a possibilidade de destruição de parte considerável de ao menos uma delas.

Isso poderia ser interpretado como uma ameaça direta aos EUA. Para evitar isso, Kim afirmou que trata-se de uma arma de dissuasão, o que não é uma novidade para os leitores dessa coluna. O investimento norte-coreano em armamento estratégico é para garantir a proeminência do país em ao menos um quesito das negociações com a Coreia do Sul e os EUA, já que o país não tem como competir em termos econômicos ou de presença internacional. Além disso, o programa nuclear serve para salvaguardar contra qualquer ameaça militar.

Além do armamento estratégico

As palavras de Kim foram: “Temos poder de dissuasão que pode deter e controlar suficientemente quaisquer ameaças militares que nossa nação sagrada enfrenta e pode enfrentar. (...) Definitivamente, não quero que nosso poderio militar seja usado contra ninguém. Esclareço que não estamos fortalecendo nossa dissuasão de guerra contra alguém em específico”. E a maior parte da imprensa mundial focou os comentários sobre a parada militar no novo míssil. Isso é, para esse colunista, um problema, já que a Coreia do Norte exibiu, proporcionalmente, avanços muito maiores em setores convencionais da indústria bélica, independente do novo míssil balístico.

E esse é um recado interessante, de que a Coreia do Norte está indo além das armas estratégicas. O exército norte-coreano exibiu novos uniformes com padrões digitais de camuflagem, substituindo as fardas de modelo soviético ainda utilizadas. Os soldados desfilaram com profusão de equipamento tático moderno, como coletes balísticos, óculos de visão noturna, sensores ópticos de temperatura e supressores de ruído acoplados nas armas, popularmente chamados de “silenciadores”. Também foram exibidos dois novos fuzis. Um é uma versão modernizada do armamento padrão norte-coreano, o Tipo-88, por sua vez uma cópia local do AK-74, e outro uma cópia local do novo AK-12.

Longe da imagem de um exército antiquado em seus equipamentos e no visual, as forças norte-coreanas exibiram soldados certamente melhor equipados para uma guerra moderna. Também exibiram um novo veículo leve de combate multifunção, um novo sistema antiaéreo, possivelmente cópia local do Tor russo, e um novo carro de combate, o popular tanque, com blindagem reativa. No caso dos veículos o ceticismo volta à ser parte importante, já que, em 2020, o recheio de um vetor de combate é tão, ou mais, importante quanto seu desenho exterior. Radares e sensores, por exemplo. Outra mudança apresentada foi estética, com uma guarda de honra com uniformes de gala em estilo soviético. Possivelmente um contingente que se apresentaria no Nove de maio em Moscou, celebrando os 75 anos do fim da guerra.

Finalmente, além da emotividade e dos armamentos, outro recado do desfile foi literal, com palavras de Kim Jong-un direcionadas para a Coreia do Sul.  “Estou muito grato por todos os nossos cidadãos estarem saudáveis. Desejo boa saúde a todos os que estão lutando contra o vírus no mundo todo. Também envio calorosas saudações aos irmãos do sul com o mesmo desejo. Estou ansioso pelo dia em que triunfaremos sobre a crise de saúde e o Norte e o Sul ficarão de mãos dadas”. Numa tacada só, Kim culpa a pandemia pelo congelamento das conversas coreanas e insinua que está disposto ao diálogo, talvez pós pandemia, sem parecer um pedido por ajuda. Dentre os vários recados do desfile militar, esse talvez tenha sido o principal.

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