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O premiê britânico, Rishi Sunak, que apresentou a Proposta de Windsor para resolver o impasse da circulação de mercadorias na Irlanda do Norte
O premiê britânico, Rishi Sunak, que apresentou a Proposta de Windsor para resolver o impasse da circulação de mercadorias na Irlanda do Norte| Foto: EFE/EPA/CHRIS J. RATCLIFFE

O referendo em que a população britânica autorizou o Brexit ocorreu em 2016, mas novos capítulos dessa novela continuam. A saída do Reino Unido da União Europeia não seria fácil nem algo simples, como previsto no período, mas a instabilidade e a incompetência política britânicas complicaram ainda mais a situação. Nessa última segunda-feira (27), tivemos o anúncio de mais um acordo pós-Brexit e a pergunta que todos se fazem é: será que agora a situação será resolvida e os atores envolvidos poderão seguir adiante?

Como já mencionamos mais de uma vez aqui em nosso espaço, o Brexit é particularmente sensível na ilha da Irlanda, dividida entre a independente República da Irlanda, ao sul, e a Irlanda do Norte, ao norte, parte do Reino Unido. Depois de décadas de conflito interno, a paz assinada em 1998 na prática aboliu a fronteira dentro da ilha, com livre trânsito entre a República da Irlanda, país membro da UE, e o Reino Unido. O livre trânsito é essencial para a manutenção da paz e diminuição da violência sectária.

Por razões comerciais, entretanto, o Brexit restauraria a fronteira, criando um impasse. Ocorreram, infelizmente, episódios de violência. A solução foi “deslocar” a fronteira para o mar. Produtos oriundos da UE que entrassem em território do Reino Unido via Irlanda precisariam passar pelos controles alfandegários nos portos no mar da Irlanda. Essa solução, por sua vez, desagradou os unionistas, tanto na Irlanda do Norte quanto em alguns setores ingleses, que enxergam uma clivagem interna ainda “culpa” da UE.

Essa oposição fez com que o Sinn Féin, partido unionista republicano, conquistasse seu melhor resultado eleitoral na Irlanda do Norte em maio de 2022, com a maior bancada, 27 parlamentares em uma casa de 90 assentos. O governo está vago desde o início de fevereiro do ano passado, com os dois maiores partidos não conseguindo articular um governo de união. Theresa May, Boris Johnson, articulador do acordo vigente, e Liz Truss não conseguiram resolver essa questão.

Proposta de Windsor

Agora foi a vez de Rishi Sunak apresentar sua proposta para uma ilha da Irlanda pós-Brexit. A proposta possui 29 páginas e foi chamada de Proposta de Windsor. A primeira mudança é que o Protocolo da Irlanda do Norte, nome da estrutura vigente, será totalmente descartada. Agora a fiscalização aduaneira não será mais feita nos portos, mas em vias comerciais específicas. Mercadorias britânicas para a Irlanda do Norte trafegam pela “via verde”, enquanto as para a UE irão pela “via vermelha”.

A via verde terá menos burocracia e fiscalização, com compartilhamento de dados e rótulos “inteligentes”, enquanto produtos da Irlanda do Norte para a ilha da Grã-Bretanha seriam isentos. Transportadoras precisarão compartilhar seus dados com as autoridades da UE. Foi elaborada também uma lista de produtos isentos ou sujeitos à fiscalização sanitária, assim como regras para o trânsito de animais domésticos, como a necessidade de chips veterinários com as informações dos animais.

Bebidas alcóolicas pagarão impostos no Reino Unido, enquanto outros tipos de mercadorias poderão pagar impostos na UE, com algumas regras fiscais europeias vigentes. Nesses casos, o Tribunal Europeu de Justiça terá jurisdição, o que certamente causará protestos e aborrecimentos de unionistas irlandeses e alguns conservadores britânicos. O governo Sunak se defende afirmando que menos de 3% dos produtos comercializados estarão sujeitos à jurisdição europeia.

Por outro lado, o novo acordo introduz uma medida fiscalizadora para a Irlanda do Norte, o “Freio de Stormont”, como é chamado o parlamento local. Se 30 parlamentares norte-irlandeses tiverem objeção à uma medida ou decisão, o parlamento local precisa debater o tema por duas semanas e, caso o apoio seja mantido, o tema é submetido ao voto. Em caso de aprovação, a regra europeia não será implementada automaticamente, necessitando uma arbitragem por um terceiro ator.

O número de 30 parlamentares foi sugerido pelo fato de que dificilmente um único partido norte-irlandês conseguiria esse número e, mesmo que conseguisse tal bancada, ainda seria minoria em um voto geral. Isso impediria que um partido “abusasse” da medida e decidisse ser contra toda e qualquer medida. Na atual situação, é necessário que nacionalistas e unionistas norte-irlandeses concordem sobre a Proposta de Windsor para que a proposta entre em vigor. Provavelmente isso deve ocorrer após certo debate interno.

Chá e rebelião

A Irlanda do Norte precisa seguir em frente em relação ao Brexit e os parlamentares de ambos os partidos sabem que dificilmente conseguirão um acordo melhor que esse. Essencialmente pois, como já explicado aqui em nosso espaço, a Irlanda precisa de algo totalmente contraditório: dois territórios com regras comerciais e fiscais diferentes, mas com uma fronteira aberta. Todos precisam ceder alguma coisa para um acordo final e, depois de seis anos de novela, querem o fim dessa situação.

Na ilha da Grã-Bretanha, o acordo foi anunciado com mais pompa e confiança. Rishi Sunak apresentou o acordo como uma vitória e uma obra do pragmatismo. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, chamou Sunak de “querido”, classificou o acordo como “novo capítulo” de uma “relação mais forte” e terminou o dia tomando chá com o rei Charles III no castelo de Windsor. Isso não quer dizer, entretanto, que o acordo não possui seus críticos na Câmara dos Comuns.

Segundo a imprensa britânica, o ex-primeiro-ministro Boris Johnson pode liderar uma pequena “rebelião conservadora” contra o acordo proposto. Primeiro, seria uma defesa do legado do acordo negociado em seu governo. Segundo, manteria ele como principal líder da facção pró-Brexit dos conservadores. Principalmente, algo que a imprensa britânica não tem muita coragem de cravar: aumenta o “valor de seu passe” para cargos ou eleições futuras. Por exemplo, Boris estaria de olho no cargo de secretário-geral da OTAN, em outubro.

A preocupação de Sunak, como líder conservador, é que essa rebelião afete ainda mais a já rachada coesão de seu partido faltando alguns meses para as eleições locais britânicas, marcadas para o início de maio. Os trabalhistas, por outro lado, vão surfar na campanha de que todas as eventuais mazelas recentes do país são culpa dos conservadores, incluindo o próprio Brexit e as demoradas negociações posteriores. Rishi Sunak precisa que seu acordo seja aprovado, e rápido, para consolidar sua posição.

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