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guerra síria
Explosão após ataques aéreos russos na vila de al-Bara, no sul da província de Idlib, no noroeste da Síria, em 5 de março de 2020| Foto: Omar HAJ KADOUR/AFP

A vida de milhões de sírios continua sendo discutida como uma commodity. Isso para sermos gentis, quando não são usados como verdadeiros escudos humanos sob a mira de fuzis e de aviões. Essa é a consequência direta da soma da continuidade do conflito na Síria, das ações da Turquia e da falta de coesão da União Europeia sobre o assunto, mesmo com a crise de refugiados já durando mais de cinco anos. São esses os problemas de verdade, o que precisa ser resolvido.

É muito mais fácil imputar responsabilidade no refugiado, a pessoa física, ver um vilão, um “bárbaro”, onde existe apenas uma pessoa querendo sobreviver ao conflito em seu país e fornecer sustento à si e aos seus. As palavras refugiado e imigrante parecem sinônimas, mas não significam a mesma coisa, nem na lei, nem no conceito. Para milhões de pessoas irem da Síria ou da Líbia para a Europa é porque algo aconteceu no local de origem dessas pessoas; no caso, a destruição de seus países por interferências estrangeiras.

Ditadores e aliados 

Não se trata de defender os governos de Bashar al-Assad ou de Kadafi. O ditador sírio é um herdeiro de uma dinastia autoritária que foi alçado ao posto de sucessor ungido do pai com a morte precoce de seu irmão, Bassel al-Assad. Seu irmão que era preparado desde tenra idade para governar o país; sim, como em uma dinastia. O oftalmologista Bashar al-Assad, de repente, teve que se tornar figura pública, aparecer ao lado do pai e demonstrar uma força que não possuía, nem possui.

Como um tiranete sem os contatos e a legitimidade do irmão demonstra força? Pela repressão, pura e simples. Ainda assim, o que começou como um protesto popular no interior da Síria se tornou uma guerra civil com, no auge, cinco lados diferentes, que se emaranhavam, relacionavam e contradiziam. Em 2015, entretanto, uma grande mudança. A Rússia decidiu garantir sua base de apoio na Síria e impedir que seu aliado Assad fosse derrubado, e realizou sua maior operação militar no Levante na História.

Ao manter um aliado de longa data (as relações Rússia-Síria são estreitas desde o final dos anos 1960) no Oriente Médio, a Rússia consegue “contornar” o cordão de países da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) que a cercam e o isolamento causado pelos estreitos de Bósforo e de Dardanelos, dor de cabeça russa desde o século XIX. O principal exemplo disso é a base naval de Tartus, cedida pela Síria à Rússia em 1971 e, atualmente, a única base naval russa fora de território ex-soviético.

Além disso, a presença russa na economia da Síria, antes da guerra, era estipulada em quase vinte bilhões de dólares, numa relação assimétrica que garantia o superávit russo. Como país produtor de gás natural e petróleo, a Síria necessita do conhecimento russo na área, e grandes empresas como Stroitransgaz e Tatneft possuíam joint-ventures com as companhias estatais sírias para construção de gasodutos e exploração de petróleo. Já os anos seguintes da intervenção russa viram novos desdobramentos.

Um divisor de águas

Primeiro, a quase destruição do Daesh, graças à uma confluência de forças: curdos, EUA, Rússia, Irã, Hezbollah e Iraque. Também viram a formação de uma coalizão pró-Assad. Progressivamente, Damasco recuperou território dos chamados rebeldes. Síria, Rússia, Irã e Hezbollah operando em conjunto, sob óbvia coordenação russa, os novos donos dos céus sírios. Hoje, em 2020, a conclusão disso é: Assad venceu a guerra. Goste-se ou não dessa conclusão, não deixa de ser a realidade.

A maior parte do território sírio é controlado pelo regime, assim como as principais cidades. Dos atores que controlam outros territórios, vários o fazem em bons termos com o governo russo, como os curdos de Rojava. Esse também é o caso do “tampão” turco no leste do país, criado para impedir que os curdos sírios mantivessem seus pontos de contato com os curdos na Turquia; tampão proporcionado pela decisão de Trump de deixar os curdos à própria sorte.

Sobra apenas um território, o bolsão de Idlib, que é controlado por forças apoiadas pelo governo turco. Foi nessa região que, na última semana, dezenas, talvez centenas, de combatentes foram mortos, com dezenas de veículos destruídos. O exército sírio avançou rumo à cidade. No avanço, vitimou algumas dezenas de soldados turcos. A Turquia retaliou com uma mobilização que ela ainda não havia realizado, com aviões-radar, drones, uma brigada de carros de combate, dentre outros.

Ameaças de contra-ataques russos e o receio da escalada do conflito fizeram Erdogan abaixar a cabeça e voar até Moscou conversar com Putin; inicialmente, o presidente turco queria uma conferência com diferentes líderes em Ancara. O acordo, no final das contas, foi uma versão atualizada do antigo acordo de Sochi; ou seja, os avanços das forças de Assad por vilarejos da região foram consolidados. A Turquia ganhou a partilha da principal rodovia do bolsão.

“A Turquia” entre aspas, já que boa parte das forças ali presentes possui apenas o apoio turco, são originárias da chamada “oposição síria”. O que inclui os jihadistas salafistas do Tahrir al-Sham, antigamente chamados de “al-Qaeda na Síria”. Sim, a Turquia coopera diretamente com um grupo designado como terrorista por diversos de seus aliados. Uma das razões pelas quais a Otan deu de ombros aos apelos turcos por apoio logístico e material, embora o distanciamento entre a Otan e Ancara seja anterior e mais profundo.

O que deseja a Turquia

A suposta intenção da Turquia na sua presença Síria é garantir que não ocorra um novo fluxo em massa de refugiados para dentro de seu território, manter essas pessoas em Idlib, enquanto garante a “representatividade” militar de seus aliados, pensando em garantir um assento numa futura cúpula que decida o futuro sírio, seguindo o Processo de Astana. Ao mesmo tempo que faz isso, a Turquia novamente usa esses mesmos refugiados como ferramenta de pressão contra a Europa.

Mais uma vez, cenas de milhares de pessoas tentando entrar em território grego, pelo chão e pelo mar, incentivados pelas autoridades turcas, num tema já abordado aqui nesse nosso espaço. A resolução da questão dos refugiados, entretanto, passa pelo fim da guerra na Síria, para que essas pessoas possam retornar e o país ser reconstruído. E a guerra não vai acabar enquanto a Turquia ocupa territórios sírios, arma grupos terroristas e realiza operações militares de larga escala!

Ou seja, embora o discurso turco seja o de que o país que mais arca com o “fardo” de receber milhões de refugiados, o que é parcialmente verdade, no fundo, é uma situação que legitima outras ações de Ancara, muito menos nobres. O retorno dessas pessoas, a reconstrução síria, a solução dessa parte da crise de refugiados passa pelo reconhecimento da dura realidade já citada: Assad venceu. Putin venceu. Pensando nisso, qual será a postura europeia?

A União Europeia e a Otan podem apaziguar Erdogan, direcionando mais alguns bilhões de euros para a Turquia sob a justificativa do assentamento dos refugiados. Podem também enviar sistemas antiaéreos, apoio logístico, quem sabe uma ou outra demonstração de força. Isso vai arrastar o conflito, manter o status quo em Idlib e não vai melhorar a vida das centenas de milhares de pessoas que estão nesse bolsão, entre a espada e a outra espada. Ou então, os países ocidentais podem seguir outro caminho.

O caminho de dar um basta em Erdogan. De falar a verdade, que sua política externa agressiva ameaça a própria coesão da Otan. De que, mais importante do que acomodar sírios pelos diversos países europeus, o importante é criar a realidade que permita o retorno dessas pessoas. De que, caso ele queira enfrentar a Rússia, ele o fará sozinho. A Otan não vai ajudar, assim como Israel, Iraque, sauditas, egípcios, também não vão ajudá-lo. A aventura de Erdogan no oeste da Síria fracassou e é hora de deixar isso claro para ele.

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